Game e audiovisual: o lugar do cinema no game

Vicente Gosciola é doutor em Comunicação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. É professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Anhembi Morumbi. É autor do livro Roteiro para as Novas Mídias: do Cinema às Mídias Interativas (São Paulo: Senac, 2008), entre outras publicações sobre temas como: cinema, cinema brasileiro, comunicação, computação pervasiva, alternate reality game-ARG, cultura colaborativa, dispositivos móveis, edição não-linear digital, game, hipermídia, tecnologia cinematográfica e audiovisual, mídias colaborativas, narrativa interativa, narrativa não-linear, novas mídias, novas tecnologias, roteiro e narrativa em cinema e audiovisual e mídias interativas, smat phone, tecnologia e estilo fílmico, TV digital interativa, vídeo, web TV. vgosciol@uol.com.br

O local que proponho ao leitor como o campo de discussão sobre os games pertence ao universo do audiovisual. Compreendemos o conceito como um meio e uma linguagem que faz uso do som e da imagem para comunicar. Entendemos o audiovisual como sendo exibido a todo tipo de público, através de meios como o computador pessoal, o console, a televisão, o cinema sonoro, o vídeo, a multimídia, a computação gráfica, a hipermídia, o game, o hipertexto, a realidade virtual e os dispositivos móveis como o smart phone. O conceito de audiovisual estabelecido por Gianfranco Bettetini diz muito para este estudo: o audiovisual é um produto que tem por finalidade a troca comunicacional através da visão e da audição (BETTETINI, 1996, p.7). Discutiremos aqui a relação entre cinema e game no âmbito da expressividade audiovisual do primeiro, absorvida cada vez mais pela expressividade do segundo que, por sua vez, oferece novos recursos de narrativa audiovisual a cada nova produção cinematográfica baseada em um determinado game. Assim sendo, a premissa do que segue é que todo game é um meio de comunicação audiovisual, assim como o é o cinema, a TV e o vídeo. Percebe-se uma acelerada inserção social de produtos em game, algo condizente com as idéias do historiador holandês Johan Huizinga que defendia, “desde 1903” (HUIZINGA, 1996, Prefácio), a idéia de que o ser humano contemporâneo pode ser caracterizado como homo ludens, pois o jogo é fator distinto e fundamental, presente em tudo o que acontece no nosso universo cultural.

A narrativa cinematográfica preparou nossa percepção audiovisual para acompanharmos a narrativa no game. Assim como acontece em games de simulação social, no cinema também ocorre o acúmulo de narrativas quando um único plano apresenta duas ou mais ações dramáticas simultâneas. Em processos cinematográficos, para apresentar duas ou mais narrativas em um mesmo plano, é necessário garantir o foco para todas as narrativas importantes. Todavia, isso nem sempre foi possível no cinema. Somente a partir 1940 a profundidade de campo foi aplicada com primor, graças ao desenvolvimento de uma objetiva cujas lentes permitiam foco em um alcance maior. No filme Citizen Kane (Cidadão Kane), de Orson Welles, diretor de fotografia Gregg Toland, desenvolveu a técnica pan-focus (COWIE, 1989, pp.40-48). Utilizando muita iluminação e uma nova objetiva de 24 mm em abertura f:16 ele obteve foco de 2 pés ao infinito, e com uma objetiva de 28 mm em abertura de f:8, conseguiu foco de 4 pés a 50 pés (SALT, 1992, pp.232-236). Tudo para que Welles pudesse incluir em um mesmo enquadramento mais imagens em foco de diversas narrativas simultâneas. Caberia ao espectador, consequentemente, direcionar sua atenção a uma das múltiplas narrativas de um mesmo plano, e tirar suas impressões de forma mais particular e mais acurada. Como em Play Time (Play Time), em que Jacques Tati, explora narrativas simultâneas em um mesmo plano. É impossível não lembrar das situações de múltiplas narrativas em um mesmo ambiente em games como Myst, Metal Gear Solid, entre tantos outros exemplos do gênero de aventura.

Assim como há o indefectível plano-sequência por câmera subjetiva em boa parte dos games, o princípio da decupagem clássica é um fator importante e recorrente em jogos digitais, em que a câmera é posicionada de modo a apresentar o plano para o espectador de modo rápido simples e inteligível (XAVIER, 2005, p.46). Em simulações sociais, como no The Sims, há a fundamental dependência do posicionamento de câmera e de uma organização espacial no cenário para mostrar na tela a situação dramática com clareza e completude. No cinema, o recurso de edição promove o corte no tempo de um plano para o outro, viabilizando o cinema, já que seria impossível dar conta em tempo real da rotina de um personagem. Para o game, a síntese do tempo se dá mais claramente nas passagens de fase, dada a ênfase nos planos-sequência.

Outra possibilidade de síntese é a elipse, ou match-cut, recurso de salto temporal para o futuro da narrativa. Em cinema, comumente a ligação entre as duas cenas, a antiga e a futura, se dá pela repetição: de uma ação, de uma forma, de uma duplicação de situações de encenação. Um exemplo já clássico é a elipse em 2001: a Space Odyssey (2001, uma odisséia no espaço) de Stanley Kubrick, cuja ligação entre o distante passado dos hominídeos e o “ano 2001” é feita pela repetição da cor e do movimento de um osso girando no ar para o de uma estação espacial do século XXI rotacionando no espaço. Tal elipse é conhecida como “a mais ambiciosa elipse da história” (MONACO, 1981, p.185). Em jogos digitais, a elipse é um recurso facilmente disponibilizado ao jogador porque, na grande maioria das passagens de uma tela ou de uma fase para outra, há uma transição direta sem que se observe uma trajetória gradual e sem que se veja obrigatoriamente a continuidade de alguns elementos pertencentes ao conteúdo anterior para o novo conteúdo. O The X-Files Game usa a elipse para permitir ao jogador mudar sua localização espacial no game como se fosse um salto no tempo e no espaço  (GOSCIOLA, 2008, pp.127-128).

Desnecessário lembrar que não há uma obrigatoriedade que a narrativa audiovisual um game utilize os elementos de orientação de desenvolvimento anteriormente descritos. Entretanto, os games têm recebido um investimento cada vez maior em estudos de narrativa audiovisual e respectivos roteiros, como pode se pode constatar em O Poderoso Chefão: o game. Sempre houve reclamação sobre o desrespeito à narrativa e à estética dos games quando são adaptados para os filmes, e vice-versa, mas O Poderoso Chefão faz por merecer um estudo mais detalhado do ponto de vista da narrativa audiovisual porque recebe, desde seu lançamento em março de 2006, elogios em especial por sua relação com a saga cinematográfica. Anterior a ele, somente Metal Gear Solid angariou elogios nesse sentido, porque incorpora muitos recursos do cinema, como o controle de movimento de câmera, trilha sonora e roteiro muito elaborado. O Poderoso Chefão foi produzido durante dois anos e meio e custou alguns milhões de dólares. Vale lembrar que, atualmente, os custos de um game não são mais divulgados pelos desenvolvedores por se temer possa afastar os investidores. O roteiro foi baseado no livro original de Mario Puzo e no primeiro filme da saga. O game tem adaptações fiéis para ações em 3D de algumas cenas originais do filme. Outro game com forte presença da narrativa audiovisual já consolidada pelo cinema é Indigo Prophecy. Seu criador, o francês David Cage, o chama de filme interativo, ou drama interativo. O roteiro do game, também de Cage, tem mais de duas mil páginas. A trilha sonora incidental foi composta por Angelo Badalamenti, compositor freqüente nos filmes de David Lynch. Há muitas possibilidades de enquadramento definidas pelo jogador e um intenso uso de split-screens -conceito do cinema, que significa divisões da tela em telas menores-, cada uma com um ponto de vista de uma mesma ação ou de diversas ações simultâneas.

Vale ficarmos atentos às novidades nas formas de expressão e narrativas em games. Se o game não fizer uso de parte dos recursos narrativos do cinema -o lugar ou o papel do cinema no game-, estará negando a si próprio a característica comum a ambos os meios: o audiovisual. Entretanto, se não buscar novidades que digam respeito às suas formas particulares de expressão e de narração, jamais se emancipará do cinema e de suas necessidades básicas primordiais estruturadas pelos modos tradicionais de programação.

Ludografia

Godfather: The Game, The. Philip Campbell, Mike Olsen, Michael Perry, EUA, Electronic Arts, Electronic Arts Redwood Shores Studio, 2006.

Indigo Prophecy. David Cage, França, Atari, Quantic Dream, Atari, 2005.

Metal Gear Solid 3: Subsistence. Hideo Kojima, Konami Digital Entertainment, Kojima Productions, 2006.

Myst. Robyn Miller, Rand Miller, EUA, Brøderbund, Midway Games, Mean Hamster Software, Sunsoft, 1993.

Sims, The. Will Wright, Maxis Software, Electronic Arts, 2000.

X-Files Game, The. Greg Roach, Hyperbole Studios, Fox Interactive, 1998.

Audiovisiografia

2001: a Space Odyssey. Kubrick, Stanley, Reino Unido/EUA, Metro-Goldwyn-Mayer/Polaris, 1968, 148 min.

Citizen Kane. Orson Welles, EUA, Mercury Productions RKO Radio Picture, 1941, 119 min.

Ekstase. Gustav Machatý, Czechoslovakia / Austria, Elektafilm, 1933, 82 min.

Godfather, The. Francis Ford Coppola, EUA, Paramount, 1972, 175 min.

Play Time. Jacques Tati, França / Itália, Jolly Film, Specta Films, 1967, 155 min.

Bibliografia

BETTETINI, Gianfranco (1996). L’audiovisivo: dal cinema ai nuovi media. Milano: Bompiani.

COWIE, Peter (1989). The cinema of Orson Welles. Nova York: Da Capo Press.

GOSCIOLA, Vicente (2008). Roteiro para as novas mídias: do cinema às mídias interativas. 2ª ed. revista e atualizada, São Paulo: Senac.

HUIZINGA, Johan (1996). Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. São Paulo: Perspectiva.

MONACO, James (1981). How to Read a Film. Oxford, Oxford University.

SALT, Barry (1992). Film style & technology: history & analysis. Londres: Starword.

XAVIER, Ismail (2005). O discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência. São Paulo: Paz e Terra.

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