A relevância dos games

Lucia Santaella é uma pesquisadora brasileira e professora titular da PUC-SP com doutoramento em Teoria Literária na PUC-SP, em 1973, e livre-docência em Ciências da Comunicação na ECA/USP, em 1993.É fundadora do “CS games”, Grupo de Pesquisa em Games e Semiótica da PUC-SP e também professora da Escola de Economia de São Paulo eesp-FGV

Não se pode mais colocar em dúvida que a humanidade está entrando em uma nova era. Para alguns, essa era trará conseqüências para a constituição da vida social em geral tão profundas quanto foram as da emergência da cultura urbana mercantil no fim do feudalismo, cultura essa baseada na linguagem impressa, cultura dos livros, inaugurada pela invenção dos tipos móveis de Gutenberg. Para outros, um pouco mais radicais, trata-se de um salto antropológico tão vasto quanto foi aquele que resultou da revolução neolítica. Outros ainda mais radicais postulam que as revoluções tecnológicas que já tiveram início na industrialização mecânica, seguida da eletrônica e hoje em plena digitalização, estão colocando em curso o terceiro ciclo evolutivo do homo sapiens sapiens, constituindo-se em uma mutação biológica, portanto.

1. Da condição pós-moderna à net-condição

No ponto em que estamos, de evidente saturação e sobrecarga de informação, da condição pós-moderna, que tantos debates suscitou nos anos 1980 e 1990, passamos para a net-condição que, segundo Peterson (2003: 120), exige que a informação seja por nós filtrada, administrada e manipulada para que ela se transforme em conhecimento, convertida em algo ajustado ao contexto em que estamos inseridos.

Parece certo que a net-condição nos constitui, pois, em cada período histórico, a cultura fica sob o domínio da técnica ou da tecnologia mais recente, de modo que as mídias emergentes acabam por sobressair na paisagem cultural. É isso que vem acontecendo com as mídias digitais que instauraram a cibercultura cuja expressão mais visível encontra-se na internet e mais recentemente nos aparelhos móveis. Contudo, esse domínio não é suficiente para asfixiar o funcionamento de formações ou ciclos culturais preexistentes. Essa é a tese que tenho defendido como meio para nos levar a compreender a hipercomplexidade midiática da cultura contemporânea cuja trama exige a apreensão de distinções bastante sutis que a mera designação de cultura midiática não é capaz de absorver. Assim, o caldeamento denso e híbrido da cultura atual me levou a distinguir seis tipos de lógicas culturais que, embora sejam historicamente seqüenciais e distintas, foram gradativamente mesclando-se e interconectando-se de modo indissolúvel: a cultura oral, a escrita, a impressa, a cultura de massas, a cultura das mídias e a cibercultura.

Essas seis formações culturais, atuando em simultaneidade, nas misturas, trocas e complementaridades que ensejam são grandemente responsáveis pela hipercomplexidade cultural do nosso tempo. No seio dessa hipercomplexidade, a indústria dos games é um dos fenômenos que mais tem despertado a atenção dos teóricos e críticos da cultura.

2. A relevância cultural dos games

Quando dizemos “games“, estamos nos referindo a jogos construídos para suportes tecnológicos eletrônicos ou computacionais. A história dos games é, dentre todas as mídias, aquela cujo ritmo de desenvolvimento avança de forma assombrosamente rápida. Relatos dessa história, que foi determinada pela incorporação contínua de inovações tecnológicas, podem ser encontrados em muitas fontes, inclusive na internet. Basta, portanto, apontar aqui para o fato de que os games dividem-se em três grandes tipos. Estes dependem do suporte utilizado: jogos para consoles, que são construídos para consoles específicos de videogames, com visualização em monitores de televisão, como Playstation e GameCube, e entre os quais incluímos também os jogos para consoles portáteis, como GameBoy e Nintendo DS; jogos para computador, que são desenvolvidos para processamento em microcomputadores pessoais, conectados em rede ou não; jogos para arcades, que alguns chamam equivocadamente de Fliperama, são grandes máquinas integradas (console – monitor) dispostas em lugares públicos.

Nos últimos anos, um corpo de teorias multidisciplinares sobre games começou a aparecer nos contextos acadêmicos, alargando e aprofundando o discurso sobre essa mídia. Crescentemente vêm surgindo pesquisadores dispostos a ultrapassar a barreira dos preconceitos, tendo em vista compreender em profundidade quais são afinal as propriedades dessa nova mídia que a tornam capaz de produzir tanta intensidade de apelo e aderência psíquica e cultural.

Um dos primeiros lugares que abraçou o design e a cultura dos games como tema de pesquisa foi o MIT, no qual, de resto, o primeiro jogo computacional – Space War – havia sido criado de modo independente por estudantes de doutorado. Desde então, para se ter uma idéia da expansão dos games no mundo acadêmico, um grupo internacional de especialistas teóricos e práticos reuniu-se, em Bruxelas, capital da Europa, no dia 28 de janeiro de 2008, com a tarefa de fundar uma Academia Européia de Games com objetivos voltados para três áreas principais: (a) investir em estudantes, capacitando e acompanhando os mais talentosos a seguir uma carreira dentro da indústria dos games; (b) investir na indústria, fornecendo acesso ao melhor treinamento disponível para profissionais voltados à produção de games; (c) investir na educação, fornecendo treinamento de alta qualidade para o desenvolvimento de games. No Brasil, vem crescendo a olhos vistos a procura por cursos e por informações sobre esse novo campo de trabalho e de estudos. Em 2004, foi fundada a Abragames (Associação Brasileira das Desenvolvedoras de Jogos Eletrônicos). Diversas instituições de ensino e empresas no país oferecem cursos de jogos nos mais variados níveis: técnico, ensino médio, graduação, especialização, mestrado e doutorado.

Os games constituem-se, de fato, em um campo híbrido, poli e metamórfico, que se transforma a uma velocidade surpreendente, não se deixando agarrar em categorias e classificações fixas, uma vez que é movido pela inovação tecnológica. A atualidade de um game raras vezes passa de seis meses e pode ser medida pelo desaparecimento das menções que são feitas a eles nos news groups (grupos de discussão sobre temas de interesse nas redes). Games são híbridos porque envolvem programação, roteiro de navegação, design de interface, técnicas de animação, usabilidade, paisagem sonora.

Da hibridização resulta a natureza intersemiótica dos games, a constelação e intersecção de linguagens ou processos sígnicos que neles se concentram e que abrangem os jogos tradicionais (como o jogo de cartas, por exemplo), os quadrinhos, os desenhos animados, o cinema, o vídeo e mesmo a televisão. Todas essas linguagens passam por um processo de tradução intersemiótica, quer dizer, transposição de um sistema de signos a outro, para se adequarem aos potenciais abertos pelas novas tecnologias que são atraídas para a linguagem dos games. Do mesmo modo que os games absorvem as linguagens de outras mídias, estas também passaram a incorporar recursos semióticos e estéticos que são próprios dos games.

3. A conversação dos games com outras mídias

Muitos designers de games extraem elementos narrativos de filmes e gêneros literários porque os games são muito aptos para absorver esses gêneros — fantasia, aventura, ficção científica, horror, guerra etc. Todos os games voltados para o tema da fantasia medieval representam a evolução de quarenta anos de cultura popular convergindo para o computador. Traduções intersemióticas de peças literárias são também freqüentes. Trata-se aí de tradução intersemiótica porque os games não só recontam a história de um filme ou texto, como também expandem a experiência prévia de uma história e o modo de interpretá-la, adaptando a história aos potenciais e limites que a mídia específica dos games apresenta.

Diferentemente do cinema, os traços fundamentais caracterizadores dos games encontram-se, sem dúvida, na imersão, interatividade e espacialidade navegável que eles propiciam. Todo e qualquer jogo é por natureza imersivo e interativo. Sem o agenciamento participativo do jogador e sem o prazer quase mágico que é próprio das atividades lúdicas, não haveria jogo. No caso dos games, essas características se acentuam, pois os ambientes do cibermundo propiciam vários níveis de imersão.

No nível atual do desenvolvimento tecnológico dos games, o tipo mais comum de imersão é a imersão representativa, obtida em ambientes construídos em linguagem VRML. Essa imersão é chamada representativa porque o(a) jogador(a) fica representado(a) no ambiente virtual da tela por meio de avatares, isto é, representações gráficas personalizadas que permitem que o usuário aja dentro dos ambientes do ciberespaço.

A imersão é um conceito inseparável da interatividade na medida em que esta funciona como um fator intensificador da imersão. Tal como acontece com a imersão, não há jogo possível sem a interatividade. Desde meados dos anos 1980, o uso da palavra “interatividade” começou a crescer devido à emergência da cultura do computador. No campo do design, costuma-se centrar a concepção da interatividade no critério da usabilidade, quer dizer, a medida de eficácia, eficiência e satisfação do usuário com a interface que lhe permite atingir os objetivos que lhe foram destinados. O sentido de interface, entretanto, vai além, e não é casual que o uso da palavra tenha se tornado moeda corrente no mundo digital, pois toda interface computacional se constitui em programa interativo. Sem a ação do usuário, o computador simplesmente não responde. Ora, antes mesmo que a interatividade tivesse se tornado tão onipresente, junto com imersão, ela já designava um conceito imprescindível para se compreender a lógica que é própria de qualquer jogo. Portanto, nos games, a imersão e a interatividade são duplamente operativas.

4. Novos desdobramentos da intersemiose cinema e games

A intersemiose cinema e games vem ganhando desdobramentos cada vez mais significativos nos MMOGs (Massive Multiplayer Online Game) e MMORPGs (Massive Multiplayer Online Role-Playing Game), ou seja, jogos de multijogadores em rede. Matrix, O Senhor dos Anéis, Star Wars e Star Trek são algumas das franquias que estão se transformando em MMORPGS  – The Matrix Online, Middle-Earth Online, Star Wars Galaxies e Star Trek Online, respectivamente.

Trata-se nesses casos da experiência mais interativa que um jogador pode experimentar: Star Wars Galaxies, por exemplo, permite ao jogador assumir a pele de um ser de raças conhecidas da saga de George Lucas, desde humanos até wookiees. Após muitas horas de jogo e bastante esforço, é possível até se tornar um Jedi ou ter a sua própria nave para locomover-se mais rapidamente pelos diferentes planetas do game.

Enfim, são características únicas que colocam os MMOGs na vanguarda do entretenimento eletrônico e, ao mesmo tempo, levantam questões relevantes à sociedade, a começar nas razões pelas quais os usuários sentem-se cada vez mais atraídos a tentar construir uma “vida dupla” nesses mundos virtuais.

Um dos estereótipos que sempre perseguiu os jogos eletrônicos é o de que eles supostamente privariam o jogador, em especial os adolescentes, do convívio social, dada a suposta capacidade do game de introverter e “isolá-los” da sociedade. Tendo como base os MMOGs, é possível dizer que tal afirmação é, no mínimo, equivocada (para não dizer reducionista), uma vez que a característica mais atraente do gênero é justamente seu potencial socializador.

5. Games híbridos

Uma das grandes novidades no mundo dos games são aqueles chamados de games híbridos, isto é, jogos móveis baseados em posicionamento. Trata-se de ambientes de multiusuários em que um telefone celular equipado com sistema de posicionamento e conexão à internet é usado como interface do jogo, o que permite aos jogadores usarem o espaço urbano como um tabuleiro. O primeiro desses jogos lançado comercialmente foi o Botfighters. O jogo depende do movimento físico dos jogadores através da cidade. Conforme a posição ocupada pelo jogador, ele pode atirar em outros. Os tiros são mensagens de texto emitidas ou recebidas cujo sucesso depende das armas virtuais de cada jogador e da sua distância em relação ao alvo.

A diferença desses jogos em relação aos MMORPG é que, naqueles, aproveitando-se do novo potencial aberto pelos equipamentos móveis, os jogadores movimentam-se através do espaço físico. Ao mesmo tempo interagem, via rede, com os outros jogadores, dependendo da posição relativa de proximidade ou distância que ocupam uns em relação aos outros. Assim, os jogadores não precisam mais estar sentados em frente aos seus computadores, pois o jogo implica moverem-se por espaços públicos enquanto recebem e emitem mensagens digitais.

O número e variação de games desse tipo aumentam a cada dia. Vêm sendo conhecidos como games baseados em locação (location-based-games) ou games capacitados por locação (location-enabled-games). Eles estão sempre baseados em alguma espécie de tecnologia de localização e o jogo evolui em função do lugar que o jogador vai ocupando no espaço urbano. Em suma, os diferentes usos possíveis das tecnologias móveis devem nos levar a pensar novas funções que podem ser construídas a partir das necessidades e desejos existentes. Os games são uma dessas novas funções.

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