É santo, mas é queer! A naturalização da identidade homossexual através do mito religioso no filme A Festa da Menina Morta

It is holy, but it is queer! The naturalization of homosexual identity through religious myth in the film The Dead Girl’s Party

Dieison Marconi Pereira[1]

Resumo: O objetivo deste trabalho é analisar as figurações do sujeito homossexual no cinema queer brasileiro sob a ótica do mito religioso, por meio do personagem Santinho no filme A Festa da Menina Morta (Matheus Nachtergaele, 2009). Procuramos refletir sobre as estratégias do cinema queer ao colocar a religião como fator naturalizador da homossexualidade.

Palavras-chave: cinema queer; identidade; homossexualidade; mito religioso.

Summary: The objective of this work is to analyze the figurations of homosexuality in Brazilian queer cinema from the perspective of religious myth, through Santinho character in the movie The Dead Girl’s Party (Matheus Nachtergaele, 2009). We seek to reflect on the strategies of queer cinema to put religion as naturalizing factor of homosexuality.

Keywords: cinema queer; identity; homosexuality; religious myth.

1. Introdução

A motivação do presente estudo é a visibilidade, a existência e a legitimidade da identidade do homossexual construída sob a ótica do mito religioso no cinema queer brasileiro. No filme selecionado para análise, A Festa de Menina Morta (Matheus Nachtergaele, 2009), a personagem homossexual é elevada a líder religiosa de uma remota população ribeirinha no alto Amazonas. Nosso objetivo principal é compreender como o cinema queer brasileiro constrói uma figuração naturalizada e normalizada do sujeito homossexual através dessa inspiração mitológica no presente filme.

A Festa da menina morta é a primeira investida de Matheus Nachtergaele na direção, pois desde 1997 ele atua em vários filmes do cinema brasileiro. A Festa da Menina Morta foi gravado em 2008 no município de Barcelos, no Estado do Amazonas, e, segundo o próprio diretor, a ideia para o roteiro veio quando o mesmo filmava O Auto da Compadecida em Cabaceiras, interior da Paraíba. Nesta época Nachtergaele presenciou uma cerimônia religiosa na casa de uma família que oferecia seu terreno para a celebração do milagre de sua filha que havia desaparecido e jamais foi encontrada, mas o seu vestido teria sido enviado após muitas preces (A FESTA DA menina morta- Coletiva, 2009).

No caso do longa-metragem A Festa da menina morta, todos os anos, há duas décadas, a cidade celebra a festa da menina morta, recebendo peregrinos que desejam obter a bênção de um jovem santo, conhecido como Santinho, que obteve poderes milagrosos após o suicídio da mãe. Nesse mesmo momento do suicídio, Santinho recebe em suas mãos, da boca de um cachorro, os trapos do vestido de uma menina desaparecida. A partir deste episódio, todos os anos esta menina fala pela boca do santo em transe.

O filme, dentro de um espaço de forte crença religiosa traz um homossexual que não é considerado promíscuo, pecador, sujo e/ou profano como geralmente é figurada a homossexualidade dentro de algumas ideologias, crenças e cenários religiosos. Pelo contrário, é como se ao incorporar o status de santo, a homossexualidade de Santinho e inclusive sua prática sexual incestuosa fossem inteiramente naturalizadas e normalizadas. É como se sua identidade estivesse marcada fortemente por um conflito entre o sagrado e o profano que só ganha sentindo ao visualizar onde a personagem se localiza e com quem se relaciona. 

É esta relação intrínseca entre o sagrado e o profano que interessa ao estudo aqui proposto: entendemos o cinema queer como um desejo de figuração que devora todas as possibilidades de gênero e sexualidades para colocar o sujeito representado dentro de uma universalidade humana.  É necessário, então, refletir sobre as estratégias do cinema queer ao colocar a religião como fator naturalizador (ao invés de normatizador) da homossexualidade em um contexto conservador.

2. Visibilidades e construções das identidades minoritárias

Segundo Stuart Hall, existe hoje uma “crise de identidade”, uma concepção sociológica fornecida pelo espaço entre o interior e o exterior, o mundo pessoal e o mundo público, que não pode mais ser concebida como unificada, essencialista e fixa.  Esta crise de identidade deve-se a fatores como a globalização, as mudanças sociais e os novos movimentos sociais e políticos. Na tentativa de rejeitar este conceito que relega as identidades a um status de unificação entre os sujeitos e os mundos culturais que os mesmos habitam, o autor visualiza a construção de um sujeito pós-moderno

[…] conceptualizado como não tendo uma identidade fixa, essencial ou permanente. A identidade torna-se uma “celebração móvel”: formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpretados pelos sistemas culturais que nos rodeiam. (HALL, 2006, p.12).

Como pode se notar, Hall analisa que as identidades enquanto “celebrações móveis” são marcadas pela diferença, o que nos faz refletir sobre a possibilidade desta identidade ser uma expressão relacional que se concebe e se define pelo que ela é em relação ao outro, em diferentes momentos e cruzamentos. As outras identidades são uma das condições necessárias para que uma identidade exista ou, como nos diz Katheryn Woodward, toda identidade requer uma identidade que “está fora”. Para a autora, a identidade é “uma positividade, aquilo que eu sou”, enquanto a diferença é “aquilo que o outro é” (Woodward, 2000, 14.). No entanto, ambas só fazem sentido se compreendidas uma em relação à outra. Logo, a identidade depende da diferença e vice-versa. Elas são inseparáveis. Assim, as identidades e as diferenças são sempre construídas e reconstruídas nas relações de poder, nas narrativas, por meio de processos simbólicos e sociais, havendo um confronto para a afirmação de uma ou outra identidade, uma ou outra diferença.

Para a autora, é também por meio de representações que a identidade e a diferença se ligam ao sistema de poder. “É por isso que a representação ocupa um lugar tão central na teorização contemporânea sobre a identidade e nos movimentos sociais ligados à identidade” (WOODWARD, 2000, p. 29). Já segundo Jacy Seixas, “a identidade e a subjetividade se tecem no vai e vem do olhar que me leva ao outro e que, ao retornar, volta redimensionado, pois devolve o meu “eu” identitário, instituindo-o, mas também o eles e o nós. Somos o que os outros veem de nós” (2009, p.72). Esta concepção que a autora nos apresenta permite-nos dizer que somos sempre figurados e refigurados na relação com outro e em uma sociedade também ambígua, ou seja, as figurações sempre se dão a partir do signo das diferenças.

Estes aspectos que exploram a questão de figuração das identidades nos auxiliam a perceber que nem sempre abolir ou rejeitar a estereotipização das minorias sexuais e o estigma da discriminação social é uma tarefa fácil. Tudo depende de quem tem acesso ao poder de figurar e de destinar espaços sociais aos indivíduos figurados. Neste caso, como nos alerta Homi K Bhabha, o indivíduo representado é

Citado, mencionado, emoldurado, iluminado, encaixado na estratégia de imagem/contra imagem de um esclarecimento real. A narrativa e a política cultural da diferença tornam-se o círculo fechado da interpretação. O outro perde o seu poder de significar, de negar, de iniciar seu desejo histórico, de estabelecer seu próprio discurso institucional e oposicional (BHABHA, 2010, p. 59).

Então, quando este indivíduo perde o poder de significar seu “desejo de representação”, é o mesmo que perder uma legitimidade de si mesmo. Uma legitimidade que pode mover estereótipos negativos ou substituir uma total exclusão e inexistência de si. Bhabha também chama atenção para lançarmos um olhar além da imagem ou representação do sujeito, pois devemos nos preocupar com o “lugar discursivo e disciplinar de onde as questões sobre identidade são estratégicas e institucionalmente colocadas” (BHABHA, 2010, p.79). Através desse lugar discursivo e disciplinar o autor diferencia a diversidade cultural da diferença cultural. Bhabha sugere que as identidades sejam refletidas de forma articulada no hibridismo das culturas. Para ele, a diversidade seria uma categoria da estética, da ética e da etnologia comparativa, de ordem muito relativista. Já a diferença cultural é um processo de enunciação e significação em que as afirmações sobre uma determinada cultura “diferenciam, discriminam e autorizam a produção de campos de força, referência, aplicabilidade e capacidade” (BHABHA, 2010, p. 62). Presa a uma “retórica radical de separação” a diversidade cultural apenas representa as comunidades isoladas em seus locais históricos, “protegidos na utopia de uma memória mítica de uma identidade coletiva única”, ao invés de pensar as relações entre os indivíduos no espaço das diferenças culturais (BHABHA, 2010, p. 62).

O multiculturalismo, ou o pluralismo cultural aprofundado por Robert Stam e Ella Shohat (2006), atenta para uma descentralização desse poder, da tomada de poder pelos excluídos, da transformação de instituições e discursos subordinados. Na visão dos autores, as identidades são múltiplas e instáveis e exigem mudanças não apenas nas imagens, mas também nas relações de poder. Então, esta luta pela tomada de poder, pelo uso da linguagem que funciona como partilha de significados e sistema de representação, pelo desejo de uma representação mais condizente com sua própria identidade configuram uma das características do cinema queer.

Segundo Antônio Nascimento Moreno (1995), no Brasil, durante as décadas de 1920 a 1980, o cinema construiu, explicitou e ajudou a legitimar uma identidade cruel dos homossexuais nos espaços sociais. Era um “retrato fílmico” que reforçava um estereótipo negativo e depreciativo dos LGBT. Moreno define “retrato fílmico” como um conjunto de valores atribuídos a um sujeito ou segmento da sociedade por uma produção cinematográfica a partir da caracterização de seus personagens.  São valores que tanto “delimitam a importância e participação deste sujeito ou segmento representado, quanto sua imagem, status e representatividades, dentro da sociedade em que vive” (MORENO, 1995, p. 5). Segundo o autor, a personagem homossexual, em forma condensada, foi:

1. “Alienada da realidade político social”, tem pouca instrução, usam linguajar chulo, e só se preocupam com sexo; 2. O homossexualismo é usado temporariamente como recurso de escala social ou reparo financeiro momentâneo, sobretudo pelos jovens; 3. A classe social de onde trafegam são praticamente todas – classe média alta, pobre, classe média e emergente; 4. Geralmente os travestis e o tipo “bicha louca”, são suburbanos e moram em locais de baixa reputação, como prédios cabeça-de-porco, quartos de pensão ou prostíbulos; 5. A homossexualidade é utilizado em muitos filmes como uma prática anormal, de tara, exibicionismo de “pseudo relações lesbianas”, para deleite da plateia masculina, ou meramente como uma “experiência” nova sexual, de sacanagem; 6. As personagens travestis em alguns filmes repetem a mesma fala (MORENO, 1995, p. 133-134).

Entre os anos de 1920 a 1980 foram poucos os filmes que trataram a comunidade LGBT de forma diferente, dentre eles estão O menino e o vento (1966), O beijo da mulher aranha (1985), A menina do lado (1988) e Pixote e a lei do mais fraco (1980).  

Mas o período do “cinema de retomada” no Brasil nasce com uma estética diferente. Principalmente a partir dos anos 2000, algumas produções já começam a se interessar por uma nova construção das identidades desta minoria, estando mais condizentes com a realidade social.  Segundo Wilton Garcia (2012), o “cinema da retomada” se fez valer de seu alicerce quase sólido para (re)configurar a perspectiva do cinema queer, “tendo em vista as inúmeras variantes que (re)contextualizam o campo da filmografia contemporânea e as malhas (inter/trans) textuais entre identidade, gênero, sexualidade, erótica, desejo, aids, imagem e corpo” (GARCIA, 2012, p. 458).  Logo, a perspectiva de um cinema queer no país passou a realmente apostar nas diferenças, a demonstrar uma preocupação mais atenta à atualização destes temas como produto cultural midiático.

Podemos afirmar que o cinema queer é uma linguagem que partilha significados contrários à estética cinematográfica que vigorou no Brasil de 1920 a 1980. Então, é por negar-se a representar e legitimar os homossexuais e os demais LGBT de forma preconceituosa, estereotipada e discriminatória, por negar-se a compactuar com uma tradição heteronormativa compulsória do cinema brasileiro que compreendemos este cinema queer como uma estética de resistência. O cinema queer fecha lacunas e atualiza linguagens, dá aos homossexuais chances de protagonismo. A própria teoria queer já conseguiu migrar da “análise corretiva dos estereótipos e distorções para modelos teóricos mais sofisticados. […] Também resgatou e ‘retirou do armário’ autores gays e autoras lésbicas atuantes no mainstream” (STAM, 2002, p. 290-2).

Segundo Karla Bessa, a palavra queer até já foi pensada como termo para designar a comunidade LGBT de forma cruel, mas atualmente o termo promove a busca por alternativas para pensar o gênero, a sexualidade e a corporalidade, “evitando-se assim tanto o ‘fundacionalismo’ biológico quanto o ‘construcionismo’ cultural” (BESSA, 2009, p. 297).   Para a autora, isso é “a ‘soma’ de diversas identidades como legítimas, que se antes eram tidas como fora da universalidade humana, monstruosa, agora adquirem o status de humanidade possível” (BESSA, 2009, p. 298).

2.1 A homossexualidade como natural e normal

Antes de entrarmos na questão de como as práticas e as crenças religiosas veem, classificam e discursam sobre a homoafetividade, ainda que implícito, achamos necessário explicar o uso do termo naturalização, fartamente já empregado aqui. O mesmo não diz respeito (ou não inteiramente) a uma visão naturalista da homossexualidade, pois o presente trabalho aproxima-se de uma reflexão sobre a “despatologização” das identidades homoafetivas no campo social e cultural a partir da produção cinematográfica. Não concebemos aqui as identidades homoafetivas a partir da visão da biologia ou da genética, mesmo que saibamos que uma não está completamente desligada da outra. Para Marcelo José Doro e Ediovani Antônio Gaboardi, em se tratando de uma visão naturalista da homossexualidade, “aquilo que existe só existe porque é naturalmente possível que exista. Apenas poderíamos negar isso, se negássemos que o ser humano é parte da natureza, mas isso, por qualquer perspectiva é bastante insensato” (DORO; GABOARDI, 2012, p.113).

As expressões das sexualidades não podem ser vistas tão somente como uma expressão biológica ou um instinto naturalista, e estes mesmos conceitos de natural e normal assumem uma conotação social e cultural, pois embora sejamos seres biologicamente moldados, interpretamos e realizamos este plano biológico de diferentes maneiras e fundamentalmente atrelado à cultura. Marcel Mauss, ao empreender uma discussão sobre técnicas corporais e culturalismo americano irá relacionar o lado fisiológico e social, colocando o corpo como um artefato cultural. Segundo o autor, apesar da condição biológica, há várias maneiras possíveis por meio das quais a sociedade impõe ao indivíduo um uso rigorosamente determinado de seu corpo, bem como da fabricação de máscaras sociais que se sobrepõem ao indivíduo. É através da educação das atividades corporais que a estrutura social imprime sua marca nos indivíduos. Desse conceito, podemos visualizar inúmeros exemplos práticos: o discurso de adestramento sexista de como meninos e meninas devem se comportar com seus corpos na infância, depois na adolescência e na vida adulta; os padrões de beleza impostos a homens e mulheres; no nosso caso, como homossexuais desviam-se de um padrão de atuação corporal heteronormativo, o que abre espaço para afirmações de uma prática não natural, independente das provas do discurso naturalista (MAUSS, 1974. p.68).

Então, é independente desse discurso naturalista que algumas crenças religiosas tentaram e ainda tentam reeducar os corpos dos homossexuais, seja em defesa do que dizem as escrituras sagradas, seja em defesa de que o sexo foi feito para fins reprodutivos. O que deve ficar claro é que tabus e preconceitos habitam as culturas, portanto, nota-se a necessidade de se valer dos conceitos de natural e normal das ciências biológicas para serem redefinidos pelas ciências sociais e humanas, pois ainda é preciso despatologizar o corpo e a identidade do homossexual e demais LGBTs no sistema cultural, o que pode acontecer pelo acesso e pelas figurações em meios de comunicação, entre eles, o cinema que viemos abordando até aqui.

3. Homossexualidade e religião: o sagrado e o profano

Segundo o antropólogo brasileiro Luiz Mott (2001), por meio da ciência étno-histórica é possível compreender o grave desconforto com as praticas sexuais entre iguais na religião. Este desconforto, que se materializou em repressão, perseguição, tortura e assassinatos têm raízes na tradição de Abraão, há mais de quatro mil anos, porém ensina-nos o autor que, de lá para cá, esta discriminação se alastrou pelo mundo a partir de três grandes religiões messiânicas: o judaísmo, o cristianismo e o islamismo (MOTT, 2001, p,43).

Trata-se da revelação em que Deus orienta Abraão, juntamente com sua esposa Sara, a darem a luz a descendentes consanguíneos, construindo uma civilização em que Abraão seria o pai dos povos. Logo após uma segunda conversa com Deus, a esposa de Abraão, que era estéril, engravidaria e daria a luz ao seu primeiro filho. Mais tarde, este filho também se casaria, reproduzir-se-ia e daria continuidade a uma cadeia reprodutiva, pois era preciso multiplicar-se ainda mais, o que daria origem ao povo hebreu.

A partir daí, Mott ressalta que cada gota de esperma desperdiçado passou a constituir verdadeiro crime de lesanacionalidade, pois todo sêmen deveria ser depositado no único receptáculo capaz de reproduzir um novo ser humano: o vaso natural da mulher. Para o autor, é daí que vem o “Levítico condenar à pena de morte os que praticassem a masturbação, o coito interrompido (“onanismo”), o bestialismo e a homossexualidade” (MOTT, 2001, p. 43).  No entanto, para Mott, a prática homoerótica masculina foi mais perseguida do que os demais atos não reprodutivos devido a uma simples lógica aritmética:

São dois “semeadores” que desperdiçam a semente vital, diferentemente de quando um homem se masturba ou mantém relação com algum animal, ocorrendo a perda de apenas um produtor da semente vital. É dentro desta lógica, visando a maximização do aproveitamento do esperma, que o Antigo Testamento praticamente ignorou a existência do lesbianismo dentro do povo judeu (MOTT, 2001, p. 43).

A homossexualidade ou a sodomia, por terem estilo de prática sexual incompatível com os pressupostos fundantes da família patriarcal abraãmica, seriam graves ameaças ao projeto demográfico expansionista, primeiramente dos judeus, depois da cristandade e mais tarde do Islamismo. Baseado na etnodemografia, Mott assinala que podemos dividir as diferentes sociedades humanas em dois grandes complexos no que tange a este projeto civilizatório:

De um lado as culturas pró-natalistas, que estimulam a procriação, aspiram à longevidade máxima, reprimem e diabolizam o sexo não reprodutivo, canalizando toda a energia sexual para a multiplicação máxima da espécie; do outro, as sociedades antinatalistas, que limitam os nascimentos, estimulam práticas anticoncepcionais, abortíferas ou mesmo o infanticídio, onde o sexo visa primordialmente o prazer e não a reprodução (MOTT, 2001, p 43).

Segundo Eliade (1992), o indivíduo religioso não está em seu cotidiano real e profano, mas quando nutre experiência e necessidade de fé desemboca periodicamente em um tempo mítico e sagrado e reencontra o tempo de origem, aquele que não decorre. É neste tempo que não decorre em que o conceito de mito é encontrado e compreendido, no qual “o mito revela a sacralidade absoluta porque relata a atividade criadora dos deuses, desvenda a sacralidade da obra deles” (ELIADE, 1992, p.51). Em outras palavras, “o mito descreve as diversas e às vezes dramáticas irrupções do sagrado no mundo” (ELIADE, 1992, p 51). Santinho, ao ser líder e mito religioso, constituirá, apesar de sua identidade desviante, uma irrupção sagrada e inquestionável no mundo, estando acima do bem e do mal para aqueles ribeirinhos.

Além dessa inquestionabilidade do mito, podemos voltar nossa leitura para a necessidade de fé, para a necessidade de acreditar em divindades, em milagres e atuações divinas. O mito sempre fez parte das sociedades desde as mais primitivas. Na sociedade contemporânea não é diferente, pois o mito compensa uma necessidade, fecha lacunas, realimenta discursos, diz resolver problemas, salvar vidas e propagar crenças. Então, voltamos nosso olhar para as personagens devotas e excluídas que rodeiam Santinho, que acreditam em sua santidade e que esperam, todos os anos, pelas revelações da menina morta. É como se aquelas personagens vissem na imagem santificada um remédio para seus males, apaziguando na identificação com a vida do santo as inquietações de seu viver sacrificado e sem perspectivas de resgate.

4. Santinho: uma identidade queer santificada

Entre as cenas iniciais de Festa da Menina Morta temos um plano geral em plongée de Santinho e seu pai dormindo na cama, logo pela manhã. Como nenhuma extensão de plano é um ponto de vista neutro, o enquadramento nos remete a uma relação semelhante ao de um casal que acorda junto pela manhã em seu quarto, sugerindo, como será visto no decorrer do filme, a intenção de Santinho em substituir o papel da própria mãe na relação com o pai. Prova disso, é que após se levantarem, o pai de Santinho lhe veste com a antiga camisola da esposa. E em todas as sequências em que Santinho está dentro de sua casa, a camisola é a única peça de roupa que o mesmo usa, exaltando ainda mais a feminilidade que a personagem naturalmente possui.

As expressões da homossexualidade, da corporalidade feminina e da semelhança de Santinho com a mãe também se dão, na maioria das vezes, na relação com as beatas que diariamente cuidam dos afazeres domésticos de sua casa. Todas sem nomes, o que sugere uma existência reconhecida apenas por fazer parte de uma comunidade que venera um santo, elas sofrem com um comportamento histérico do personagem que, por sua vez, é “igual ao da mãe”, diz a beata mais velha ao ter de temperar o almoço de acordo com as vontades do Santo. Em seguida, em uma cena de plano geral que explora um ambiente sempre de submundo, esquecido e decadente, fica claro que é também na relação com as beatas em que se denota a preocupação de Santinho quando seu pai sai de casa e demora a voltar, pois se sabe que ele provavelmente está na companhia de mulheres. A beata sugere, inclusive, que a preocupação do Santo é a mesma que sua mãe tinha quando ainda morava com o esposo, que ele tem ciúmes do pai.

Esta ausência materna é determinante no comportamento do personagem: Santinho passa a vida com a imagem da mãe em sua mente, tentando reconstruir um elo quebrado entre a mulher que o gerou e as lembranças turvas que possui da mesma. Há uma constatação da necessidade de Santinho substituir sua mãe nas relações físicas e emocionais, assim como nas vestimentas. Em seus rompantes de raiva e mau humor, sua violência não é direcionada aos homens com os quais convive (ao pai ou ao irmão da menina morta), mas sempre em direção às mulheres que o rodeiam, que não são suas mães, mas são quem assumem um papel quase maternal na sua vida. Vemos em cena uma oscilação de amor e ódio nutridos pela figura materna e que explode sempre em direção as personagens que o rodeiam, principalmente contra as personagens femininas. Exemplo deste comportamento é a cena em que Santinho agride fisicamente Lucia, a menina que fazia a coroa de flores para a festa da menina morta. Em um plano geral de uma cozinha velha em que o único ruído que se ouve é a torneira da pia pingando de forma metódica, Lucia está sentada a mesa e passa a conversar com Santinho. Quando este pergunta quem lhe tinha deixado entrar na casa pela manhã, ele a agarra pelos cabelos e agride de forma brutal, sem lhe dar chance de responder. Mas quem havia lhe dado permissão pra entrar na casa havia sido o pai do santo, logo, assim como em outras cenas, a agressão era movida por ciúmes e raiva. Aqui denotamos também a submissão das personagens ao santo: de uma forma ou de outra, todas e todos são agredidos, mas nunca reagem, permanecem sempre calados.

Também é importante frisar que a ausência materna contribui tanto para mitificação de Santinho como para a desestabilização deste mito. Santinho foi considerado santo enquanto recebia do cão os trapos do vestido da menina desaparecida, neste mesmo momento sua mãe se “suicidava”. Como conta o pai, quando a mãe cai morta, Santinho grita seu nome e a mulher ressuscita. E é na cena (após anos de distância), em que esta mãe volta (não se sabe de onde) que Santinho desestabiliza sua vida já estagnada e também a imagem que tem si mesmo. Ele se revela apenas um menino perturbado, fruto da diferença de como é visto por aqueles que o cercam, fruto do meio em que vive e da necessidade de crença dos ribeirinhos. No fundo, revela-se apenas um menino que reza por alguns pedaços de vestido de uma menina que desapareceu. A menina, elemento importante da história, nunca voltou. Então, que milagre é este? A história da mãe, que teria morrido neste mesmo dia e que teria sido revivida pelo filho (e que depois abandonou esposo e filho) é fruto das conversas e ideias do pai apenas para legitimar a santidade do filho. Então, que milagre é este?

Nesta mesma cena, Santinho não agride e tão pouco ousa afrontar sua mãe. Ao contrário da histeria que a personagem demonstra ao longo do filme e que também despeja em cima das beatas, esta é a única cena em que o personagem abandona seu comportamento agressivo, dando vazão a um silêncio, permanecendo calado e com medo, deixando irromper apenas um choro dolorido ao ter de abençoar a mãe, para depois cortar propositalmente sua própria mão nos cacos de um copo quebrado.

Apesar de esta cena colocar as duas personagens em um mesmo espaço, não existem diálogos, há apenas o monólogo da mãe de Santinho. Enquanto ela senta-se em uma cadeira e desanda a falar, a câmera movimenta-se de forma panorâmica e lentamente vai deixando Santinho em distância focal inferior, o personagem, ao fundo escuro, vai ficando pequeno e fragilizado com a presença da mãe. Enquanto isso a mãe fica a frente, em plano médio, e a cena vai ganhando tons claros, o que só reforça a importância que a figura materna ocupa na vida da personagem e na história do filme. Sentada na cadeira ao centro da sala, a personagem fala de cicatrizes da alma, dor e raiva, tudo que Santinho já demonstrou durante a narrativa: a ferida aberta pela ausência da mãe, a dor dessa ausência e do fardo do mito que carrega, assim como a raiva que brota diante dessas dores e que ele despeja em cima de quem o rodeia.  A mãe de Santinho é a personificação da dor que o personagem sente, e isto também fica claro quando Santinho sai de cena e sua mãe, em primeiro plano, envolve seu próprio corpo em uma toalha que o personagem bordou e que o mesmo usará durante a cerimônia. Nesta toalha, entre outros ditados sacros, está bordado “mamãe dor”. A mãe de Santinho é a responsável pela sua dor. E mais adiante, durante a cerimônia, a menina morta falaria pela boca do Santo que a palavra do ano é dor, e que dela não adianta fugir. Após a mãe partir, Santinho corta a mão em um copo quebrado, é o santo ferido, o santo sangrando. Um signo da não santidade.

Mas focando especificamente na homossexualidade, no incesto e na feminilidade de Santinho, tais aspectos poderiam ser facilmente considerados errados e promíscuos por parte daqueles que partilham de algumas crenças religiosas. Há a cena icônica que explora a relação homossexual e incestuosa de Santinho com o pai.  Ambos tomam banho juntos e tem uma relação sexual, cena que se inicia em um plano geral e evolui para um close up lateral das personagens. Embora estas deixem explícito o prazer da relação através da atuação, a cena parece escondida pelas cores escuras e tons pastéis, assim como pelas parcas paredes de um banheiro ao ar livre. Sendo assistidos por um espaço vago entre as madeiras do banheiro, ambos os personagens são observados apenas pelo espectador, cúmplice do ato.

Assim, o que inquieta e faz movimentar esta obra fílmica é a reação natural e sublimada das personagens que convivem com o Santo ao notarem estas suas características “diferentes”. A explicação para esta noção natural e justificada do exercício da sexualidade, da feminilidade e do incesto de Santinho fica a cargo das cenas em que o mesmo deixa de lado sua condição mundana e assume um status de santo para os outros personagens que o rodeiam. Esta diferença pela santificação fica bem demarcada em uma conversa com a tia beata, cena que lentamente foca em primeiro plano Santinho, e ao fundo, a beata, indicando uma inferioridade em relação ao que o Santo representa no momento presente. Enquanto esta pede um copo de água, pois está passando mal, Santinho ignora seu pedido e ainda lhe faz dizer exatamente o que ele quer ouvir:

Beata: Me dá um copo com água, meu filho?! Água!Água! Água! Água! Água!Água…

Santinho: Tia, tu me acha diferente?

Beata: Me dá um copo com água meu filho…

Santinho: Me acha especial?

Beata: Especial? Claro! Tu é Santo, tu vê as “coisa”, tu cura. É diferente.

É através deste diálogo, levando em consideração todo o contexto em que as personagens se inserem que podemos perceber como o mito religioso justifica as diferenças sexuais que Santinho carrega. A personagem não é diferente por ser gay e incestuosa, é diferente por ser santo, por ver as coisas e curar. Aos olhos dos devotos, sua própria feminilidade não parece estar ligada a sua homossexualidade, mas justifica-se ser tão feminino devido à sua proximidade espiritual com a menina morta, já que esta se manifesta através dele. Por qual motivo ele não seria feminino se há uma figura feminina que fala pela sua boca? A leitura que temos é a de que a crença religiosa apresentada no filme não discrimina o homossexual porque este homossexual é a religião em si, não há sequer menção a outros santos ou a um deus. Assim, como julgar também como imoral o seu incesto? Santinho é a sacralidade absoluta, funda sua própria religião, desloca seus fiéis em um tempo mítico e está acima de qualquer julgamento mundano. A religião neste caso não é o problema para a personagem, mas sim a solução, pois a autoridade sagrada atravessa a homossexualidade do personagem transformando-a não em um problema de desvio, mas sim apenas mais um elemento sacro.

No entanto, neste mesmo diálogo fica claro que se de um lado a inspiração mitológica deixa as diferenças sexuais de Santinho em uma ordem sublimada e justificada, do outro ressalta as diferenças raciais dentro do filme, mesmo que seja de forma muito sutil. Fato que embora não seja nosso foco de análise, não podemos deixar de citar:

Beata:“Tu é branco, alvo que nem tua mãe. Parece feito de nuvem. Alvo que nem farinha, o povo daqui não, é tudo índio.”.

Outra cena que nos permite refletir sobre como as personagens encaram a sexualidade na obra é a cena em planos gerais, médios e planos detalhes de uma boate. Uma sequência com luzes que oscilam entre o rosa e o branco e na qual um homem dança com duas travestis, sugerindo uma leitura de que estas identidades minoritárias, e inclusive a relação afetiva sexual entre as mesmas, parecem todas muito naturais para as aquelas pessoas, mesmo não tendo neste momento em especifico a interferência direta da inspiração mitológica. Mas se a referência sacra que os mesmos possuem é homoafetiva, por qual motivo os devotos não poderiam encarar com naturalidade sua própria identidade de gênero ou expressão afetiva sexual “desviante”?  Em todo caso, é visto que a crença religiosa no filme não acusa nem condena, mas acolhe todos e todas.

5. Considerações finais

Dentro do espaço religioso no qual vive e se relaciona Santinho suscita inúmeras possibilidades de repensar o gênero e as sexualidades, colocando-se dentro de uma universalidade e demarcando diferenças e subjetividades em relação ao outro, e do outro em relação a ele. Ao romper com um padrão heteronormativo de ser e viver a sexualidade, seja visualmente através de suas vestimentas ou de sua corporalidade, Santinho permite que a religião não seja inquisitória, pelo contrário, que não só aceite naturalmente e normalmente sua condição e expressão de sua sexualidade, como também o venera e encontra justificativa no próprio mito que o criou para aceitar o personagem como ele é.

Mas Santinho só é aceito de forma natural como homossexual, afeminado e até incestuoso porque é mitologicamente venerado. Extrapola a condição humana e mundana, alcança outro patamar e fica acima de qualquer julgamento moral e religioso. Neste aspecto, a personagem promove um protagonismo queer em que sua homossexualidade (e também o incesto que não é uma característica unicamente homoafetiva ou biafetiva) não é acusada como não natural pelos pré-conceitos históricos que também tem origem nas religiões, este protagonismo lança uma desmarginalização do sujeito homossexual por meio de sua sacralidade.

Podemos considerar também que este protagonismo queer que Santinho coloca em cena não é uma mera correção de estereótipos.  Pelo paradoxal signo de santo que carrega, pelo meio religioso em que se insere, pelas diferenças ambíguas (santa e profana) que demarcam sua identidade, a personagem evolui da simples correção das figurações estereotipadas dos homossexuais para um modelo teórico mais complexo e sofisticado de figuração, ou seja, é o cinema queer problematizando suas próprias figurações e não apenas reproduzindo um mero modelo de resistência.

6. Referências Bibliográficas

 BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.

BESSA, Karla. Cinema e projeção de eus. Estética, política e subjetividade queer na era urbana contemporânea. In: NAXARA, Márcia; MARSON, Isabel; BREPOHL, Marion (orgs.). Figurações do outro. Uberlândia: EDUFU, 2009, p. 285-306

DORO Marcelo José. GABOARDI, Ediovani Antônio. Sobre a naturalidade da coisa. ROSO Chintia Oliveira. PICHLER, Nadir Antônio CANABARRO, Ronaldo. (Orgs) Filosofia e homoafetividade.   Passo Fundo: Méritos, 2012, p. 113-126

ELIADE, Mircia. O sagrado e o profano. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

GARCIA, Wilton. Introdução ao cinema queer no Brasil. In: MACHADO, Rubens. SOARES, Rosana de Lima. ARAÚJO, Lucia Corrêa. (Orgs). VII Estudos de cinema e audiovisual. São Paulo: SOCINE , 2012. p.457- 466.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.

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MORENO, Antônio do Nascimento. A personagem homossexual no cinema brasileiro. Dissertação de Mestrado. Instituto de Artes da UNICAMP, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1995.

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MAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia. São Paulo, 1974.

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WOODWARD, Kathryn.  Identidade e diferença: uma introdução teórica conceitual. In:

 SILVA, Tomaz Tadeu (org). Identidade e diferença – a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 2000, p.7-72.

7. Filmografia

NATCHERGAELE, Matheus. A Festa da menina morta. Produção: Bananeira Filmes, Fado Filmes, Lagarto Cine. 2009. 1 DVD (115 min), Brasil.


[1] Acadêmico do oitavo semestre do Curso de Comunicação Social – habilitação em Jornalismo da Universidade Federal de Santa Maria, campus de Frederico Westphalen/RS. Os resultados apresentados neste artigo são produto do Trabalho de Conclusão de Curso 1 (TCC 1) desenvolvido no Curso de Comunicação Social – habilitação em Jornalismo da UFSM, campus de Frederico Westphalen/RS, sob orientação do Prof. Dr. Cássio dos Santos Tomaim.

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