Red vs. Blue e a cultura da convergência

Maíra Gregolin é mestranda do Programa de Pós Graduação do IA/ Multimeios – Unicamp. Pesquisa realizada sob financiamento de bolsa FAPESP.

Neste artigo, proponho investigar a especificidade arquitetural do Machinima, sua configuração formal e sua natureza híbrida, a partir das relações que são estabelecidas entre técnicas cinematográficas e de jogo eletrônico. Ao tomar como objeto de análise o Machinima Red vs Blue, fenômeno de grande sucesso em outros países, produzido a partir de um jogo muito conhecido no exterior e em nosso país, focalizo a inserção do Machinima na cultura da convergência. Por se tratar de um campo de estudos relativamente recente, as pesquisas sobre as interrelações entre Cultura audiovisual e Mídia ainda não apresentam um conjunto canônico de teorias. Cresce a cada dia o interesse pela consolidação dessa área de estudos e pode-se dizer que há ferramentas conceituais produtivas para os resultados deste trabalho.

O Machinima é um tipo de filme que mistura as convenções tanto da técnica e da estética cinematográfica quanto do jogo eletrônico[1]. Assim, as mídias estabelecem uma nova relação na atualidade, trazendo impactos tanto no plano das tecnologias quanto nos aspectos culturais, sociais, econômicos e políticos. A convergência de mídias mostra a viabilidade de o Machinima constituir-se em nova forma de produto cultural, que movimenta uma indústria economicamente viável. Ao mesmo tempo, ele estabelece novas relações entre produtores e espectadores, fazendo surgir as “comunidades de fãs” que alimentam interativamente a produção e circulação dos Machinimas.

1 O Machinima Red vs Blue

Para compreender o fenômeno do surgimento de um gênero típico das tecnologias digitais, o Machinima, focalizamos o seu funcionamento cultural, a sua configuração formal e estética e os elementos principais da sua estrutura narrativa (autoria, narratividade, hibridização). Para análise, selecionamos um exemplar de Machinima, intitulado Red vs Blue, criado a partir do jogo eletrônico Halo.

Essa amostragem escolhida responde a alguns critérios de representatividade. Trata-se do mais famoso Machinima, criado a partir de um jogo de muito sucesso e que se transformou em um seriado com 04 temporadas e um total de mais de 100 episódios.  Esse sucesso deu origem a vários outros produtos que constituem o que Jenkins (2008)[2] denomina como “cultura da convergência”. Além disso, Red vs Blue é um Machinima que introduziu inovações dentro do processo de produção que foram se estabelecendo como padrões para outros Machinimas. Derivados desses critérios essenciais há, ainda, outros que justificam nossa opção: as técnicas de produção; o gênero (transformação de um jogo eletrônico de ação em um Machinima comédia); o grau de intertextualidade entre o jogo eletrônico e o filme que tem em sua base os processos de hibridização de gêneros e de técnicas. Todas essas características fazem de Red vs Blue um Machinima prototípico, cujos elementos podem ser generalizados para a compreensão desse objeto midiático da contemporaneidade.

Red vs Blue é uma série de Machinimas lançada em 2002, feita com o jogo Halo: Combat Evolved[3] e posteriormente com suas sequências Halo 2 e Halo 3. Halo é um jogo de tiro em primeira pessoa que traz em sua trama a luta dos últimos guerreiros humanos contra uma ameaça alienígena. Sua forma de produção – filme criado a partir de jogos eletrônicos, animado a partir de um ambiente virtual 3D, em uma convergência de produção cinematográfica, animação e desenvolvimento de jogo – constrói uma arquitetura singular. Essa peculiaridade advém da hibridização das características do jogo eletrônico com as especificidades do gênero fílmico, que dão ao Machinima caráter interativo, pois permite intervenções de vários autores que podem entrar na narrativa e modificá-la conforme sua criatividade. Tal característica relaciona-se com um dos aspectos da cultura da convergência: a desconstrução do poder de uma autoria única e a constituição da autoria partilhada.

Produzido pela empresa Rooster Teeth, Red vs. Blue apresenta videos curtos (cerca de 5 minutos) que abrangem o dia-a-dia de duas equipes inimigas de soldados vermelhos e azuis. Trata-se de Machinima do gênero comédia que parodia características de jogos de ação: ao invés de apresentar, vemos personagens entediados, tentando entender por que estão em guerra. A série acompanha o grupo de soldados Vermelhos e Azuis (conforme explicita o título da série) que gastam seu tempo refletindo sobre temas da vida, enquanto aguardam a próxima batalha, oferecendo uma nova perspectiva do universo do game Halo. A narrativa de Red vs. Blue, ainda que se baseie em personagens, cenários e ações de jogos de ação, independe do jogo, sendo compreensível para públicos não familiarizados com Halo.

O Machinima – como um texto manipulado digitalmente – permite que o produtor, ao retomar e transformar a história do jogo eletrônico, tenha a oportunidade de intervir em todas as outras possibilidades deixadas em suspenso. Ou, indo mais além, ao criar novas possibilidades de acordo com sua própria subjetividade, com elementos de sua própria cultura.  É o que ocorre em Red vs. Blue, no qual a narrativa do jogo eletrônico serve de panorama para um Machinima que polemiza o próprio gênero “jogo eletrônico de ação”: por meio dos personagens e cenário do jogo, os autores ironizam a narrativa violenta típica dos jogos de ação. Isso é propiciado pela tecnologia de produção do Machinima que permite filmar as jogadas e criar um novo enredo. Essa possibilidade técnica indica que, na contemporaneidade, a produção de subjetividades depende, cada vez mais, de uma infinidade de “sistemas maquínicos”. Ao mesmo tempo, essa interatividade no desenvolvimento do Machinima coloca em causa a própria noção de “autoria”, no momento em que a produção dos sentidos é partilhada entre diversos autores.

O Machinima Red vs. Blue constitui um exemplo do fenômeno da cultura da convergência. Seus produtores lançam periodicamente novos episódios que podem ser assistidos gratuitamente via website. A série se tornou famosa entre as comunidades, possibilitando a existência de uma comunidade virtual própria, no website da produtora, com milhares de comentários inseridos e participação ativa de seus membros diariamente. Em um primeiro momento, a produção do Red vs. Blue envolveu alguns usuários do jogo eletrônico que, durante uma partida, produziram a primeira peça do Machinima (Episódio 1, Why Are We Here?, 2008). O sucesso desse produto fez surgir a empresa Rooster Teeth, que elaborou o site http://rvb.roosterteeth.com e passou a publicar as sequências do Machinima Red vs. Blue, em suas várias etapas, temporadas e episódios. No site, há toda uma indústria que se desenvolve, com vendas de outros produtos derivados do Red vs. Blue (DVDs, camisetas, bonés, moletons etc.). Instala-se um espaço para a formação de comunidade de fãs que passam a interagir com o produto e entre si, através de comentários, fóruns etc.

Instalou-se, portanto, uma verdadeira indústria cultural no interior da qual o Machinima Red vs. Blue transformou-se em produto de consumo e, como tal é oferecido por meio de anúncios como na figura 1 a seguir.

June 15th, 2009 Recreation is here  As you read this, Recreation Episode 01 has either gone live or is about to do so. Please silence your cell phones and take any crying babies to the nearest orphanage. No dumpsters please, keep it classy. For such a formal occassion as a world premiere, wouldn't you feel more appropriately dressed in a fine Rooster Teeth polo? It's black, snazzy and looks great on the red carpet. Or whatever carpet you happen to be on. Don't forget. Recreation is every Monday this Summer at 9:00 PM Central. Be there, or Matt will spoil it for you.

Figura 1 - Anúncio da quarta temporada de Red vs Blue, no site oficial http://rvb.roosterteeth.com/home.php, acesso em 21-06-09.

A produção e circulação do Red vs. Blue por meio de diferentes sistemas midiáticos, sistemas de mídias concorrentes e fronteiras transnacionais, depende da participação ativa dos consumidores. Nesse sentido, o funcionamento desse Machinima deve ser entendido como muito mais do que um processo tecnológico que une múltiplas funções; em vez disso, ele representa uma transformação cultural à medida que consumidores são incentivados a procurar novas informações e fazer conexões em meio a conteúdos midiáticos dispersos. Como consequência, criam-se os fandom (do inglês Fan Kingdom), conjunto de fãs de um determinado produto midiático (filme, programa televisivo, pessoa famosa ou fenômeno em particular). Fandom (conforme consta no Wikipédia) é utilizado para se referir à subcultura dos fãs em geral, caracterizada por um sentimento de camaradagem e solidariedade com outros que compartilham os mesmos interesses. O site oficial do Red vs. Blue mantém uma Comunidade com 762.895 membros registrados. O papel dos fandoms na produção e circulação do Red vs. Blue está estreitamente relacionado a uma revolução no conceito de autoria.

A primeira partilha da autoria se dá no momento inicial de produção, quando se cria o vídeo durante partidas do jogo online. Enquanto decorre o jogo, os jogadores filmam o Machinima e tornam-se autores de um produto novo, mas que guarda características de sua origem. No caso do Red vs. Blue as características físicas dos personagens do jogo são preservados, sem mudanças pelo processo de modding. O mesmo ocorre com o cenário do Halo, que é usado para situar o enredo do Machinima. Toda a mudança é feita no nível narrativo. Como há esse aproveitamento de personagens e cenários, uma certa subjetividade do autor do Machinima se projeta no sistema através das interfaces e se hibridiza com a do autor do jogo eletrônico. Esse compartilhamento está expresso nos créditos de Red vs. Blue, tanto no próprio vídeo quanto na logomarca exibida na figura 2 :

Figura 2 – Logomarca do Machinima Red vs Blue, que aparece no alto da página inicial do site oficial, onde se lê: “Uma série Machinima baseada no Halo”

Além dessa primeira partilha autoral há ainda outra, estabelecida por meio dos comentários postados pelos membros da comunidade virtual de fãs e das suas discussões nos fóruns, como no exemplo extraído do site da comunidade, a seguir.

June, 2009

It was awesome guys!

You are going to bring back Tucker, right?

Posted by Norabella[4]

Tais comentários interferem e gerenciam a narratividade das sequências e das temporadas, tornando-se co-autores da série. A dimensão dessa cooperatividade pode ser mensurada pelas estatísticas apresentadas pelo site que aloja o Red vs. Blue[5]:

The Rooster Teeth community currently has 762,895 registered members.
Since October 2004 there have been 43 million total posts, with 130 thousand posts in the past week and 13 every minute.
The combined online time for every user on the site is 1191y 142d 16h 2m.
There have been 149 million profile views and 67 million journal views.

É preciso interrogar as identidades discursivas que resultam dessa imensa co-participação textual, problematizar essa autoria partilhada que é possibilitada pela tecnologia digital de produção do Machinima, conforme afirma Manovich:

Antes, deveríamos ler uma frase de uma história ou uma linha de um poema e pensar em outras linhas, imagens, memórias. Agora, a mídia interativa nos pede para clicar em uma frase para ir para outra frase. Em resumo, somos requisitados a seguir associações existentes objetivamente pré-programadas (…) Este é um novo tipo de identificação do trabalho cognitivo apropriada para a era da informação. As tecnologias culturais da sociedade industrial – cinema e moda – nos pediam para nos identificarmos com a imagem corporal de outra pessoa. A mídia interativa nos pede para nos identificarmos com a estrutura mental de outra pessoa. (2005, p. 61)

Uma questão a ser pensada, quando temos essas autorias partilhadas é se haverá uma imposição de subjetividades nos produtos derivados das tecnologias digitais. Podemos, pois, questionar essa cooperatividade do usuário de programas interativos como o do Machinima, argumentando que, ao seguir um caminho “pré-estabelecido” no jogo eletrônico, os criadores de Red vs. Blue não constroem uma identidade única, mas adotam identidades já determinadas pelo produtor do jogo Halo.

1.1 Narratividade

A configuração da narratividade do Machinima é construída pela reformatação de percursos narrativos, labirinto de histórias, teia de ações que reconfiguram as redes e trajetos de personagens, cenários e eventos retirados de seu contexto primeiro (o jogo eletrônico). É preciso admitir, ainda, que o jogo eletrônico (principalmente aqueles classificados como “de ação”) têm, em si, um projeto narrativo cuja inspiração é o modelo do cinema hollywoodiano. Quando um Machinima é produzido a partir das especificidades desse projeto narrativo, surgem algumas características determinadas pelo meio digital.[6]

Para analisar a narratividade do Machinima Red vs. Blue, seguimos propostas do campo da narratologia, derivadas dos trabalhos de Propp (1983) e, particularmente, Claude Bremond em seu trabalho sobre a lógica e os possíveis da narrativa (1971).  Para esse campo teórico, a narratividade é um efeito produzido pelos elementos essenciais de toda narrativa, que deve conter, necessariamente, personagens que realizam uma sequência de ações (percurso narrativo) que se desenrola em espaços e tempos.

Bremond (1971), basicamente, trabalha com a seguinte questão: “É possível descrever a completa rede de opções que a lógica oferece ao narrador em qualquer ponto da história para continuar com seu desenvolvimento?” (apud FRASCA, 1999). Essa rede de opções, que não forma a narrativa em si, mas os “possíveis narrativos”, é característica central da arquitetura do Machinima e, dessa intrincada teia de possibilidades deriva o seu potencial de interatividade. Definitivamente, a produção do Machinima instaura uma nova forma de criação narrativa. Isso porque um percurso narrativo pré-moldado (no jogo eletrônico) será reconfigurado em um novo gênero (filme) e, portanto, o autor do jogo eletrônico e o autor do Machinima encontram-se necessariamente associados à produção e à circulação de imagens, sons e palavras, participando de um mesmo projeto cooperativo de produção de sentidos (COUCHOT, 1997, p. 139-140).

Em Red vs Blue o percurso narrativo do jogo Halo é tomado de forma essencialmente polêmica: tudo o que é característica de um jogo de ação – movimento, rapidez, violência, isto é, sucessão de ações que visam ao objetivo de destruir os inimigos – é subvertido. Essa subversão, feita por meio da paródia que problematiza o jogo de ação, fica visível no episódio 1 da primeira etapa da série (Blood Gulch Chronicles, 2003-2007), cujas cenas e diálogos (traduzidos do inglês para o português) apresentamos a seguir:

Red vs Blue – episódio 1 (2:34 minutos) –  “Por que nós estamos aqui?”

(Câmera sobe rochedo de um canyon desértico. Em cima, na plataforma, há dois personagens da equipe Vermelhos conversando).

– HEI!

– SIM?

– VOCÊ SABE POR QUE ESTAMOS AQUI?

– Esse é um dos mistérios da vida…

– POR QUE ESTAMOS AQUI? Somos um tipo de coincidência cósmica ou haverá realmente Deus observando tudo? Você sabe, com um plano para nós e tudo mais…

– Eu não sei, cara, mas isso me manteve acordado na noite passada…

– O QUE? Eu pergunto por que estamos aqui, nesse canyon…

– O que era aquilo tudo sobre Deus?

– Ahn… nada!

– Não quer falar sobre isso?

– NÃO!

– Tem certeza?

– SIM!

– Sério, cara, por que estamos aqui? Até onde sei, isto é um canyon quadrado no meio do nada, sem chance de entrar ou sair. Fazendo uma análise, se montarmos uma base vermelha aqui, vai aparecer uma base azul lá. E a única razão de termos uma base vermelha aqui é porque eles tem uma azul lá…

– Por isso lutamos entre nós…

– Não, veja, mesmo se fôssemos expulsos hoje e eles viessem, teríamos duas bases aqui.

– Que droga eles fariam?

– O que tem isso? Veja, eu me alistei para matar aliens… Daí o Master Chief explodiu toda a armada e agora estou no meio do nada lutando contra caras azuis.

(Corte. Close nos personagens da equipe Azul, do ponto de vista do jogador. O diálogo acontece entre dois Azuis, um deles está observando os Vermelhos com a mira do rifle, o outro está ao seu lado, sem mira. O diálogo inicia com a pergunta do Azul que está sem a mira)

– O QUE ELES ESTÃO FAZENDO?

– O QUÊ?

– Eu disse: O QUE ELES ESTÃO FAZENDO?

– QUE PORRA, ESTOU CHEIO DE OUVIR ESSA PERGUNTA!

– VOCÊ TEM A DROGA DO RIFLE E EU NÃO VEJO PORRA NENHUMA! NÃO FIQUE PUTO COMIGO POIS NÃO VOU FICAR AQUI SENTADO COÇANDO MEU SACO!

– ESTÃO APENAS PARADOS CONVERSANDO, OK? É TUDO O QUE FAZEM, OK? PARADOS, CONVERSANDO, SEMPRE. É O QUE FIZERAM NA SEMANA PASSADA, É O QUE FIZERAM HÁ CINCO MINUTOS QUANDO VOCÊ ME PERGUNTOU. E ENTÃO DAQUI A CINCO MINUTOS, QUANDO ME PERGUNTAR DE NOVO ELES ESTARÃO LÁ, PARADOS, CONVERSANDO…

(Silêncio. Close no Azul sem mira. Pergunta em voz baixa)

– E sobre o que eles estão conversando?

– QUER SABER DE UMA COISA? TE ODEIO PRA CARALHO!!!

(Corte. Close nos Vermelhos conversando)

– E por falar em desperdício de recursos, não deveríamos estar lá fora, procurando por novas formas de vida inteligente?

– Você sabe, lutando contra eles…

– É! Não brinca, foi por isso que colocaram o chefe no comando…

(Corte. Mudança de plano, câmera focaliza abaixo do rochedo. Chefe fala com os dois Vermelhos)

– EI, OS DOIS EMBAIXO, AGORA!

– Ah, droga!

– SIM, SENHOR!

(FIM. Créditos Rooster Teeth. Créditos: Machinima feito a partir do game Halo)

Para análise da narratividade desse episódio do Machinima, focalizaremos os elementos essenciais da sua narrativa em contraposição com a do jogo de ação (Halo) que lhe serviu de base.

1.2 Personagens

Red vs Blue utiliza os personagens do jogo Halo, sem mod (modificação). O efeito humorístico vem, inicialmente, desse aproveitamento. Fisicamente, eles são típicos dos jogos de ação – são lutadores musculosos, caracterizados por uniformes de guerra, portam armas poderosas, mas não agem como tal. Foi criado um episódio, numerado como 0 (zero), denominado “Elenco”, que apresenta os personagens inseridos na trama da primeira temporada. É uma espécie de trailer no qual são apresentados os personagens em ações que mostram suas características cômicas, derivadas do paradoxo de serem típicos de jogos de guerra mas estarem sempre se colocando em situações que desconstroem as ações prototípicas.

Em segundo lugar, o humor em Red vs Blue é provocado pelo deslocamento: enquanto no jogo eletrônico esses personagens são manipulados pelo jogador (visão em primeira pessoa), no Machinima eles ganham autonomia, cria-se a ilusão de que se tornaram independentes (é essa “autonomia” que possibilita que eles questionem a ação do jogo, como veremos adiante). O terceiro elemento da composição dos personagens diz respeito à inserção do áudio e à criação dos diálogos entre os personagens. Os criadores imitam a forma de falar de personagens típicos de filmes hollywoodianos de ação, como o personagem Rambo (Sylvester Stalone), por exemplo. Nesse episódio 1 (“Por que nós estamos aqui?”) marcam-se diferenças na maneira de se expressarem os Vermelhos e os Azuis: ambos usam um inglês típico do meio-oeste americano que lembra filmes de ação; entretanto, enquanto os Vermelhos usam linguagem comum, recheada de expressões típicas como “you know it“, “ok?” e entonação de conversa amigável, os Azuis usam vocabulário grosseiro com palavras como “fuck“, “goddam” e entonação rude, em voz alta, para expressar violência verbal. O tom parodístico e o humor são criados pelo conteúdo dos diálogos, impossíveis em um jogo de guerra pois são conversas filosóficas sobre “por que estamos aqui?”, como, por exemplo, no seguinte trecho de diálogo entre os Vermelhos:

– VOCÊ SABE POR QUE ESTAMOS AQUI?

– Esse é um dos mistérios da vida…

– POR QUE ESTAMOS AQUI? Somos um tipo de coincidência cósmica ou haverá realmente Deus observando tudo? Você sabe, com um plano para nós e tudo mais…

– Eu não sei, cara, mas isso me manteve acordado na noite passada…

– O QUE? Eu pergunto por que estamos aqui, nesse canyon…

Conforme afirmamos anteriormente, Red vs. Blue é feito a partir do uso de atores humanos manipulados pela movimentação dos personagens. Os produtores encontram inúmeras possibilidades em Halo, usando os controles do próprio jogo para movimentar o personagem pelo ambiente. A variedade de tomadas nas cenas, a partir do uso de inúmeros movimentos tradicionais da câmera cria uma sofisticada produção cinematográfica. No início do cinema, as câmeras eram fixas, dificultando as possibilidades de cenas, já que deveriam acontecer no campo visual da câmera. Com o surgimento de novas lentes, tripés, e outros equipamentos sofisticados, foram possíveis novos movimentos em cena. Em Halo, os produtores do Machinima encontram campo fértil para colocação e uso das câmeras, lançando mão de sequências típicas de cinema pelas panorâmicas (movimento que descreve a cena horizontalmente), tilt (movimento vertical da câmera) e travelling (movimento de aproximação ou distanciamento, tanto na lateral quanto na diagonal ou frontal), conforme detalhamos no próximo item.

1.3 Espacialidade

Red vs Blue aproveita cenários do jogo Halo. Nesse episódio 1 (“Por que nós estamos aqui?”) usa-se o cenário de um canyon[7] e, por movimentos de câmera e focalização, a ação se situa em quatro perspectivas:

a) inicia-se com um movimento de câmera que focaliza o alto de um penhasco, em cuja plataforma se encontram os dois Vermelhos conversando;

b) por meio de um corte que focaliza a visão do jogador (primeira pessoa) simulando a mira da arma de um personagem Azul, a ação se desloca para outro ponto do canyon, de onde dois Azuis observam os dois Vermelhos;

c) outro corte traz a perspectiva, novamente, para a plataforma em que estão os dois Vermelhos;

d) a câmera posiciona-se embaixo da plataforma, onde está o Chefe, este corta o diálogo dos dois Vermelhos e ordena que desçam do penhasco.

O uso dos cenários do jogo em contraposição com as falas dos personagens e com as ações que não são típicas de narrativas de jogos de ação também provoca efeito humorístico no Machinima.

1.4 Sequência de ações (percurso narrativo)

De maneira geral, um Machinima é produzido a partir de certas sequências narrativas do jogo eletrônico que está em sua base. Os criadores de Machinima escolhem algumas ações narrativas enquanto jogam e, por meio de técnicas próprias à produção de Machinimas (conforme nossa descrição no capítulo 2), criam um novo enredo.  O Machinima pode se centrar em um certo momento da narrativa do jogo ou pode misturar momentos diferentes; em ambos os casos, cria-se uma nova narrativa. Por isso, para analisar a narratividade de Red vs Blue lançamos mão da idéia de Bremond (1971) sobre os “possíveis narrativos”, isto é, dentre as inúmeras possibilidades que a narrativa do jogo Halo oferece, quais percursos são utilizados na produção desse Machinima?

Primeiramente, observamos que Red vs Blue é classificado como Machinima do gênero comédia. Já afirmamos que a caracterização dos seus personagens e cenários é um dos elementos que provoca humor, pela contraposição entre aquilo que é prototípico do jogo de ação e aquilo que vai ocorrer no Machinima. O mesmo acontece com a narrativa de Red vs Blue, pois seu enredo é uma problematização dos jogos (e filmes) de ação. O Machinima Red vs Blue subverte a narrativa tradicional em alguns aspectos:

a)                            em uma narrativa de ação há uma sequência rápida de acontecimentos encadeados; essa rapidez é obtida pela agilidade da focalização com o uso de várias câmeras; Red vs Blue, episódio 1, focaliza, em um primeiro momento,  a suspensão da ação, em que os personagens Vermelhos, em vez de estarem lutando (como no jogo), conversam sobre suas existências, perguntam-se “por que estão ali”, “é obra de Deus?”, “qual o sentido da luta” etc.;

b)                            a passagem para o segundo momento narrativo é marcada pela mudança de câmera na qual o ponto de vista do jogador (primeira pessoa) simula a visão de uma lente de mira, atrás da qual está um personagem Azul. Ele observa os Vermelhos pela mira. Ao seu lado, o colega Azul (que não tem a visão da mira) quer saber o que os Vermelhos estão fazendo. Novamente, o diálogo dos dois subverte a narrativa de ação: em vez de atacarem, lutarem, dispararem suas poderosas armas, eles questionam o fato de os dois Azuis estarem conversando. Esse diálogo dos Azuis é cômico também por esse motivo: eles estão impacientes, bravos porque os dois Vermelhos, em vez de cumprirem seus papéis na narrativa de ação, ficam conversando, sem parar, estão “há uma semana, parados, conversando”.

c)                            Ao retornar a câmera para a perspectiva dos dois Vermelhos, focaliza-se a continuidade de suas “reflexões filosóficas”, sobre o desperdício de estarem ali conversando em vez de lutarem contra os inimigos;

d)                           O quarto movimento de câmera apresenta um novo personagem – o Chefe – este sim típico dos jogos de ação – que corta a conversa dos Vermelhos e os chama para o retorno à narrativa de ação. Um dos Vermelhos diz “que droga!”; o outro acata com a expressão de típico uso militar “SIM, SENHOR!”.

1.5 Temporalidade

A todos esses elementos anteriores que produzem a comédia por meio da paródia ao gênero do jogo, acrescenta-se, ainda, em Red vs Blue o efeito da construção da temporalidade. Se no jogo e no filme de ação há uma rápida passagem do tempo (afinal, o que importa é o ritmo acelerado das ações), nesse Machinima brinca-se com a passagem do tempo. Primeiramente, a própria pergunta “o que estamos fazendo aqui?” suspende o tempo rápido da ação para que os personagens Vermelhos dialoguem sobre suas “crises existenciais”. Nesse diálogo, eles se referem a um tempo indeterminado, em que as lutas se repetem e eles não sabem a razão. O mesmo ocorre no diálogo entre os Azuis, que observam indefinida e repetitivamente a conversa dos Vermelhos: a impaciência deles vem do fato de a conversa se estender “há semanas” e nenhuma ação de luta acontecer. A quebra da repetitividade temporal é feita pelo Chefe, que corta a suspensão da ação e ordena que os Vermelhos desçam do penhasco.

2 A série Red vs. Blue

Essas características apontadas no episódio 1 de Red vs Blue (Blood Gutch Chronicles, 2003-2007) se mantém – com pequenas variações, já que outros personagens, cenários e situações narrativas são acrescidos – nos episódios seguintes da série. O próprio título da série – Red vs Blue – mostra que é em torno da luta (ou, mais precisamente, a ausência de luta e de outras ações previstas no jogo, como, por exemplo, a exploração do ambiente que rende a aquisição de armas, insígnias e o acúmulo de pontos) entre as duas equipes que se desenvolvem os argumentos dos episódios. Há regularidade na técnica de produção e edição que utiliza procedimentos tanto do jogo quanto do cinema. A paródia e a comicidade (baseadas na transgressão dos conteúdos narrativos do jogo de ação) é uma marca essencial da série Red vs Blue e que garante a fidelidade dos fãs. Afinal, a comunidade de fãs espera ver esses elementos na sequência dos episódios, acompanhar (e participar da) a desconstrução de um gênero que conhecem bem, que vivem interativamente ao manipularem os personagens em primeira pessoa no jogo eletrônico. A série de Machinima Red vs Blue constitui-se em um espaço em que é possível quebrar as regras do jogo: talvez seja esse o principal ingrediente de seu sucesso entre os espectadores.

Para visualizar essa regularidade, analisamos a seguir alguns elementos de um episódio e dos dois trailers realizados para a série, a título de demonstração e ampliação das discussões anteriores.

3 O episódio 2 (Blood Gutch Chronicles, 2003-2007)

O episódio 2, intitulado “Red gets a delivery” (“Os vermelhos recebem uma encomenda”) é muito semelhante, tanto nas técnicas empregadas quanto no seu conteúdo, ao episódio 1:

a) são utilizados os mesmos personagens do episódio 1, do jogo Halo, sem modding (os dois Vermelhos, o Chefe, os dois Azuis); há a introdução do personagem Lopez, que ainda não se consegue visualizar, pois está dentro do veículo; é anunciado, na fala do Chefe, que nos próximos episódios chegará um novo personagem (um “recruta”). Assim como no episódio 1, o cômico é produzido pelas características físicas e por marcas típicas da fala dos personagens, que imitam a maneira de falar de personagens de filmes B de ação (rudeza de vocabulário; uso de expressões como, por exemplo “ladies” (“maricas”) ou “son” (“filho”) na fala do Chefe ao dirigir-se aos soldados etc.);

b) a ação se desenvolve no ambiente do canyon, em duas perspectivas: inicialmente, em um espaço em que se localizam os Vermelhos; a mudança de espaço é feita pela mesma técnica do episódio 1 – por meio da visão em primeira pessoa, na lente da mira da arma do Azul; a ação retorna ao espaço dos Vermelhos;

c) a paródia caracteriza a narrativa em que personagens típicos de jogos de ação dialogam sobre coisas “impossíveis” nesse gênero. Como no episódio 1, o humor é produzido por esse nonsense, por essa ação impossível. A ação narrativa do episódio 2 focaliza um veículo que a equipe dos Vermelhos acaba de receber (daí o título, “Os vermelhos recebem uma encomenda”) e todo o diálogo transcorre em torno do nome a ser dado ao veículo, cujo nome (M12-LRV) “é muito difícil de ser usado em uma conversa”. São sugeridos nomes de animais que vão das características do veículo a comparações absurdas; essa denominação é sugerida tanto pelos Vermelhos (perto do veículo) quanto pelos Azuis (em seu posto de observação): “javali”; “puma”; “unicórnio”; “chupa-cabra”; “chupa coisa” etc.;

c) a temporalidade estabelece relação entre o passado (as lutas anteriores), o presente (em que o arsenal está sendo ampliado para a continuidade da guerra) e o futuro (tempo da chegada de outros personagens). Tudo prepara a vinda de novos episódios, como é típico de seriados fílmicos ou televisivos. São os “ganchos” narrativos que mantém a audiência e garantem a fidelidade das comunidades de fãs. A partir deles, abrem-se “possíveis narrativos” e fomenta-se a co-autoria da comunidade, que irá postar suas opiniões nos fóruns de discussões virtuais. Alimenta-se, assim, toda a indústria típica da cultura da convergência.

4 O trailer Recreation (2009)

A evidenciar as relações entre técnicas do jogo e do cinema, foi produzido o trailer da temporada atual de Red vs Blue, cujo título é “Recreation Trailer”, feito a partir do jogo Halo 3. Ele apresenta muitas características do gênero cinematográfico hibridizadas com características do jogo eletrônico.

A primeira delas é a movimentação ágil de câmeras, que permite ao espectador acompanhar a movimentação de personagens no espaço dos cenários. Essa agilidade é obtida pela captação das cenas em plano aberto, que produz o efeito de profundidade e extensão do espaço do canyon. Assim, aquele espaço já conhecido no episódio 1 da série (“um canyon quadrado no meio do nada, sem chance de entrar ou sair”, nas palavras do personagem Vermelho) amplia-se e o espectador pode explorar outras dimensões do cenário. Essa exploração do espaço (típica do jogo de ação, em que o jogador acumula pontos à medida que avança em diferentes cenários) vai ser recorrente nos episódios seguintes da série.

Outra característica do gênero trailer se impõe desde o início, quando acompanhamos o deslocamento do personagem pelo cenário ampliado do jogo. À medida que ele avança, o espectador vai conhecendo o espaço geral e  tem a síntese do enredo pois vão sendo encontrados outros personagens. Trata-se da síntese narrativa, própria ao trailer cinematográfico, aplicada à linguagem do Machinima.

Uma das características dessa linguagem deriva dos cenários em 3D, que criam ilusão de referencialidade, pela simulação do real em três dimensões. Por exemplo, enquanto o personagem corre pelo cenário, nosso olhar acompanha o trajeto como se estivéssemos dentro daquele espaço, tanto que. ao pisar na água de um rio, gotas espirram na tela. Ou quando um personagem em chamas atira-se na água e, além de vermos o fogo apagar-se ouvimos o barulho característico e gotículas espirrando do rio.

Essa modelização do cenário tridimensional nos mostra uma importante característica do Machinima, isto é, a produção de efeitos realísticos em 3D que operam transformações em nossa percepção do real e do virtual.

As técnicas de produção do Machinima caracterizam-se por possibilidades múltiplas e plurais, marcadas pela bricolagem criativa, por uma universalidade estilhaçada em diferentes singularidades. Cria-se o sincrético sem síntese, o real como mosaico. A realidade virtual sobrepõe-se no real, criando novas singularidades e maneiras de viver e experimentar a vida correndo na tela.

Essa ilusão de real produzida pela realidade virtual não é, no entanto, o primeiro mundo fictício inventado pela tecnologia: a ficcionalidade acompanhou, desde sempre, a história humana e o desenvolvimento dos diferentes meios de comunicação (oralidade, escrita, imprensa, meios técnicos, meios digitais). A cada momento correspondeu o aprofundamento dessa relação entre o real e o imaginário (SANTOS, 1997, p.115)[8]. Por isso, comentando o impacto do desenvolvimento de tecnologias digitais sobre a sociedade contemporânea, Gianni Vattimo, observa que hoje, para nós, a realidade é mais o resultado do cruzamento, da contaminação das imagens, das interpretações, das múltiplas reconstruções que a mídia distribui. No entanto, antes mesmo que o mundo alternativo da realidade virtual fosse inventado, o princípio de realidade já entrara em crise – como se fosse necessário primeiro explodir a visão do mundo em múltiplas visões e só em um segundo momento fazer a realidade virtual como ampliação da realidade. A partir do momento em que a sociedade passou a deslocar parte de seu habitat para os meios digitais, instituiu novas formas de relações e integração entre os indivíduos e permitiu criar ambientes virtuais que impõem, também, novas formas de relações entre o real e o virtual.

5 Trailer The Blood Gulch Chronicles (2003)

Logo após o episódio 1, em 2003, foi criado o primeiro trailer da série. Nele é possível assistir à essência da sátira que será desenvolvida no enredo. Ele tem, no início, todas as características de um trailer cinematográfico que lembra o início da série de filmes Guerra nas Estrelas (Star Wars): as imagens sínteses da série se sucedem na tela, enquanto umaa voz em off vai contando o resumo das principais idéias do script da trama, situando a ação (“No ano de 2552, no último ano da invasão Covenant…”). Na tela, entretanto, essa narração vai sendo transcrita duas vezes (no alto e embaixo da tela). Trata-se de uma simulação que mostra os dois jogadores que estão jogando o Hallo e sendo filmados para a produção do trailer do Machinima.  É portanto, uma metanarração, que mostra (e brinca com) a técnica de produção do Machinima.

Até um momento do vídeo, as duas transcrições estão sincronizadas e o segundo jogador reproduz exatamente o que está sendo narrado em off. A partir de um certo momento, ele começa a resumir. A voz em off diz: “ei, você tem de digitar exatamente o que eu digo!”. E o jogador 2 diz: “estou resumindo porque essa introdução está muito longa!”. Eles então começam a brigar pois o “resumo” do jogador 2 passa a interpretar o que o jogador 1 está escrevendo. Por exemplo, em cima da tela aparece a narração “Houve um breve, mas violento período de guerra civil entre os humanos” e o outro escreve “enquanto isso uns caras ficaram putos da vida”. Daí até o final, os dois brigam, desconstruindo o próprio gênero trailer que parecia ser o gênero a ser produzido no Machinima.

Esse trailer, portanto, resume tanto as técnicas de produção do Machinima (ao mostrar os dois jogadores sendo filmados) quanto as características principais da série e do gênero “comédia de ficção científica”, denominação que o próprio site da Rooster Teeth aplica a esse Machinima.

6 A hibridização entre cinema e jogo eletrônico

No Machinima, como pudemos analisar nos episódios e trailers de Red vs Blue, por meio da hibridização de técnicas do jogo eletrônico e do filme, produz-se aquilo que Weissberg (1996)[9] denomina a telepresença real no virtual: em uma “realidade artificial” o ser humano pode mergulhar no universo virtual, utilizando telas que funcionam como órgãos de visão (não mais como fundo de projeção) onde a mão de um indivíduo, utilizando luvas especiais acopladas a um computador, tornam-se imagem-síntese desta mão. Com isso o virtual pode ser visto e tocado como realidade “natural”. Há efetivamente uma telepresença do real no virtual. Continua, contudo, sendo o ser humano a dar consistência ao virtual.

Para Parente (2002)[10], as tecnologias do virtual exprimem o regime de visibilidade em que vivemos, no qual não se trata mais de pensar um real que só existe em função do que a imagem permite visualizar. É uma sociedade constituída por indivíduos que se relacionam e interagem em um mundo real e também em um mundo virtual. O real passa a não ser a forma privilegiada, ou o único e melhor meio humano, mas apenas mais um junto com o mundo virtual possibilitado pelas novas tecnologias.

A criação do efeito de realidade no virtual, no Machinimma, é derivado da hibridização de mídias (jogo / cinema). Essa hibridização não segue direção de “mão única”, isto é, vai apenas da interferência do cinema no digital, mas também em sentido inverso. O cinema, desde os anos 60, vem desenvolvendo experimentações que se radicalizaram, a partir da década de 80, com as tecnologias oferecidas pelos computadores. No chamado “cinema digitalmente expandido”, as tecnologias de ambientes virtuais produzem espaços de imersão narrativa no qual o usuário interativo assume os papéis de câmera e de editor, transformando a relação entre o filme, o autor, o diretor e seus espectadores[11]. Essa expansão do cinema para os meios digitais foi possibilitada pelo desenvolvimento de interfaces entre humanos e computadores, isto é, de programas para processamento de textos verbais e não-verbais com ferramentas que redefiniram o computador como uma “máquina de simulação” de mídias tradicionais. A capacidade do computador de simular outras mídias (simular interfaces e “formatos de dados” como texto escrito, imagem e som) é tão revolucionária quanto suas demais funções. A maioria dos aplicativos para criação e manipulação de mídias não simula simplesmente as interfaces das mídias tradicionais, permitem novos tipos de operações sobre o conteúdo das mídias.

O Machinima pode ser pensado como uma “meta-mídia”, já que ele contém tanto a estrutura da mídia original (personagens, ações, ambientes do jogo eletrônico) quanto os aplicativos que permitem ao usuário gerar descrições dessa estrutura e mudá-la, criando um novo gênero. Essa natureza complexa do Machinima é derivada das características do filme digitalmente produzido:

a) metamorfose: por ser criado a partir de jogo eletrônico, suas possibilidades são múltiplas já que as relações entre as duas mídias (jogo/filme) está em constante construção e renegociação;

b) heterogeneidade: o Machinima é constituído por imagens já modelizadas no jogo (personagens, cenários), às quais se acrescentam edições de áudio (falas, diálogos, músicas, sons incidentais, etc), de legendas etc.;

Devido a essas características, à sua arquitetura não-linear, a hibridização de mídias permite a construção do Machinima como texto “tridimensional”, dotado de estrutura dinâmica que o torna manipulável interativamente (MACHADO, 1997, p.146).

7 O Machinima no Brasil

A história do Machinima no Brasil é recente, tendo se fortalecido com a chegada do Second Life Brasil no país em 2007. O Second Life, ou SL, é um universo 3D interativo criado em 2003 onde os usuários podem conversar com outras pessoas, construir, comprar e vender itens, dançar, jogar e realizar atividades.

No mês de Junho de 2009, pouco antes de finalizar o presente trabalho, tivemos a notícia do fechamento do Second Life Brasil. As conseqüências desse fato para a produção de Machinimas no país ainda são incertas. Dentre as ferramentas disponíveis no ambiente, havia uma específica para produção de Machinimas. Essa possibilidade de criação foi essencial para o fenômeno que ocorreu no Brasil: diferente dos outros países, a produção do Machinima se concentrou no ambiente Second Life, com a criação de comunidades de usuários produtoras e interessadas em Machinimas. Até então, havia poucos usuários isolados, sem identidade, pelo país.

Para fazer parte do SL, era necessário ter um computador, conexão à Internet e o programa cliente, baixado no site do SL Brasil[12], gratuitamente. Não era preciso pagar para criar seu avatar, mas sim para efetuar construções, já que era necessário a posse de um terreno no mundo virtual. A versão brasileira do SL era distribuída pela empresa Kaizen Games e pelo portal iG. Para fortalecer ainda mais a comunidade de usuários, o Grupo Estado editava o MetaNews, jornal do SL Brasil com notícias e dicas de lugares interessantes, eventos e agenda cultura sobre o mundo virtual.

Uma mídia ainda pouco conhecida no país, o único espaço de informações sobre o Machinima, até então, era o site www.machinimabrasil.com.br, sem atualizações desde Fevereiro de 2008. Dentre as razões principais que podem ser levantadas, a falta de referências nacionais é uma delas. Do ponto-de-vista da sua produção, as ferramentas disponíveis para uso, os textos e vídeos tutoriais, as comunidades on-line de usuários são todas em língua estrangeira, tornando-se uma barreira para a ampla expansão do Machinima no país. Além disso, o desenvolvimento de jogo eletrônico 3D no Brasil é também recente. Somente nos últimos anos as desenvolvedoras tiveram acesso às tecnologias de produção desses jogos, o que justifica o atraso no conhecimento e interesse em um produto como o Machinima.

Considerações finais

Neste artigo, tomamos como objeto de estudos o Machinima e para compreender suas características configuracionais, alguns pontos foram essenciais.

Tratando de um objeto cujo desenvolvimento é recente, apesar do grande alcance e sucesso obtidos no exterior, no Brasil sua história ainda é bastante incipiente, limitando-se a comunidades ligadas ao Second Life Brasil. Esse pouco alcance é derivado do estágio em que ainda se encontra o desenvolvimento de jogos eletrônicos 3D em nosso país. Outro obstáculo aos brasileiros é o fato de toda literatura sobre Machinima e todos os sites serem ainda em língua estrangeira. Nesse aspecto, pretendo cooperar para a ampliação do público tanto produtor quanto consumidor dessa nova mídia. Essa colaboração é realizada no plano analítico, ao tomar como objeto de análise o Machinima Red vs Blue, produzido a partir do jogo Halo.

Outro aspecto analisado neste trabalho diz respeito à narratividade no Machinima Red vs Blue. Os elementos fundamentais da narrativa tradicional (personagens, ação, espaço e tempo) foram mobilizados para acentuar as relações entre gêneros que estão na base da produção do Machinima. Pudemos mostrar que há convergência entre características do jogo eletrônico e do cinema e, deste modo, há uma via de mão dupla em que se modificam tanto as técnicas cinematográficas quanto aquelas que dizem respeito à produção de jogos eletrônicos.

Analisamos uma de suas características principais: a hibridização de gêneros. Tal característica diz respeito à remixagem ou, nas palavras de Manovich (2001) a utilização de bancos de dados para a composição de um novo objeto artístico, na medida em que os produtores do Machinima recorrem a um jogo eletrônico como base para a composição de cenários, personagens e eventos. Há uma espécie de bricolagem, de re-utilização de imagens já compostas a fim de produzir efeitos estéticos (BALLOGH, 1996). Outro aspecto configuracional importante abordado em nossa análise diz respeito à hibridização de técnicas de montagem e de edição cinematográfica e seus efeitos na estrutura narrativa (ação, personagens, espaço, tempo) do Machinima Red vs Blue, acentuando, particularmente, os elementos do gênero “comédia de ficção científica”.

Ao analisarmos o Machinima do ponto de vista da hibridização de mídias, algumas categorias conceituais podem suscitar outros debates, em futuros trabalhos:

a) pode-se colocar em discussão as noções tradicionais de criatividade e originalidade, já que há uma estrutura narrativa já definida no jogo eletrônico, que é atualizada em outra mídia (filme, Machinima);

b) a existência de um percurso narrativo pré-determinado pode suscitar a discussão sobre a relação entre a cultura da remixagem e o conceito/ prática do readymade;

c) pode-se interrogar com quais tipos de interfaces culturais o Machinima dialoga, haja vista que ele nasce de outras formas culturais já familiares (por exemplo, as técnicas de edição e montagem do cinema).

Eis, pois, um verdadeiro campo de debates para se pensar as transformações provocadas pelas novas tecnologias na cultura e entretenimento, que abre várias perspectivas de investigações. A intensificação da convergência de diferentes mídias produz novos produtos culturais. Ao propor a investigação das técnicas de produção e das configurações do Machinima, inserimos nossa reflexão no campo dos recentes debates sobre as transformações da linguagem midiática derivadas do experimento de novas possibilidades tecnológicas.

Referências Bibliográficas

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[1] Manovich (2005, p. 40), chama a atenção para o fato de que foi só a partir de 1995 que a imagem em movimento passou a preencher toda a tela do computador (por exemplo, no jogo Johnny Mnemonic, baseado no filme de mesmo titulo) e, portanto, cem anos depois da invenção do cinema ele foi reinventado em uma tela de computador.

[2] JENKINS, H. Cultura da convergência. São Paulo: Aleph, 2008.

[3] Desenvolvido pela empresa Bungie e publicado pela empresa Microsoft Game Studios, pode ser gravado direto das plataformas Xbox e Xbox 360.

[4] “Vocês são demais, caras! Irão trazer o Tucker de volta, certo?”. O comentário foi postado pelo avatar Norabella na ocasião do lançamento de um episódio recente, no site da produtora. Nele, o espectador sugere aos produtores o retorno do personagem Tucker.

[5] http://rvb.roosterteeth.com/home.php, acesso em 21-06-09.

[6] Nesse sentido, as contribuições do trabalho de Gomes (2006, p. 69-94) foram importantes para nossa análises.

[7] Saberemos, a partir do episódio 2, que se trata do cenário da Base Avançada de Blood Gulch.

[8] SANTOS, Laymert Garcia dos. Considerações sobre o virtual In: FERREIRA, Leila da Costa (Org) A Sociologia no horizonte do século XXI. São Paulo: Boitempo Editorial, 1997.

[9] WEISSBERG, Jean-Louis. Real e Virtual In: PARENTE, André (Org) Imagem- Máquina: a era das tecnologias do virtual. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 1996.

[10] PARENTE, André. A última versão da realidade: o virtual como metafísica da exterioridade. http://www.eavparquelage.org.br/eav/ revista/andreparente.htm., 2002. Acesso em 08/02/2008.

[11] É necessário pensar na história da “expansão” do cinema nos meios digitais e polemizar as noções de “interatividade” e “criatividade” derivadas dos meios digitais.

[12] www.secondlifebrasil.com.br

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Este post tem um comentário

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    leandro

    Leandro ECA/Usp

    Gostei muito do txt, da abordagem da narrativa atual e inclusive da proposta de metodologia para analisar o machinima .
    Concordo q ao machinima deveria ser dado + valor no Brasil.
    Um objeto de pesquisa multifacetado e rico

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