Adaptações literárias e o cinema de autor no Cinema Novo

ADAPTAÇÕES LITERÁRIAS NO CINEMA NOVO

Quando se pensa a questão da transposição de uma narrativa literária para o cinema, automaticamente nos deparamos com a questão da autoria. Ora, se a idéia central, o assunto, o tema sobre o qual o filme irá se debruçar já está dado em uma obra literária, qual a validade autoral desta obra derivada?
Tal questionamento está ligado intimamente com o paradigma da fidelidade da adaptação. Grande parte do público leigo se apóia neste pressuposto para analisar criticamente uma adaptação literária, se apoiando no quão a obra fílmica consegue transplantar a linguagem verbal para a linguagem cinematográfica.

Para Randal Johnson, a fidelidade é um falso problema:

A insistência na ‘fidelidade’ – que deriva das expectativas que o espectador traz ao filme, baseadas na sua própria leitura do original – é um falso problema porque ignora diferenças essenciais entre os dois meios, porque geralmente ignora a dinâmica dos campos de produção cultural nos quais os dois meios estão inseridos”1

Uma adaptação literária não pode ser encarada como uma mera tentativa de tradução textual para as telas de cinema, até porque se trata de duas linguagens distintas. Enquanto num texto há apenas a presença da linguagem verbal para estruturar sua narrativa, no cinema temos a presença não só da linguagem verbal (que pode estar presente na forma de texto como em letreiros, por exemplo, ou na forma de diálogos), como também temos a linguagem visual, sonora e musical.

Além do distanciamento entre linguagens, o filme e sua obra original distanciam-se também através do tempo. É através dessa distância que se assegura novas percepções diante do tema retratado. A adaptação deve ser considerada então um diálogo “não só com o texto de origem, mas com seu próprio contexto, inclusive atualizando a pauta do livro” 2

É sob essa perspectiva da figura do diretor como um criador de pontos de vista sob determinada obra, que desafia, reinventa e improvisa recursos que possibilitem trazer soluções visuais equivalentes aos recursos estilísticos presentes numa obra literária, que se insere a figura do cineasta autor, tal qual preconizava os ideais do cinema novo.

A chamada “política dos autores” nasce nos anos 50 na França, através do grupo de jovens críticos franceses que compunham a revista Cahiers Du Cinéma. Já na década de 30 o cineasta Jean Renoir usava a expressão “autor” para se referir ao diretor cinematográfico.

Para Glauber Rocha, o cinema de autor é um “cinema livre”, cinema esse que pudesse representar uma alternativa à produção comercial, que se relacionasse diretamente com as questões políticas, sociais e culturais de nosso país, refletindo a nossa realidade social, tematizando as questões do povo, dos excluídos.

“Nossa geração tem consciência: sabe o que deseja. Queremos fazer filmes antiindustriais, queremos fazer filmes de autor, quando o cineasta passa a ser um artista comprometido com os grandes problemas de seu tempo, queremos filmes de combate na hora do combate e filmes para construir no Brasil um patrimônio cultural.” 3

Em seu livro Revolução do Cinema Novo, Glauber chama atenção para a “consistência cultural revolucionária” que o cinema tinha na década de 60, equivalente ao poder que a literatura teve na década de 30. As adaptações literárias surgidas nesse período tiveram, pois, uma significação muito forte ao resgatar temáticas trabalhadas anteriormente por autores literários sob uma perspectiva nova: a de levar para as telas de cinema obras que pudessem discutir problemáticas nacionais, discutindo, narrando, poetizando, discursando e analisando temas ligados à fome.

É tomando como base esse contexto cultural e histórico que discutirei os filmes Vidas Secas e A Hora e a Vez de Augusto Matraga, procurando buscar neles traços que possam identificar o caráter autoral impresso por cada diretor em sua adaptação literária.

VIDAS SECAS (Nelson Pereira dos Santos, 1963)

O longa tem início com uma seqüência em que vemos a família de retirantes se aproximar do quadro fixo e bastante aberto, enquanto ouvimos um ruído extra diegético bastante desconfortável (ruído esse que mais tarde será retomado no filme) introduzindo para os espectadores todo o desconforto que aquele ambiente inóspito e o atraso da região proporcionam aos personagens do filme.

Logo de início, observa-se também que a fotografia do filme é inteiramente estourada, luz essa que busca representar a intensidade de luz do nordeste brasileiro contribuindo para a construção de uma estética que realça essa busca por um clima agressivo típico da seca. Essa luz direta e estourada concebida por Luis Carlos Barreto fora inspirada na fotografia realizada por Waldemar Jr em Deus e o Diabo na Terra do Sol que obteve uma grande repercussão tanto no Brasil quanto na Europa, sendo aproveitada por diversos cineastas do Cinema Novo.

Ao buscar essa temática voltada para as questões do campo, visando denunciar todo o atraso, pobreza e miséria vividas ali, a obra de Nelson Pereira dos Santos deixa de ser uma simples adaptação de uma obra literária e passa a ganhar um verdadeiro teor político de intervenção nos debates vigentes na época sobre a questão da reforma agrária e as questões rurais. Para os cineastas da época, o cinema deveria ser o responsável por “desvendar” a realidade brasileira, e encontram nas temáticas voltadas às questões do campo, sobretudo o sertão nordestino, uma maneira de evidenciar o atraso e o subdesenvolvimento de nosso país, que se mostra muito mais intenso e atemporais nestes locais.

O filme tem sequência encadeando os acontecimentos do livro de maneira linear, talvez ainda mais linear que a própria obra literária uma vez que o livro apresenta capítulos independentes entre si, podendo desta forme se configurar como uma narrativa “desmontável”. Para fazer com que essa estrutura se encadeia de maneira linear, Randal Johnson observa que:

(…)o filme agrupa alguns capítulos que no romance estão separados. Os acontecimentos do capítulo 3 (“Cadeia”) e 8 (“Festa”), ambos passados na vila, estão juntos no filme. O flashback no capítulo 10 (“Contas”) (…) ocorre no filme antes dos outros acontecimentos na vila. O encontro de Fabiano com o Soldado Amarelo (capítulo 11) ocorre antes da morte da Baleia (capítulo 9).”4

Além da estrutura narrativa muito semelhante à do romance, outro aspecto utilizado por Nelson Pereira dos Santos que é muito próximo ao livro diz respeito ao ponto de vista do longa, que se aproxima de todas as personagens da família de Fabiano, da mesma forma com que cada um deles possuem um capítulo do livro de acordo com o seu ponto de vista. Para isso, Nelson se utiliza de diversos recursos como campo/contra-campo, zoom, travelling, desfoque na tentativa de subjetivar os olhares dos personagens. Além disso, planos no mesmo nível em que as crianças e a Baleia estão ajudam a criar uma identificação com essas personagens, aproximando assim, a narrativa do filme ao estilo do discurso indireto livre de Graciliano Ramos.

Ainda no campo da linguagem, os monólogos interiores são extintos no filme, dando lugar a diálogos diretos, entretanto bastante esparsos e confusos, por vezes atropelados, nos demonstrando o quanto a dificuldade de comunicação entre eles é notória.

Assim como Nelson Pereira dos Santos economiza nos diálogos, notamos também que os recursos estéticos, sonoros e visuais são bastante comedidos. Com uma trilha musical praticamente inexistente, diálogos esparsos e trilha sonora predominantemente diegética, observamos que o som torna-se um elemento pontual, mas bastante expressivo dentro do contexto geral do filme, onde predomina o vazio, o árido, o inóspito. As seqüências da cidade são as únicas onde o som está mais presente, onde se nota que o som acaba sendo usado como um elemento que reforça o teor opressivo daquele lugar, em que estão presentes figuras como o fazendeiro que explora seu empregado (Fabiano), o Prefeito que é cúmplice de um poder militar opressor (Soldado Amarelo), e a Igreja, que aqui acaba se tornando também um elemento opressivo uma vez que não oferece espaço para a família de Fabiano (são espremidos por todos que estão ali dentro) além de não oferecer abrigo à Vitória quando está se encontra a espera de seu marido, e acaba por dormir nas escadarias da Igreja.

Ao final do filme, observamos a mesma estrutura cíclica do livro se repetir. Observamos Fabiano e sua família novamente caminhar por entre o sertão em meio a um plano aberto e ao som desconfortável de um violino desafinado, que se assemelha ao som de um carro de boi, reforçando novamente essa alusão ao meio em que eles estão, imersos numa realidade desagradável e agressiva.

Apesar de não ter feito grande sucesso de público, Vidas Secas foi considerado uma obra-prima da primeira fase do Cinema Novo por ter retratado de maneira tão eficiente todas as mazelas de um povo que o cinema brasileiro acreditava precisar de espaço nas telas, para que o público pudesse ser levado a uma reflexão crítica acerca de nossa realidade, através da imersão naquele ambiente, naquela realidade.

O cinema de autor é um cinema livre! Esta liberdade, fundamentalmente é intelectual. Para um autor, como para Fabiano e Sinhá Vitória não há problemas morais. O patrão explora porque é patrão. Governo é governo. Para seres marginais não há questões morais – há os clássicos problemas sociais e políticos, apenas isto, o que impede o livre trânsito nos intestinos mas não impede o homem de partir sempre, mesmo a pé, sem saber para onde, num deserto sem fim. Nelson não lança uma luz de esperança, Fabiano e Sinhá Vitória partem dentro de um dia quente de sol, não existe manhã, existe apenas o dia”5

A HORA E A VEZ DE AUGUSTO MATRAGA (Roberto Santos, 1965)

A idéia de realizar uma adaptação deste conto para o cinema surgiu através de um convite do produtor, Fernando Aguiar. Roberto Santos logo apresentou um primeiro roteiro, que acabara não agradando, pois o produtor desejava fazer um filme no qual imaginava Augusto Matraga como um ícone religioso.

Assim que soube que não havia mais interesse por parte do produtor, Roberto logo foi atrás da ajuda de Luis Carlos Barreto, pois ficara extremamente animado com a idéia de realizar um filme no qual pudesse explorar personagens míticas do imaginário brasileiro do sertão como jagunços, o misticismo e a violência. Fortemente influenciado por tendências neo-realistas, Nelson tinha interesse em retratar o povo brasileiro sem os “artificialismos” existentes nos filmes dos grandes estúdios.

“Escolhi Guimarães Rosa porque acreditei que poderia oferecer-me o retrato e a realidade interior de um místico jagunço, tipo humano até então não apresentado no cinema brasileiro. E Augusto Matraga possuía toda a gama desse personagem” 6

Em conversa com Guimarães Rosa, Roberto recebeu diversas orientações quanto aos tipos humanos retratados no filme e quanto às locações utilizadas, no caso o norte de minas. No que diz respeito à transposição da narrativa para o filme, Rosa não impôs nenhuma limitação:

Nas conversas com Guimarães Rosa, segundo relato de Cyro Del Nero, Roberto Santos se deu conta de que estava diante de um autor que tinha também essa dimensão do processo criativo. Esse fato foi fundamental para que ele pudesse exercer livremente sua autoria”7

Apesar de toda a liberdade concedida ao diretor, Roberto dedicou-se a pesquisar intensamente toda a obra de Guimarães a fim de aproveitar da obra literária diversos elementos característicos de sua produção.

A principal característica de Roseana presente no filme, sem dúvida, é a oralidade. Roberto estava em busca dessa oralidade do povo brasileiro, que mescla o popular com o erudito numa linguagem singular e de caráter regional. Tal resgate foi possível através de diversos diálogos que puderam ser utilizados na íntegra conforme estava no romance. Outros diálogos sofreram pequenas alterações com o intuito de tornar os diálogos mais dinâmicos

Outra medida adotada que aproxima o filme à obra literária, foi a escolha por uma narrativa linear em detrimento de uma narrativa repleta de flashbacks que primeira versão do roteiro previa. Além de aproximar sua história com a do conto, a simplificação da narrativa refletiu menores custos de produção.

Por mais que o filme tenha tentado se aproximar da estrutura formal do romance, podemos notar alterações importantes na fusão e na criação de personagens. O personagem João Lombo fora criado para fundir os personagens Tião de Thereza e Tião de Leiloeiro, a fim de facilitar a trama. Ao invés de apenas um padre, Roberto amplia a presença da igreja ao longo do filme e acaba inserindo dois personagens padre: o padre moço e o padre velho.

No que diz respeito às alterações da narrativa, a que mais se destaca no filme sem dúvida é a seqüência final, na qual Roberto recria toda a cena do duelo entre Augusto Matraga e Joãozinho Bem Bem. No conto Augusto Matraga morre como herói. Revela a todos que assistem ao duelo a sua identidade e em seguida morre satisfeito, com um sorriso nos lábios. No filme, no entanto a cena se passa numa Igreja ao invés da casa de trabalho de Rosa, e Matraga morre sem revelar sua identidade, exprimindo apenas um grito de dor e revolta antes de morrer.

Eu penso que, como estrutura, Matraga continuou o mesmo. (…) No conto Matraga se redime como herói, no filme, dá-se o contrário: ele tem um instante heróico, que aparentemente basta para redimi-lo de todo sofrimento – mas na hora de morrer sua morte não significa coisa nenhuma, não é nada. Matraga usa a violência para impedir a violência e gera violência, entendido isso num sentido de fé moralista. Penso que assim, é fundamental o desfecho do filme”8

Raoni Reis Novo é graduando em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

JOHNSON, Randal. Literatura e cinema, diálogo e recriação: o caso de Vidas Secas. In: Literatura, cinema e televisão. Sao Paulo: SENAC, 2003

PELLEGRINI, Tania et al. Literatura, cinema, televisao. Sao Paulo: SENAC, 2003

ROCHA, Glauber Andrade, 1939-1981. Revolução do cinema novo. São Paulo: Cosac Naify, 2004

SOUSA FILHO, Antonio Ferreira de. Caminhos de poeira e estrelas: o processo de criacao de Roberto Santos, em “a hora e vez de Augusto Matraga”. Sao Paulo: PUC, 2000. 75 p. Mestrado-PUC

XAVIER, Ismail. Do texto ao filme: a trama, a cena e a construção do olhar no cinema. In: Literatura, cinema e televisão. Sao Paulo: SENAC, 2003

XAVIER, Ismail. Do golpe militar à abertura: a resposta do cinema de autor. In: O cinema brasileiro moderno. SP, Paz e Terra, 2001.

SITES

ALMEIDA, Josefa Francisca Lima de. Vidas Secas: Narrativa Literária x Narrativa Fílmica. In: http://www.webartigos.com/articles/14828/1/vidas-secas-narrativa-literaria-x-narrativa-filmica/pagina1.html (Acesso em: 19/06/09 às 14h)

BIAGGI, Enio Luiz de Carvalho. A imagem na literatura e a palavra no cinema: análise de transcriações dos textos roseanos para o audiovisual . In: http://imagemtempo.com.br/gr/artigo_enio.htm (Acesso em: 19/06/09 às 14h)

MILLARCH, Aramis. Roberto, o cinema, a literatura e a morte. In: http://www.millarch.org/artigo/roberto-o-cinema-literatura-morte (Acesso em: 19/06/09 às 14h)

VALENTE, Eduardo. Os Fuzis, A Hora e a Vez de Augusto Matraga.In: http://www.contracampo.com.br/27/fuzismatraga.htm (Acesso em: 19/06/09 às

1 JOHNSON, Randal. Literatura e cinema, diálogo e recriação: o caso de Vidas Secas. In: Literatura, cinema e televisão p.42

2 XAVIER, Ismail. Do texto ao filme: a trama, a cena e a construção do olhar no cinema. In: Literatura, cinema e televisão p. 11

3 ROCHA, Glauber. O Cinema Novo 62. In: Revolução do Cinema Novo p.52

4 JOHNSON, Randal. Literatura e cinema, diálogo e recriação: o caso de Vidas Secas. In: Literatura, cinema e televisão p.46

5 ROCHA, Glauber. Vidas Secas 64. In: Revolução do Cinema Novo p.62

6 FALANDO DE FILME, n.5, Roberto Santos: Hora e Vez de Augusto Matraga, O Homem Nú

7 SOUSA FILHO, Antonio Ferreira de. Caminhos de poeira e estrelas: o processo de criacao de Roberto Santos, em “a hora e vez de Augusto Matraga”. Sao Paulo: PUC, 2000. 75 p. Mestrado-PUC (p.26)

8 FALANDO DE FILME, n.5, Roberto Santos: Hora e Vez de Augusto Matraga, O Homem Nú

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