A Invenção de Hugo Cabret: Uma carta de amor ao Cinema

A Invenção de Hugo Cabret transborda amor. Amor de Martin Scorsese que é exposto na forma de admiração pelo legado deixado por Georges Méliès àqueles que ousam se aventurar na invenção de sonhos. Amor de Martin por sua filha Francesca, que à época ainda não tinha completado doze anos, e portanto nunca havia tido a oportunidade de assistir a um filme dirigido por seu pai (como é revelado logo nos minutos iniciais do making of da obra). Acima de tudo, uma amostra do amor deste insigne cineasta pela arte cinematográfica em si, algo perceptível a cada fotograma do longa. Cinema enquanto pureza e fascínio. (tntechoracle.com)  

Em 2011, Martin Scorsese já era visto como um dos mais consagrados diretores em atividade, além de ser um dos poucos que, tal como grandes mestres como Fritz Lang, Howard Hawks e Stanley Kubrick, não se limitava à realização de filmes semelhantes, preferindo se arriscar por variados estilos e gêneros cinematográficos. A partir disso — e ciente de sua vontade em explorar a extensão da linguagem do Cinema e suas infinitas possibilidades de aplicação —, o cineasta decide inovar mais uma vez em sua filmografia, desta vez, concebendo um longa-metragem com apelo a uma audiência mais jovem e naturalmente alheia às suas obras (que em grande maioria eram direcionadas ao público adulto). Assim, surge A Invenção de Hugo Cabret, uma adaptação do livro homônimo escrito por Brian Selznick. 

A fim de discorrer sobre os aspectos que fazem o longa ser tão especial, considero indispensável falar sobre a reverência a Georges Méliès, que além de ser um dos personagens centrais do filme, é também a razão primordial de sua existência. Ainda que hoje seja considerado por muitos como o pai do Cinema, Méliès não teve sua importância reconhecida durante grande parte de sua vida. Com efeito, ele foi o primeiro a ter fé no poder das imagens em movimento como ferramenta capaz de maravilhar o público. Dispondo de uma carreira consolidada como ilusionista, nada mais justo do que utilizar esse novo dispositivo como um meio de se fazer mágica. 

Da mesma forma, aqui Scorsese rejeita abordagens protocolares e trata a montagem como um truque de mágica. É pela montagem que Méliès consegue orquestrar seus maiores espetáculos de ilusionismo, permitindo que demônios desapareçam rapidamente em uma nuvem de fumaça, uma horda de esqueletos seja derrotada sem cerimônia por três corajosos guerreiros, e até mesmo um modesto foguete pouse no olho do Homem da Lua. O que poderia facilmente ser encarado como um componente trivial de filmes, uma etapa necessária ao fazer cinematográfico, passa a ser um milagre, uma artimanha vital e de valor incontestável. Tal como truques de mágica que integram o repertório de um ilusionista, pode-se dizer que o Cinema é formado por mentiras, e a montagem se mostra como uma das mais significativas mentiras. 

Consequentemente, o longa encontra o seu maior mérito no seu duplo pertencimento, sua coexistência enquanto uma descompromissada aventura infantojuvenil que é, ao mesmo tempo, uma bela homenagem aos primeiros filmes da História. Na cena em que Hugo entra escondido em uma sala de cinema com Isabelle, podemos encontrar uma síntese da temática principal do filme. Aos olhos de Hugo, o garoto retorna ao seu lugar favorito e assim se permite rememorar momentos felizes de sua infância (seu falecido pai o levava ao cinema para comemorar seus aniversários), enquanto o fascínio de Isabelle nesse espaço é o oposto: a menina assiste a um filme pela primeira vez em sua vida, e por isso se vê encantada com o descobrimento de um novo mundo. Hugo é exatamente isso: um filme voltado ao público infantil e um tributo ao passado, uma ode às memórias dos primeiros anos do Cinema, conquistando, pois, o seu espectador quer ele esteja familiarizado à enormidade dessa arte ou não. 

A Invenção de Hugo Cabret é também um dos filmes mais visuais de Scorsese. Me atrevo a dizer que os desenrolares de sua narrativa podem ser compreendidos de modo convincente mesmo que assistamos à obra com seu som desligado, e não digo isso para desmerecer o trabalho sonoro do longa, que conta com uma extraordinária trilha instrumental de Howard Shore marcada por acordeons parisienses e acordes evocativos do cinema silencioso, mas sim porque, como a homenagem ao Primeiro Cinema que é, o filme não hesita em nos apresentar atuações pouco pautadas em um realismo interpretativo — pelo contrário, a ênfase são os olhares, gestos exagerados, caras e bocas de personagens que não se intimidam em se expressar, e tratam de deixar claros os seus sentimentos. Se no Primeiro Cinema o som sincronizado à imagem ainda não integrava a linguagem cinematográfica, Martin Scorsese se vale dessa vantagem possibilitada pela evolução da técnica para imaginar como a Sétima Arte teria se desenvolvido caso optasse por conservar características como a lógica bidimensional da decupagem, a blocagem que se altera constantemente dentro de um mesmo plano e a dramatização excessiva de caráter teatral. 

Por fim, outra característica expressiva da obra são as suas subtramas, cenas que, grosso modo, parecem não colaborar para o desenvolvimento da trama central, bem como outras pausas narrativas cuja função é explorar a vida das pessoas que compõem o dia-a-dia da estação de trem Montparnasse. Todavia, isso não pode ser considerado um erro do filme, afinal, sua premissa permanece sendo a espetacularização da imagem, ou seja, o que importa não são as consequências das ações das personagens secundárias, mas sim as suas existências enquanto engrenagens que mantém o funcionamento do fantástico cenário retratado. O espectador, ávido em pertencer ao universo exposto em tela, deixa de exigir um propósito ou uma causalidade formal a cada cena e é presenteado com pequenas narrativas isoladas que ilustram com maior clareza os espaços em que estão inseridas, além de fornecerem um respiro ao frenesi das descobertas de Hugo. Partindo deste pretexto de veneração à imagem, Scorsese opta por promover um espetáculo do mais alto nível, explorando as possibilidades dos efeitos visuais gerados por computador por meio de composições que saltam os olhos, concebendo cenas com o puro propósito de nos entreter e, finalmente, visando expandir os limites da chamada “Magia do Cinema” a todo custo. Assim, o componente infantil da plateia é ativado, e a imersão é inevitável.