Alice – a mulher da filmografia de Martin Scorsese e a descoberta de um percurso temático entre Mean Streets a Raging Bull

Por: Mónica Santana Baptista

Resumo:

O presente ensaio crítico pretende analisar em perspectiva algumas obras da década de 70 (do século passado) de Martin Scorsese, tendo em conta que foi o arranque de um conjunto de temas, constelação de caracteres de personagens, estilo de filmar e abordar a direção de atores, desenvolvidos ao longo da sua carreira. Percebemos ainda que a centralidade numa personagem feminina, em “Alice já não Mora Aqui” (Alice doesn’t live here anymore”, 1974), é caso de exceção na filmografia do realizador. Terminaremos com o caminho para um certo despertar com “Touro Enraivecido” (“Raging Bull”, 1980), que começou a ser preparado em 1978, período difícil em termos pessoais para Scorsese. 

Palavras-chave:

Scorsese; cinema; mulher; masculino; personagem

  1. Alice – uma mulher errante e livre / Scorsese um realizador jovem e livre

Alice Hyatt: Quem é esta mulher na obra de Martin Scorsese?

À partida, “Alice já não Mora Aqui” (1974) é um filme que não associamos ao diretor. Nesta altura, Scorsese estava no início da carreira, tentando descobrir um caminho artístico e temático, que parecia começar a ser desbravado com o seu primeiro filme fora do contexto escolar: “Cavaleiros do Asfalto” (“Mean Streets”, 1973). Fazer um cinema underground era o objetivo: esta era uma obra que se passava nos lugares que  Scorsese conhecia, sobretudo em Little Italy, Nova Iorque (mesmo que parte tenha sido rodado em Los Angeles), trazendo para a ficção histórias próximas da sua experiência de vida e dos seus amigos e familiares. Como o próprio refere: 

Os ‘Cavaleiros do Asfalto’ constituía uma tentativa para me colocar a mim e aos meus amigos no ecrã, para mostrar como vivíamos, como era a vida em Little Italy. Era, de facto, um trajecto antropológico ou sociológico. Charlie usa pessoas, julgando que as está a ajudar; mas, acreditando  isso, está não só a arruiná-las, como a ruinar-se a si mesmo. (THOMPSON, D. & CHRISTIE I., 1989: 74)

A questão colocada na passagem entre o primeiro e o segundo filmes coloca-se, sobretudo, ao nível do desafio de desenvolver objetos dentro do contexto do cinema independente na senda do que outros cineastas estavam a desenvolver nos Estados Unidos. Neste sentido, “Alice já não Mora Aqui” segue a linhagem da primeira obra de Scorsese: seguir as personagens; confiar nos seus caracteres; torná-las mais importantes que um certo enredo e estrutura de argumento mais clássicos; confiar no trabalho dos atores e na construção das cenas muitas vezes no set de rodagem. Contudo, escrevem Thompson e Christie, referindo-se também ao passado escolar do cineasta, “’Alice Já Não Mora Aqui’ constituía uma viragem completa em relação aos mundos patriarcais dos filmes autobiográficos de Scorsese.” (Idem: 75). Mas Alice é uma personagem livre, ainda que errante, e em busca de um lugar onde possa encontrar a sua casa e o seu mundo. 

É relevante salientar que 1974 é o ano em que John Cassavetes realiza “Uma Mulher Sob Influência” (“A Woman under the Influence”). Também aqui o centro agregador é uma mulher, Mabel, que tenta lidar com os seus constrangimentos psicológicos e, ao mesmo tempo, ser livre para fazer e dizer o que quer – sem ser olhada como alguém doente. 

Diferente da protagonista do filme de Scorsese, Mabel lida com a sua família: tem um marido, três filhos, mas a sua instabilidade interior parece maior do que uma vida equilibrada. Alice fica sozinha com o filho; sabe qual o seu sonho (aliás o filme arranca com uma fantasia próxima, em termos cromáticos, de “O Feiticeiro de Oz”, (Victor Flemming, 1939) – fantasia essa evocativa do sonho de ser cantora): quer cantar, mas não sabe o que vai ser a sua vida depois da morte do marido – que não a valorizava, não a deixava ser ela mesma, e com quem se limitava a ter uma vida doméstica. 

Alice anda em busca de um rumo, de uma casa, de uma cidade, de um homem, e de um piano-bar onde possa voltar a cantar; para que essa estabilidade do lugar lhe consiga dar, e ao filho, Tommy, alguma estabilidade emocional. Mabel tem toda a estabilidade familiar, mas a sua falta de confiança e á-vontade com os outros, a fará ter atitudes imprevisíveis e, simultaneamente, de uma grande liberdade (lembremos a cena em que dança com as crianças “O Lago dos Cisnes”).

Depois do protagonista Charlie, de “Cavaleiros do Asfalto” – que diz, em voice over, logo no início do filme, que a redenção não vem da igreja, mas das ruas, segue-se esta  mulher que só quer encontrar um destino final. A tentativa de redenção de Alice reside no desejo de concretização do seu sonho e na busca por um lugar onde ela e Tommy possam recomeçar a vida. Por isso, num certo sentido, tudo é mais cruel em “Cavaleiros do Asfalto”; daí o equilíbrio que Scorsese faz nessa obra entre a violência das ruas e a culpa que a personagem principal não consegue redimir com a religião. 

  1. As influências iniciais de Scorsese

John Cassavetes foi crucial no percurso inicial de Scorsese. O então jovem cineasta mostrou “Cavaleiros do Asfalto” àquele que foi um dos seus mentores e cuja obra “Sombras” (“Shadow”, 1959) lhe tinha dado a ver que era possível fazer outro tipo de cinema,  mais próximo de uma certa verdade e realidade do que se andava a passar com os jovens e as pessoas em geral: 

John Cassavetes viu a primeira versão em bruto de ‘Os Cavaleiros do Asfalto’ e disse: ‘Faz o que quiseres ao filme, mas não cortes nada.’ (…) Aprendi muito com ele, e também quanto à maneira de lidar com as pessoas, especialmente as actrizes. (THOMPSON, D. & CHRISTIE I., 1989: 75)

O método e as abordagens do cinema de Cassavetes influenciaram a forma como Scorsese escolheu e dirigiu os atores em “Alice já não Mora Aqui”. Porém, em termos de produção as coisas tinham mudado. 

Agora ele tinha um orçamento três vezes maior que o de Os Cavaleiros do Asfalto, e um argumento de um escritor novo para ele, Robert Getchell. (…) Consciente do seu optimisto ‘hollyoowdesco’ antiquado, Scorsese trabalhou com Getchell e os actores na improvisação para dar ao filme um maior impacto. (THOMPSON, D. & CHRISTIE I., 1989: 75)

Lendo várias sinopses da época do lançamento do filme, ficamos com a ideia que o filme é “salvo” por Ellen Burnstyn – que ganhou o Oscar de Melhor Atriz Principal em 1975. Talvez certa crítica não estivesse habituada à liberdade das cenas e de realização que o roteirista (Robert Getchell venceu o Oscar para Melhor Roteiro) nos propõe. 

Tudo depende da personalidade da própria personagem, Alice Hyatt: o seu carácter deve-se em grande medida à presença na sua vida do filho, e, por conseguinte, à escolha de um menino como Tommy. O ator, Alfred Lutter III, foi também uma inspiração para o aprofundamento da personagem do rapaz – que tem tanto de egocêntrico quanto de divertido nas suas ironias e senso de humor. Scorsese reconhece que este casting foi essencial para o filme: 

Era para mim um desafio trabalhar com um rapazito que não era actor. Costumavam suceder certas situações entre ele e Ellen Burstyn, em cena, que era habitual repetirem-se entre ela e o seu próprio filho de doze anos, depois das filmagens. (THOMPSON, D. & CHRISTIE I., 1989: 76)

  1. A liberdade de uma mulher nos anos 70

Alice é uma mulher peculiar. Tem um sonho: cantar; por isso fica inicialmente desconcertada quando tem de se tornar empregada de mesa num restaurante de uma pequena cidade. Como a vida é incerta e surpreendente, é também ali que conhece o seu futuro companheiro, David, entre a crueldade da colega de quem se torna amiga e a confusão de tanta clientela. 

Estas mulheres, Alice e Mabel, em 1974, colocam no centro o feminino. Não o feminista, mas o que podem mulheres na casa dos trinta anos fazer com a sua vida, quando a vida já teve e tem decisões irreversíveis e apela à responsabilidade: ter filhos, casamentos falhos, desejos profissionais deixados para trás. Um mundo assustador e hostil em que uma mulher só quer encontrar um lugar de liberdade, reencontrando-se a si mesma e à sua identidade – que parece em parte confusa, ou em busca de auto-afirmação. 

Charlie, em “Cavaleiros do Asfalto”, estava subjugado a muitas leis e ordens: do tio, da herança familiar italiana, e tentava ajudar Bobby, o amigo, que na verdade parece nunca querer a sua ajuda, somente a amizade. Por outro lado, Charlie não sabe como estar com Theresa, não sabe lidar com o compromisso amoroso. A pergunta equacionada é: num futuro ficcional, a escolha da mulher com quem formará a sua família italiana/americana também será influenciada pelo tio? 

A redenção é procurada por meio da crueldade e da violência: os ajustes de contas em negócios ilegais, a brutalidade nas ruas e o crime – mesmo que não compense, e sirva apenas para perpetuar vinganças e pequenas guerras entre gangues e grupos rivais. 

Alice é uma mulher livre dentro de um filme que convoca para a sua estrutura narrativa sequências com uma grande liberdade no design de cenas. Ficando sozinha, sem dinheiro, com o filho de doze anos, sem trabalho e com o sonho de voltar a cantar, parte com o objetivo de chegar a Monterey, onde viveu durante a infância. Promete a Tommy chegar lá antes das aulas começarem. 

Não é por acaso que o filme começa com uma imagem idílica do que era a vida de Alice em criança, numa clara referência a “Feiticeiro de Oz”: em Monterey Alice foi feliz; é para lá que quer regressar para redescobrir com o filho tal felicidade. A certa altura, na terceira parte do filme, relembra os sonhos que tem a David: cantar e ir para Monterey. Este diz-lhe que talvez tenha de escolher. “Mas não são a mesma coisa, Monterey e cantar”, responde. Na cabeça da protagonista são: cantar, seguir a vocação, estar no único lugar onde se sentiu bem. Como se, no fundo, Alice quisesse voltar a ser criança. 

Alice vive toda a jornada do filme com Tommy: fala muitas vezes com o filho como se este fosse da sua idade, mais porque quer divertir-se, porque é uma mulher com alegria e entusiasmo pela vida. E o rapaz parece ter herdado isso dela. Mas quando discute com David, este diz-lhe aquilo em que ela talvez nunca tenha pensado: Alice não sabe educar o filho. 

Profundamente, Alice é uma mulher perdida e conformada à vida doméstica e parada que, de repente, por causa da morte do marido volta a ter liberdade de ser, fazer o que quiser e onde quiser. E isso é assustador. Lembremos a cena em que ela entra num bar em Tucson, com roupas e acessórios novos (que comprou com o pouco dinheiro que tinha), pede para falar com o dono, e assim que o aborda desata a chorar. Não aguenta a tensão. 

Alice nunca sabe o que vai acontecer no dia seguinte, mas sabe que é cantora e que tem um filho para criar. Ela acaba por ficar algum tempo em Tucson, onde conhece David e se torna empregada de um diner. Se pensamos que ela se vai conformar à vida daquela pequena cidade, a vida dá-lhe a volta e a faz relembrar de seu sonho de ir para Monterey, mas, sobretudo, de cantar. David acaba por ceder: diz que a leva e a Tommy para essa “terra de sonho”.  Então, Alice percebe que pode cantar naquele lugar, num bar onde há tempos já cantou e onde sentiu que gostaram de a ouvir. O filho nem queria ir para Monterey, como ela pensou. Alice conclui ainda que procura também o amor e afeto de um homem: uma companhia e uma casa. Um lugar ao qual possa pertencer: parar a errância e alguma incerteza quanto ao futuro.

A ideia de errância interior estava ligada a esta ideia de fugir; ter um destino que se pode transformar – ainda que Monterey não exista como paragem final, Alice descobre o amor, uma nova família, e pode continuar a cantar. Pelo menos é o que indicia o genérico final. 

Alice é uma mulher resiliente, aguenta os obstáculos, procura estar bem – ainda que tenha os seus instantes depressivos. Mabel, em “Uma Mulher sob Influência”, tem a família, três filhos, e procura a cada momento estar bem, manter uma certa estabilidade interna e para os outros. Ambas são inseguras: a solidão da primeira fá-la avançar, viajar pelos Estados Unidos e tentar encontrar uma nova configuração para a sua vida. A segunda tenta agradar ao marido e às crianças. É também uma mulher com um espírito livre, efusivo e criativo: canta e dança o “Lago dos Cisnes” com os seus meninos e com os filhos do vizinho; espera os filhos no ponto de ônibus com uma alegria e nervosismo exacerbados; corre com eles até à porta de casa e pergunta-lhes o que pensam dela. 

Como se, deslumbrado pelo trabalho e métodos de Cassavetes, Scorsese tivesse conseguido aprofundar o seu território pessoal, deixando-o atravessar por outras perspectivas e pontos de vista: aprofundando a identidade de uma mulher, uma ideia de errância, e de uma família monoparental. 

O exemplo de John Cassavetes e, em particular, o extraordinário impacte de ‘Shadows’, em 1960, tinha-lhe mostrado que a realização de filmes deve ser pessoal, sobretudo quando domina os melhores meios técnicos e industriais. Somente com esta tónica na coerência, a realização poderá, ela própria, ser autêntica, exigindo que o realizador confronte cada gesto e cada frase com a sua experiência pessoal e emotividade. As suas técnicas têm de ser acima de tudo expressivas, desviando os olhos e a emoção dos espectadores para a precepção do realizador, mesmo que bizarra ou diferente da experiência normal. E a beleza resultante seguirá a definição surrealista de André Breton: ou será convulsiva, ou não será. THOMPSON, D. & CHRISTIE I., 1989: 18)

Alice e Mabel colocam-nos sob as questões: como viver, como lidar com a solidão, com quem sou e com o que tenho? Colocando no centro o seu “eu” feminino – como força, resistência perante as fragilidades internas e circunstâncias externas. 

  1. Os filmes que se seguem: o radicalismo de Travis

Estas perguntas acima perseguem a obra fílmica de Martin Scorsese, mesmo que o ponto-de-vista seja masculino. Em “Taxi Driver” (1976), Travis Trakle tenta sobreviver em Nova Iorque, cidade que tanto atrai a ideia de comunidade (ou pequenas comunidades) quanto isola os indivíduos. Na primeira parte do filme, Travis tenta ter um relacionamento com a mulher por quem se sente fascinado, Betsy. Não sabe como conquistá-la e agradar-lhe; o que faz é estranho para ela. Tenta depois ajudar uma jovem prostituta, e também essa ligação falha. 

O protagonista não sabe como lidar com os outros, como construir uma relação empática equilibrada. A certa altura, não aguenta mais não fazer nada de radical em relação ao destino e à sua solidão. Torna-se num assassino em potência, um “anjo vingador”, como diz a respeito de Travis, Scorsese. Este é um filme de um homem e de uma cidade – um homem envolvido naquilo que qualquer grande metrópole tem de bom e avassalador. 

O filme é todo ele muito baseado nas sensações que tenho como resultado de ter crescido em Nova Iorque e viver na cidade. Há um plano em que a câmara está montada no tejadilho de um táxi e passa por baixo do anúncio ‘Fascination’ que fica mesmo por baixo do meu escritório. É essa ideia de estar fascinado, deste anjo vingador flutuando através das ruas da cidade, que representa todas as cidades para mim. (THOMPSON, D. & CHRISTIE I., 1989: 80)

Portanto, o regresso de Martin Scorsese à grande cidade e a um território masculino por excelência dá-se com “Taxi Driver”, escrito por Paul Schrader. É este que apresenta o roteiro ao realizador, que o achou próximo de “Cadernos do Subterrâneo”, de Dostoiévski. Mas foi a personagem Alice que vincou a ideia de errância, que se torna basilar nas personagens principais do diretor. Errância que leva à perdição, mesmo que tenha começado, como em “Taxi Driver”, com um sentido de redenção e de fazer justiça. 

A fantasia e a linha entre a realidade e a fantasia vão mais além neste filme. A fantasia de Alice era materializada no começo. O sonho comandava todas as ações da personagem. Para Travis, o terreno da subjetivação do real vai-se intensificando, até que só fica apenas como força motriz fazer justiça pelas próprias mãos, transformando-se num “anjo exterminador” (título do filme de Luis Bunuel). 

Apesar da violência da terceira parte do filme, Scorsese recorda: 

As pessoas identificaram-se profundamente com o filme, no que se refere à solidão. Nunca me apercebi do que aquela imagem no poster tinha feito pelo filme. De Niro a caminhar sozinho por uma rua abaixo, com uma legenda ‘Em todas as cidades há um homem’. E nós tínhamos pensado que o público ia rejeitar o filme por causa de um sentimento desagradável, e que por isso ninguém o quereria ver. (THOMPSON, D. & CHRISTIE I., 1989: 90)

O diretor tem consciência da carga violenta e crua que atravessa o filme no seu desfecho: 

Queria que a violência, no fim, fosse como se Travis tivesse de continuar a matar toda aquela gente, de modo a detê-la de uma vez por todas. Paul viu-a como a “morte honrosa” de um Samurai – é por isso que De Niro tenta suicidar-se (…) O que eu pretendia era uma situação tipo Daily News, do género daquelas que se lêem e de que se fala todos os dias: “Três homens mortos por um homem solitário que salva rapariga. (THOMPSON, D. & CHRISTIE I., 1989: 90)

Sobre essa terceira parte, o diretor acrescenta as inspirações de Paul Schrader: 

Paul foi também muito influenciado por ‘Pickpocket’ (‘O Carteirista’, 1959), de Robert Bresson. Em O Carteirista, há uma sequência fantástica dos movimentos de mãos dos carteiristas para retirarem as carteiras, e passa-se o mesmo com Travis, sozinho na sala a praticar com as armas. Achei que ele devia falar consigo mesmo enquanto fazia isso, e foi uma das últimas coisas que filmámos, numa casa desabitada num dos sítios piores e mais barulhentos de Nova Iorque. (Idem)

“Taxi Driver” venceu a Palma de Ouro, tornando-se um filme nuclear da história do cinema americano, ponto nevrálgico da carreira de Martins Scorsese. 

  1. A queda e o ressuscitar de um diretor: a redenção de “Touro Enraivecido” 

Dois anos depois, no final de 1978, as coisas não corriam bem para Scorsese, o seu casamento tinha fracassado, estava com a saúde debilitada e num estado de depressão grave. “Touro Enraivecido” (“Ranging Bull”, 1980), a história de um antigo campeão de boxe, Jake La Motta, ofereceu uma saída para este impasse pessoal e criativo. O filme foi um meio de redenção e libertação para o cineasta.  

Fiquei fascinado com o lado auto-destrutivo do carácter de Jake La Mota, pelos seus sentimentos básicos. O que pode ser mais expressivo do que ganhar a vida a dar murros na cabeça de outra pessoa, até que um caia ou pare? (THOMPSON, D. & CHRISTIE I., 1989: 104)

Martin Scorsese e Robert de Niro trabalharam intensamente numa versão já existente do roteiro (escrita por Schrader): 

Pus tudo o que sabia e sentia nesse filme e pensei que seria o fim da minha carreira. Era como despejar todo o meu saber para dentro do filme, para de seguida esquecer tudo e ir à procura de outro modo de vida. (Idem)    

Por seu lado, De Niro conheceu e trabalhou com o próprio Jake La Mota, pugilista em que o filme era inspirado. La Mota esteve presente na rodagem durante dez semanas. Scorsese, no entanto, não filmou a biografia do antigo campeão de boxe. As cenas dramáticas de “Touro Enraivecido” possuem pouca relação com o que realmente aconteceu. La Motta teve, na vida real, um comportamento muito mais violento do que o retratado no filme. Mas o diretor, o roteirista e o ator principal sabiam que não era possível mostrar cenas mais cruéis – no espaço de duas horas havia o risco de parecerem forçadas e fora de contexto. O próprio sublinha:

No entanto, acho estes personagens fascinantes. Obviamente que encontro neles referências pessoais, e espero que o público também, e que possa aprender com ele e encontrar alguma paz. (THOMPSON, D. & CHRISTIE I., 1989: 105)

Scorsese temia uma má recepção do filme: eram muitas as obras sobre boxe nos anos setenta. O diretor não era grande adepto de combates. Por isso, em “Touro Enraivecido” optou por ter  a câmara quase sempre no ringue com Jake, diversificando os ângulos de abordagem e perspectiva sobre o confronto. A sua influência foi Buster Keaton em “Battling Buttler”, de 1926. Sobre o protagonista, Scorsese afirmou: 

Senti que Jake usou toda a gente para se punir a si mesmo, especialmente no ringue. Quando luta com “sugar Ray Robinson, porque aguenta ele aquela tareia toda durante quinze assaltos? O próprio Jake admitiu que estava a fingir-se doente. Bem, talvez o Jake verdadeiro seja assim, mas o Jake no ecrã é outra coisa. Aceita o castigo por aquilo que entende que fez de errado. E quando é levado para a cadeia, sozinho com as paredes, então aí está de facto a sós, pela primeira vez, com o seu inimigo verdadeiro – ele próprio. (THOMPSON, D. & CHRISTIE I., 1989: 110)

“Touro Enraivecido” tem como veículo narrativo o boxe e o caminho de um homem em paralelo com os combates e o ringue. Mas o filme é muito mais do que isso. 

Roger Ebert consegue resumir o fime em profundidade, quando escreve: 

‘Raging Bull’ is not a film about boxing but about a man with paralyzing jealousy and sexual insecurity, for whom being punished in the ring serves as confession, penance and absolution. It is no accident that the screenplay never concerns itself with fight strategy. For Jake La Motta, what happens during a fight is controlled not by tactics but by his fears and drives. (1998)

O próprio crítico lembra que: 

Martin Scorsese’s 1980 film was voted in three polls as the greatest film of the decade, but when he was making it, he seriously wondered if it would ever be released: ‘We felt like we were making it for ourselves.’ Scorsese and De Niro had been reading the autobiography of Jake LaMotta, the middleweight champion whose duels with Sugar Ray Robinson were a legend in the 1940s and ’50s. (Idem)

Com a colaboração da escrita de Schrader e o trabalho árduo de Robert de Niro na representação, Martin Scorsese consegue falar sobre a culpa, as fragilidades e a ascensão e queda de um homem. Algo muito próximo do que o diretor vivenciou ao longo da sua carreira na década de 70. 

Em resumo, o percurso artístico e cinematográfico de Martin Scorsese começa a ser delineado profundamente nesta altura da sua vida: um cinema pessoal, com um estilo próprio no modo de contar, filmar e dirigir os atores, atravessando as histórias e caminhos de vida de personagens violentas, marginais, conflituosas e livres, aliando essas existências fictícias a traços pessoais autobiográficos. 

Referências bibliográficas:

THOMPSON, David. & CHRISTIE Ian., (1989) Scorsese por Scorsese, Lisboa: Edições 70.   

Referências filmográficas:

CASSAVETES, John., Uma Mulher sob Influência (A Woman under the Influence), 1974;

SCORSESE, Martin., Cavaleiros do Asfalto (Mean Streets), 1973;

SCORSESE, Martin, Alice já não Vive Aqui (Alice doesn’t live here anymore), 1974;

SCORSESE, Martin, “Taxi Driver”, 1976;

SCORSESE, Martin, “Touro Enraivecido”, 1980.