Cinema Brasileiro e Seu Lugar no Mundo

Por Leonardo Frederico

Durante toda sua história, o cinema brasileiro sofreu com um problema de identidade: ele nunca se encaixou nos altos padrões da indústria monopolista hollywoodiana, mas também enfrentou diversos impasses para criar, desenvolver e assentar um estilo que fosse seu e que, simultaneamente, fosse “bom o suficiente” para o público acostumado com o nível exorbitante e industrial, produto do norte-americano. Ao longo de todo o último século, o cinema brasileiro nunca foi totalmente aprovado: uma hora era bem-visto apenas pelo público, como no caso das chanchadas, que, no entanto, eram constantemente atacadas pelos conservadores que seguiam os ideais dos colonizadores culturais estadunidenses; em outros momentos, nas poucas tentativas de copiar o que estava sendo realizado no exterior, problemas econômicos e críticas sobre a falta de autenticidade emergiram. Em uma expressão popular, o cinema brasileiro do século XX estava em um beco sem saída. 

Logo nas primeiras décadas de sua existência, a sétima arte nacional era constantemente criticada por diversas mídias que pregavam que o cinema de qualidade era aquele exportado dos Estados Unidos, dizendo que a arte produzida em nosso país não era boa o suficiente. A periódica Cinearte, a principal publicação especializada sobre cinema dos anos 1920 e 1930, era, em geral, contra os moldes da produção cinematográfica que estava acontecendo no Brasil. Naquela época, período entre o final do século XIX e anos 1930, devido à falta de orçamento e problemas nas estruturas de produção, distribuição e exibição, os filmes eram em quase que sua totalidade produções documentais, abordando, de acordo com o historiador e crítico de cinema Paulo Emílio Sales Gomes, apenas duas temáticas: berço esplêndido, mostrando as belezas nacionais do país, e rituais do poder, enaltecendo questões políticas e sociais que eram taxadas como importantes e relevantes. Para a Cinearte, contudo, isso não era cinema, pregando que os recursos disponíveis deveriam ser voltados e canalizados para a produção de obras ficcionais com enredo. 

Contudo, é interessante ressaltar que grande parte dessas críticas eram pautadas em vieses racistas e preocupações com uma imagem elitizada eurocentrista do país. Além de mostrar insatisfação para com as produções nacionais que reportavam, muitas vezes, a situação de um Brasil subdesenvolvido, a revista denunciava produções estrangeiras que filmavam um Brasil que, segundo eles, não passava uma imagem de boa reputação. Em seu texto A expressão social dos filmes documentais no cinema mudo brasileiro (1898-1930), de Paulo Emílio Sales Gomes destaca diversos trechos do comportamento que, continuadamente, atacava a nacionalidade do Brasil por um caráter preconceituoso, como podemos notar no grifo a seguir:

Cinegrafistas de origem estrangeira são atacados porque mostram “índios ferozes e pretos colendo banana” e são acusados de “fazer passar os brasileiros por gente de cor”. Para um dos diretores da Cinearte o importante é que os americanos se convençam de “que os habitantes do Brasil não são pretos, e a nossa civilização, afinal de contas, é igualzinha à deles” (GOMES, 1986, p. 329).

Posteriormente, nas décadas que se seguiram, ainda houveram diversas tentativas de adaptar a produção nacional para os moldes estrangeiros. Por mais que os ideais da revista Cinearte não fossem compartilhados — ou pelo menos não com tanto radicalismo pautado em preconceitos —, ainda era de desejo dos produtores criar algo que fosse “tão bom quanto o material importado”. Dentro das tentativas, podemos mencionar algumas produtoras: a carioca Cinédia, fundada por Adhemar Gonzaga, que estava na editoria da Cinearte na época, e que atuou durante os anos 1930 e começo da década de 1940; Atlântida, também carioca, atuante nos anos 40 e começo dos 50; e por fim, Vera Cruz, paulista, nos anos 50. Enquanto a primeira e última foram fadadas ao fracasso por questões financeiras — os lucros dos filmes não conseguiam cobrir os gastos de sua produção —, a segunda deixou de lado suas intenções iniciais de filmes mais elaborados, apostando em obras mais baratas, rápidas de fazer e que fossem de agrado do público. Na menor possibilidade de uma produção ambiciosa ser interrompida, ela se converte para algo menos elaborado.

Todos esses quesitos podem ser observados nas obras da época. No caso da Cinédia, na década de 1940, esta se tornou o maior centro de produção e com o maior tempo em atividade do Brasil até hoje. Entre as obras produzidas pautadas no padrão hollywoodiano, temos: Lábios sem beijos (1929), a estreia de Humberto Mauro, um filme moderno, considerado o maior avanço do cinema brasileiro no campo da sensualidade; Mulher (1931), de Octávio Gabus Mendes, o segundo filme da Cinédia, considerado importante na representação do erotismo; e Limite (1931), de Mário Peixoto, uma grande contribuição para o movimento vanguardista mundial, inspirado por movimentos europeus, como o Expressionismo, e pela montagem soviética. Dessa forma, grande parte do material da produtora não tinha seu foco em apenas imitar um cinema de qualidade, como afirmado por eles, mas também atingir patamares artísticos divergentes do restante dos filmes da época. 

Já nos anos 1950, é estabelecida uma rivalidade indireta e fria entre Atlântida e Vera Cruz. Nesse período, houve uma popularização generalizada das comédias cariocas, com a Atlântida se tornando referência na área. Por outro lado, em São Paulo, a Vera Cruz pregava um material que era contra aquilo que estava sendo produzido no Rio de Janeiro, apostando em obras de alto orçamento, trazendo equipamentos, construindo estúdios e contratando profissionais. Era um conteúdo voltado para a elite, criticando aquele produzido pela Atlântida. Em resposta a isso, a produtora carioca lança, em 1952, Carnaval Atlântida, um filme sobre a incapacidade do Brasil de produzir filmes iguais àqueles propostos pela produtora paulista. Além disso, o cinema estrangeiro se tornava paródia nesse longa, visto como uma espécie de piada.

Nos anos que se seguiram, o cinema brasileiro passou pelas mudanças mais radicais em sua história. As chanchadas, que eram um enorme sucesso nos anos 1950, perdem brilho e atenção do público, ao mesmo passo que o movimento cinematográfico mais importante da história do cinema nacional emerge dos cineclubes e da crítica brasileira, o Cinema Novo, inspirado pela Nouvelle Vague francesa e pelo Neorrealismo Italiano. Foi só com esse movimento vanguardista que a produção brasileira voltou seus olhos, pela primeira vez e de forma quase generalizada, para a situação brasileira, reportando todas as questões políticas e sociais que puseram o país em declínio. Após anos de censura pelo regime militar, a produção de longas brasileiros desacelera devido à situação crítica econômica, tendo sua volta apenas no final dos anos 1990 e começo dos anos 2000. Esse último momento ficou conhecido como a Retomada do Cinema Brasileiro, mas a pergunta que deve ser feita é “O que era o cinema brasileiro, afinal?”

Por outro lado, se a produção brasileira não era considerada suficientemente boa para criar uma ligação e, de certa forma, uma identificação com o cinema norte-americano, ela também estava em um nível acima do restante dos cinemas da América Latina. Durante toda a história do país, o Brasil nunca se viu conectado com o restante da América Latina. Essa situação chegou a pontos tão latentes que, durante um período, a nação não era considerada parte do conjunto de países latino-americanos, tanto pelos brasileiros, quanto pelos outros países. Apesar de partilhar similitudes de referências, passado histórico e situação atual, o Brasil sempre foi visto como algo à parte. Segundo o sociólogo Emir Sader, o Brasil possui uma conexão maior com seus colonizadores do que com seus vizinhos continentais. “Em nossa identidade não se inclui ser um país ‘latino-americano’. […] Nossas referências identitárias apontam para a Europa — Portugal e França —  e para nossas origens na mestiçagem — índios e negros” (SADER, 2006, p. 177).

Essa disparidade vista entre o Brasil e o restante da América Latina se dá, na verdade, desde sua formação histórica. Enquanto grande parte dos países latino-americanos foram colonizados pela Espanha, o Brasil foi colônia dos portugueses. Posteriormente, enquanto os outros países quebravam com suas correntes hereditárias, vítimas da colonização, o Brasil fortalecia seus laços com a metrópole, passando de um estado de colônia para monarquia, e não republica, igual o restante do subcontinente. Não passamos por uma guerra de independência e, enquanto todos proclamavam o fim da escravidão, o Brasil continuava com esses costumes. Mas apesar disso, o Brasil ainda se via como “potência intermediária emergente, na direção do ‘primeiro mundo’, destacando-nos mais ainda do nosso entorno geográfico” (SADER, 2006, p. 185).

Foi só no período da ditadura militar brasileira que o Brasil se deu conta do seu lugar no mundo, entendendo sua posição no mundo capitalista. Além da questão do regime por si só — como cita Sader: “Golpe militar era coisa da ‘America Latina’” (SADER, 2006, p. 186) —, a situação econômica assentou ainda mais a situação do Brasil, como afirma Emir: “O Brasil passou a olhar para o continente, na estrada do século XXI, de forma mais compreensiva, menos distante. A ‘crise da dívida’ nos recolocou a todos no patamar que o capitalismo neoliberal nos reserva: o de ‘mercados emergentes em crise’” (SADER, 2006, p. 182). Mas, até hoje, o Brasil e a América Latina parecem ser um mistério, um para o outro.

No cinema, da mesma forma, houve esse descompasso entre a arte produzida no Brasil e aquela produzida nos outros países. Isso fica claro, por exemplo, se observamos a transição da era silenciosa para a introdução do som no cinema, com o Brasil sendo o primeiro país a realizar essa mudança, no final da década de 1929, diferente do Equador, sendo um dos últimos, ainda com cinema mudo nos anos 1950. Além disso, a primeira lei protecionista do mercado audiovisual nacional, através de cotas de tela, surge no Brasil em 1932, enquanto na Argentina, por exemplo, isso só aconteceria mais de uma década depois, em 1944. Não iremos citar, contudo, o número de filmes produzidos por ano, visto que claramente o Brasil sairia na frente devido às suas dimensões populacionais, econômicas, sociais e geográficas. Portanto, desse modo, podemos fazer a seguinte analogia: o Brasil estava para a América Latina assim como os Estados Unidos estavam para o Brasil, assumindo um papel de um país idealizado tanto pelos membros de sua própria nação, quanto das nações vizinhas. 

Dessarte, pode-se observar que o cinema do Brasil sofre com o problema de identificação perante ao mundo, ou, pelo menos, dentro de seu continente. Enquanto ele nunca conseguiu se colocar no mesmo nível daqueles que ele considerou “melhores”, ele não se via familiarizado com seus vizinhos, ignorando, muitas vezes, suas similaridades. Dessa forma, o cinema brasileiro se via à deriva, com dificuldades de encontrar uma identidade que fosse, de preferência, inegavelmente sua, mas também não se encaixava nos padrões desejados e nem descia de um pedestal estabelecido por si mesmo, para se relacionar com o restante da América Latina. No final, o cinema brasileiro ainda está tentando se descobrir. 

REFERÊNCIAS

CARNAVAL Atlântida. Direção: José Carlos Burle. Produção de Atlântida. Brasil: U.C.B. – União Cinematográfica Brasileira, 1952.

“Cartão-postal”. In: Galvão, Maria Rita. Burguesia e cinema: o caso Vera Cruz. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira/Embrafilme, 1981.

GALVÃO, Maria Rita e SOUZA, Carlos Roberto de. “Cinema brasileiro 1930/1960” [trecho]. In: In: Cinema brasileiro. Lisboa: Cinemateca Portuguesa/Fundação Calouste Gulbenkian, 1987.

GOMES, Paulo Emilio Salles. “A expressão social dos filmes documentais no cinema mudo brasileiro (1898-1930)”. In: Calil, Carlos Augusto e Machado, Maria Tereza (org.). Paulo Emilio: um intelectual na linha de frente. São Paulo: Brasiliense/Embrafilme, 1986 

GONZÁLEZ, Roque. Producción, mercado y políticas públicas cinematográficas en América Latina. Rebeca, São Paulo, ano IV, n. 7, jan. jun. 2015.

LÁBIOS sem beijos. Direção: Humberto Mauro. Produção de Cinédia. Brasil: Paramount Filmes, 1930.

LIMITE. Direção: Mário Peixoto. Produção de Cinédia. Brasil, 1931.

MULHER. Direção: Octávio Gabus Mendes. Produção de Cinédia. Brasil, 1931.

SADER, Emir. Encontros e desencontros. In: NOVAES, Adauto (org.). Oito visões da América Latina. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2006.P. 177-190.

VIEIRA, João Luiz. “A chanchada e o cinema carioca (1930-1955)”. In: Schvarzman, Sheila e Ramos, Fernão (org.). Nova história do cinema brasileiro. São Paulo: Edições Sesc, 2018.

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