Bacurau: Notas sobre uma experiência espectatorial passiva

Por Hugo Schnorrenberger

Existem duas possibilidades de experiências ao assistir Bacurau. Na primeira experiência, as pessoas aplaudem, gritam, ficam extasiadas e animadas ante as cenas catárticas do filme. Já na segunda, se enquadram as pessoas que não conseguiram sentir nada disso vendo o filme. Pretendo, a partir de uma análise de cenas, tentar encontrar um motivo para essa apatia sentida pelo segundo grupo (no qual eu me incluo).

Bacurau, dirigido por Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, é um filme de 2019, ganhador do prêmio do Júri de Cannes. O filme se utiliza da roupagem estética de filmes de gênero — mais notadamente o western — apesar de eu, pessoalmente, não enquadrá-lo como um filme de gênero. Com exceção do split-screen, os diretores trazem (quase) todos os aspectos de estilo que eu guardo bem perto do coração no que encerra a linguagem dos filmes de gênero. Muitas vezes, inclusive, assim que eu vejo um split-focus, automaticamente me envolvo e gosto mais de um filme. Então por que, enquanto assisto Bacurau, não sinto nada para além de alguns choques e surpresas? 

Antes de tudo, queria dizer que Bacurau é um filme bom. Ele pode não executar bem suas passagens (como irei elaborar em seguida), mas eu nunca ousaria dizer que elas não são de uma criatividade extrema. Junto às engenhosas soluções narrativas, nós temos uma linda cinematografia com lentes anamórficas. O filme também traz atuações impecáveis e poderosíssimas — com um destaque para Sônia Braga e Thomas Aquino. A análise que farei consiste basicamente numa discussão sobre a execução das cenas, por isso, não farei aqui uma análise da narrativa do filme como um todo ou de seu discurso, mas apenas do caráter da tensão em algumas cenas-chave do filme¹. Acredito que meus problemas com Bacurau se dão em dois níveis: O primeiro nível está relacionado com como os diretores trabalham a forma fílmica e o segundo nível está relacionado à maneira na qual as informações são entregues para a audiência dentro das cenas e no decorrer do filme.

1. Primeiro nível

Com forma fílmica, eu me refiro a tudo que encerra as escolhas do uso da linguagem e do som do filme, e a relação dessas escolhas com a construção dramática dentro do espaço fílmico. E é nesse aspecto que o filme mais “peca” na minha experiência, pois a maneira como Kleber e Juliano trabalham a tensão é lânguida. Isso se dá porque não existe uma preocupação com o desenvolvimento da cena levando em consideração as possíveis reações da audiência durante o seu desenrolar, porém nota-se uma preocupação com o choque que alguns eventos podem causar. Em suma, as escolhas do filme têm uma prioridade discursiva em detrimento de uma execução cuidadosa deste elemento característico do cinema de gênero que é a tensão. Esse é um padrão que se repete por todo o filme.

Para elaborar melhor o problema do filme nesse aspecto, utilizarei os conceitos de tensão e choque apresentados em um seminário ministrado por Hitchcock². Há duas pessoas sentadas em uma mesa conversando sobre esportes. A conversa é totalmente mundana, banal, sem um destino claro. Depois de 5 minutos dessa conversa, uma bomba, que estava embaixo da mesa, explode matando todo mundo. Nesse momento você tem um choque, uma construção fraca de interação com a audiência, pois ele dura apenas alguns segundos e logo se esvai. Agora, pegue a mesma cena só que diga para a audiência que tem uma bomba, que vai explodir em 5 minutos, debaixo da mesa. Com isso, a relação da audiência com a cena é totalmente diferente. Por causa dessa escolha, essa conversa sem propósito faz o espectador sofrer e temer. A audiência tem uma participação ativa durante cada segundo daquela conversa de esportes. Essa participação ativa se consegue sacrificando a possível surpresa com o choque da explosão. Mas todo mundo que já viu um bom Hitchcock, De Palma ou John Carpenter sabe que esse sacrifício não é nada em vão.

Se o objetivo é criar a atmosfera de tensão e envolver o espectador de forma ativa, o diretor precisa saber exatamente qual informação “sacrificar”. Para isso, é necessário que o realizador entenda com qual personagem a empatia da audiência está em uma dada cena — e este é outro ponto onde KMF e JD se confundem novamente.

É possível demonstrar isso de maneira clara, quando pegamos o que muitos consideram a melhor cena do filme: “você quer viver ou morrer?”. A cena começa com um senhor idoso, Damiano (Carlos Francisco), regando suas plantas. Ele está nu. Essa imagem pacífica contrasta-se alternadamente com a aproximação de dois gringos, Willy e Kate, que estão chegando para matá-lo. Tensão, certo? Não, e eu explico porquê. 

Existe uma escolha de direção de atores que enfraquece a criação de tensão. Logo no início do trecho, há o som de um pássaro voando, mas nas imagens temos apenas Damiano reagindo com uma pausa, que demonstra que o personagem sentiu algo estranho. Só que o personagem não demonstra medo, insegurança nem mesmo indiferença — qualquer dessas emoções contribuiria para a construção da tensão —, o que há é uma grande confiança e controle por parte de Damiano, diminuindo assim o risco que o espectador poderia sentir por sua vida. Ele continua regando suas plantas, e os gringos continuam se aproximando; ele volta pra sua casa, e os gringos aproximam-se mais até chegarem na parede da casa. O senhor está lá dentro, no escuro, não o vemos. Então, com uma decisão muito duvidosa de roteiro, o personagem de Willy saca um isqueiro e acende um cigarro, mas só depois dessa ação ele coloca fogo no telhado de palha da cabana. Por mais estranha (e eu inclusive acredito ser preguiçosa) que seja essa construção, ela culmina em um dos melhores usos de efeitos práticos e CGI do cinema brasileiro: a cabeça do homem que pulou em frente à porta explode com um grande estrondo. Eu, pessoalmente, acredito que a força dessa cena consiste em uma criatividade narrativa de resolução tão poderosa que os espectadores ignoram que não sentiram nada durante sua execução. Não só isso, sinto que em quase todas as grandes cenas do filme, a criatividade de solução é tão boa que ela ofusca a passividade da experiência.

Essa cena poderia ser construída de diversas formas. Aqui proponho um exercício de imaginação: vamos repensar a construção da cena para uma situação onde a tensão se configura de forma diferente. Se ao reagir ao som dos pássaros, Damiano demonstrasse outra reação, fosse ela sútil ou reação nenhuma, a tensão seria criada. Dessa forma, a audiência não seria avisada explicitamente que ele sabe que algo vem.

Agora, voltando à bomba de Hitchcock. Depois de alguns momentos dessa cena tranquila, aparecem os gringos escondidos nas pedras conforme o senhor trilha seu caminho para casa. Para não contrariar a visão de personagem dos criadores, podemos manter o trecho duvidoso com o isqueiro, que está lá para demonstrar que os gringos não se sentem nem um pouco ameaçados pelo senhor. Essa ação, contudo, poderia ter acontecido antes, enquanto eles ainda estavam nas pedras, não quebrando a tensão num momento decisivo antes da resolução da cena. Se os gringos demonstrassem foco e determinação em sua tarefa — diferentemente da construção pueril deles no filme — temeríamos mais pela vida de Damiano. A cena do cigarro na parede da casa apenas enfraqueceu o quanto o Damiano é preparado e a sagacidade do personagem de reparar que algo estava errado apenas com os pássaros. Afinal, da forma como está no filme, ele poderia ter só reagido ao barulho do isqueiro com o cigarro, ou até mesmo ao cheiro do cigarro. 

Sem a cena do cigarro, teríamos uma construção de fragilidade máxima — um senhor nu que não deu nenhum indício de possibilidade de defesa — contraposta a uma construção de ameaça máxima — dois psicopatas armados e com intenção de matar. Logo, nós temos o que considero uma das melhores sensações de quando se vai ao cinema: medo pela vida dos nossos personagens. Os gringos chegariam na parede, igual ao que está presente no filme — se for para colocar fogo na palha que coloque com algum propóstio — só que agora, na cena, o espectador entendeu a determinação de matar dos gringos. 

A diferença dos dois casos é que, em Bacurau, a audiência só deixa de ser passiva no momento do choque do tiro. Já no exemplo que imaginamos, a experiência não é passiva e sim ativa de um sentimento de medo e tensão.

Da forma que está no filme, KMF e JD colocam a empatia da audiência, o medo pela vida dos personagens, nos gringos. Essa confusão, expressa na escolha de direção de atores, não nos coloca ao lado do senhor mas ao lado dos invasores. Como na cena não é construído nenhum sentimento de empatia à vida dos gringos, o pilar da tensão na cena se desfaz. Ao invés de uma construção elaborada dentro das expectativas do gênero, o filme entrega uma cena à qual o espectador assiste passivamente. Se repararmos no filme como um todo, não existe envolvimento com a maioria das cenas, exceto nos momentos de resolução — que é onde o roteiro e a execução do filme brilham.

Pessoalmente, acredito que a escolha de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles priorizam jogar com os preconceitos da audiência, já que, ao vermos um senhor regando suas plantas nu no interior de Pernambuco, nunca vamos pensar que ele vai se defender daquela forma. Mas KMF e JD querem mostrar que nossas expectativas estavam erradas. Esta prioridade também está presente na cena do drone, que é utilizada no segundo nível desta análise, sobre a maneira como é articulada a entrega de informações.

2. Segundo nível

A maneira como os diretores entregam a informação não instiga a curiosidade do espectador por tempo o suficiente. Quando a vontade de tentar descobrir o que pode estar acontecendo é despertada — isto é, o suspense da cena — os realizadores te entregam a resposta antes mesmo de ter usado ao máximo os efeitos da pergunta, impedindo mais uma vez a participação ativa do espectador.

Uma das primeiras vezes em que isto ocorre é com o mistério do drone. No filme, enquanto o personagem de Damiano anda de moto, aparece um objeto no formato de disco voador perseguindo-o pelo ar. No exato instante em que um disco voador entra em quadro em um suposto filme de faroeste, automaticamente, a audiência vai se perguntar “o que tá acontecendo?”. Injetar este questionamento em uma audiência é o objetivo máximo do cineasta que se propõe a construir um suspense. No entanto, o mesmo é frustrado, pois nas próximas cenas em que o disco aparece não há uma construção misteriosa que vai aos poucos sendo desfeita até que fique claro que se trata apenas de um drone. No filme, já na segunda cena em que o disco voador aparece, fica claro que é um drone. Nesta cena, filmada do ponto de vista do disco voador, dois motoqueiros que visitaram Bacurau assassinam dois dos habitantes da cidade. 

A escolha desta perspectiva abole o caráter extraterrestre, uma vez que o disco voador fica brincando de derrubar o motoqueiro de sua moto. Logo após a informação de que o disco é, na verdade, um drone, é explicitado pelo filme através do personagem de Damiano. Pergunto: por que não brincar mais com essa expectativa? Ou, pelo menos, segurar por mais tempo essa informação? Desse modo, cada vez que aparecesse o disco voador, o espectador adentraria cada vez mais no universo do filme sem entender o que está acontecendo, gerando uma revelação maior e uma participação ativa durante todo o mistério.

Esse problema de entrega de informações se repete na cena de invasão à Bacurau. Nessa cena, todos os invasores aproximam-se da cidade por diferentes ângulos e, inicialmente,  não encontram nenhum morador. Quando os gringos chegam na cidade e vêem as roupas da criança assassinada anteriormente na narrativa manchadas de sangue, há o início de uma participação ativa do espectador. Perguntas surgem: “será que eles vão lutar? Será que eles fugiram? O que será que vai acontecer agora?” Criação de suspense, check! Mas, novamente, os realizadores entregam cedo demais a informação que os habitantes de Bacurau ainda estão lá, com um trope clássico do cinema de Kleber Mendonça Filho: alguém passa como um vulto no fundo do quadro. Com isso, a construção narrativa do suspense e da tensão é prejudicada pela precocidade da informação.

Alguém poderia perguntar: agora isto criaria tensão, certo? Teoricamente sim. Só que, novamente, a escolha na direção de atores é um tanto estranha, pois os gringos não se apresentam como uma grande ameaça, eles sempre tem uma postura blasé frente às situações. Estruturalmente, a cena funciona como uma clássica sequência de filme de suspense onde um personagem investiga um barulho no porão. Porém, essas construções funcionam e envolvem a audiência justamente porque a empatia da audiência está colocada sobre esses personagens que entram no porão. No caso de Bacurau, isso não funciona a partir do momento que nós sabemos que os habitantes ainda estão em Bacurau, pois a cena é orquestrada como se devessemos temer pela vida dos gringos. Contudo, nós não sentimos nenhuma empatia por eles e suas vidas, logo o tempo que os realizadores levam para introduzir o ataque dos moradores de Bacurau é só uma grande espera na qual o espectador não sente nada.

Além do mais, essas escolhas culminam em uma solução fácil³ — embora eu entenda a poesia da coisa — onde os moradores de Bacurau defendem sua história e existência exterminando os antagonistas a partir do Museu e da Escola da cidade. Mas justamente por entender a poesia da coisa, acredito que uma boa construção no decorrer da cena que invoque os signos específicos do gênero envolvendo o espectador através da tensão e do suspense, não só dependendo dos choques nas resoluções, faz-se necessária. Eu gostaria de ter sentido que os moradores de Bacurau poderiam perder, gostaria de ter temido pela vida dos personagens com os quais criei empatia. Gostaria que Bacurau fosse uma montanha russa onde a subida me faz sofrer de antecipação pela emoção da descida. Mas, ao menos no que encerra a criação de tensão e suspense, infelizmente, Bacurau é feito de subidas rápidas demais que não fazem jus ao júbilo das descidas excelentes. O conflito entre a sagacidade criativa dos escritores e a construção narrativa fizeram com que eu não sentisse nada na cadeira do cinema.

Em suma, Bacurau não funciona enquanto experiência ativa de cinema para o espectador pela confusão na relação dos personagem com a respectiva empatia da audiência; escolhas de direção de atores que não corroboram com a dramaticidade da cena, aliadas à precocidade na entrega de informações. Dessa forma, o filme deixa a audiência tanto apática no decorrer das cenas, quanto frustra qualquer tentativa de engajamento ativa por parte do espectador.

¹ Quanto ao aspecto discursivo do filme e sua relação com a conjuntura brasileira na época de seu lançamento, recomendo o excelente texto E quando a violência revolucionária não é no cinema? A linguagem política e a crise do “marxismo acadêmico” escrito por Jones Manoel e publicado na Revista Opera.

² Alfred Hitchcock On Mastering Cinematic Tension

³ Aqui, para uma análise discursiva, reitero o texto de Jones Manoel, no qual ele analisa como a derrocada dos personagens que representam o imperialismo e o fascismo se dá de maneira extremamente fácil, onde a superação dessas ameaças no filme se confundem com o desejo do espectador de superação dessa ameaça na vida real, como se a derrota delas no plano histórico-concreto se desse da mesma forma.

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