As representações de Umbanda e Candomblé no Cinema brasileiro setentista enquanto metáfora das identidades nacionais.

Por Vinicius Chimirri

Fotograma de Tenda dos Milagres (Nelson Pereira dos Santos, 1977)

Analisar as concepções do que é nacional e popular no cinema brasileiro é, como pontua Jean-Claude Bernardet e Maria Rita Galvão, realizar uma observação dos fundamentos ideológicos da sociedade brasileira e notabilizar percepções sociais utilizadas pelos agentes do campo cinematográfico. Na primeira metade dos anos 60 houveram alguns filmes significativos que colocaram em evidência o retrato da fé afro brasileira, tais como “Bahia de Todos os Santos” (1961) de Trigueirinho Neto, que causou efervescência na imprensa por ser uma promessa da inserção de um autêntico elemento da cultura afro diaspórica no Brasil: O Candomblé. Infelizmente a produção pecou em sua proposta, de maneira que no seu livro“Brasil em Tempos de Cinema”, Jean-Claude coloca que “o anti-burguesismo” de Neto fora primário”, e só levara a reforçar a moral burguesa”. Ainda segundo Bernardet, a partir do lançamento de “Barravento”, de Glauber Rocha, em 1962, o cenário de exclusão do “homem do povo” e de sua cultura começa a mudar e tem-se, nesse momento, ensaiadas as primeiras manifestações de um olhar étnico sobre o Candomblé e a Umbanda no cinema como constituidores de identidades.

Já na segunda metade dos anos 60, Glauber finaliza“ O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro”, filme que conduz um agenciamento do sincretismo, personificado na relação que é estabelecida logo no início do filme entre São Jorge e Oxossi. A partir da análise de José Gatti em “Visibilidade racial em o Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro”, nota-se que começa a se estabelecer um pensamento das identidades étnicas, raciais e culturais que vão, no início da década de 1970, se expandir.

Nos anos 70, segundo Ismail Xavier, as ideias de nacional e popular vão adquirir outro espaço. A década se inicia com um avanço da indústria cultural e a produção cinematográfica oscila em dois pólos: a Boca de Lixo, com suas pornochanchadas, e as produções da Embrafilme (empresa estatal brasileira de economia mista, que estabeleceu fortes diálogos com diretores provindos do Cinema Novo), de modo a se ter uma pluralidade temática nos filmes. Entre 1970 até meados de 1984 nota-se uma preocupação maior em tratar de alguma manifestação da cultura popular, principalmente a religião, e em especial no cinema de ficção com a Umbanda e o Candomblé, que estabeleceram trânsitos da realidade social. 

Nesse sentido, em 1973, é lançado pelo Conselho Nacional de Cultura “As diretrizes Nacionais para um Plano Nacional de Cultura”, que promovia iniciativas governamentais para a preservação da identidade nacional do homem brasileiro, cuja formação cultural advinha da miscigenação do europeu, do índio e do negro. E justamente nos anos 70 nota-se a expansão da Umbanda e do Candomblé no país, que conquistaram novos adeptos entre classes média e baixa, expandindo-se nos centros urbanos do Brasil de maneira a se sedimentar como temas recorrentes na cultura de consumo em expansão (BASTIDE, Roger). Após o golpe de 1964, os cineastas reavaliam suas posturas e as religiões populares (assim como outros elementos da cultura popular) começam a se inserir como definidoras de enredos e formas no campo cinematográfico. Três produções em especial nos permitem compreender essas imagens de representação constituídas como metáforas das identidades: “O Amuleto de Ogum (1974)”, “Tenda dos Milagres (1977)” e “Prova de Fogo (1980)”.

É importante frisar que a discussão acerca de identidade étnica eclodiu no Brasil na década de setenta de maneira que a Umbanda e o Candomblé tornaram-se temas recorrentes em debates e estudos acadêmicos; destaco aqui a contribuição de Renato Ortiz, que deu o norte nas relações entre sincretismo e etnicidade. Ademais, para compreender a proposta dessas religiões como metáforas no cinema do período, faz-se útil rememorar o conceito de democracia racial, pressuposto da igualdade de indivíduos de raças diferentes, e que segundo Antônio Alfredo Guimarães, entra em voga nos anos 40 e são enunciados, primordialmente, por Roger Bastide e Arthur Ramos. Pós 1964, não se fala mais em democracia racial, mas sim em mito racial e estudos alternativos começam a emergir sobre essa questão, como os de Florestan Fernandes. Até então, os filmes frisavam muito pouco acerca dessa ideia, até “Tenda dos Milagres”, de Nelson Pereira dos Santos, ser lançado em 1977 como adaptação do romance de Jorge Amado, em que o mito aparece explicitamente na defesa de um projeto de mestiçagem para o Brasil.

O filme de Nelson mostrava ao mesmo tempo o Candomblé baiano e uma defesa do mito racial. Repleta de flashbacks, algumas unidades espaciais e temporais confusas para o espectador, além de um tempo retrospectivo, a fita nos imerge na história de Pedro Arcanjo, professor baiano, mestiço e que defendia a mestiçagem como solução para o problema de raça no país. A produção possui duas linhas dramáticas principais, sendo a primeira a chegada do cientista americano Liverstone, que vem ao Brasil  para investigar a vida do sociólogo Pedro Arcanjo e encarrega Fausto Pena, poeta e repórter do Jornal da Cidade de levantar as informações sobre o indivíduo. Pena acaba descobrindo que ele tinha sido um mulato frequentador do Candomblé alcunhado de Oju Obá (termo que faz parte do culto do Orixá Xangô, pois representa um Oyê, que é uma nomenclatura honrosa para aqueles que se tornam alto sacerdotes no culto de Xangô). Era também bedel da faculdade de medicina da Bahia, o que o caracterizava como uma figura diferente da pregada pela imprensa, o que o leva a decisão de dirigir um filme sobre a vida do Oyê Pedro Arcanjo Oju Obá.

Já a segunda linha, apresentada paralelamente, é justamente a metalinguagem exposta pela encenação da vida de Pedro Arcanjo no filme de Fausto, que convida o espectador a uma realidade social que metaforiza a cultura brasileira em seus pressupostos raciais enquanto o insere no Candomblé a partir de uma troca constante entre planos fechados, close-ups, planos americanos e de conjunto, aliados a uma mise en scène que permite uma compreensão ampla do espaço. A mestiçagem encarnada em Pedro e a afirmação de uma etnicidade são realizadas na imagética em torno da religião. Merecem destaque as representações dos ritos, incorporações, atabaques e planos dedicados às giras de orixás (em que é possível identificar Obaluaê, Iansã, Ogum, Oxalufã, etc.), o que faz de “Tenda dos Milagres” um dos maiores expoentes do período no uso do Candomblé para a constituição da narrativa. 

Uma outra produção de Nelson Pereira, O Amuleto de Ogum”, que precedeu “Tenda dos Milagres”, lançada em 1974 e sustentada em valores umbandistas, conta a história de Gabriel, um jovem que é levado pela mãe a um terreiro e passa a ter o “corpo fechado”, posteriormente se aliando ao mundo do crime mas mantendo-se invulnerável no decorrer da trama. A obra nos imerge no elemento fantástico ligado à mitologia da Umbanda e em um realismo objetivo que utiliza-se do sobrenatural para demonstrar valores populares. Todos os espaços de Umbanda na obra são locais de fraternização, locais onde os povos de reúnem e confraternizam independente do seu meio social. Aqui o poder místico da religião ultrapassa os espaços sociais e atua como um “poder dos fracos” e a invulnerabilidade do protagonista exerce o sentido de uma representação do povo que faz de sua crença a sua resistência e seu meio de poder para a construção de sua identidade étnica, distanciando-se de uma ideia de alienação.

Compreende-se que a Umbanda é uma religião com muitas particularidades muito bem representadas no filme, sendo a principal delas seu aspecto sincrético, que miscigena catolicismo, espiritismo e elementos do Candomblé, além de seus rituais festivos, os despachos de encruzilhada e seu caráter místico. A narrativa naturaliza a Umbanda, por meio de travellings que percorrem o espaço dos terreiros (sendo rejeitada a concepção de ser uma espaço alienante como vista em “Barravento”), e que está presente como meio cultural associado ao ambiente dos pobres e despossuídos. O crítico Marco Aurélio Luiz, ouvido por Jean-Claude Bernardet, pontuou a eficácia etnográfica da obra ao indicar a tentativa de Nelson de colocar como positivo o discurso do povo, seus valores de civilização, seu simbolismo e suas instituições. 

Fotograma de “O Amuleto de Ogum” (Nelson Pereira dos Santos, 1974) 

 Diferente de “Tenda dos Milagres”, aqui Nelson Pereira dos Santos foca em mostrar a harmonia étnica que se conflui na religião, uma vez que negros, brancos e indígenassão adeptos dos terreiros; além disso, o filme chama o espectador a refletir sobre um recorte mais específico: a posição social das personagens. A etnicidade é construída a partir da não menção aos elementos ancestrais africanos e nem aos europeus que compõem a fé de Umbanda, mas colocando-a como uma religião genuinamente brasileira, como signo da nação e patrimônio dos pobres. E ele vai além, ao não construir uma alegoria tropológica, e sim construir marcações étnicas, uma vez que, Gabriel é branco, porém recebe todo o poder do pai-de-santo negro, culminando uma troca de poderes que estabele uma dialética, na qual a Umbanda tem um caráter estruturador da narração. 

A terceira produção destacada é de Marco Altberg, lançada em 1981, financiada pela Embrafilme e encenada no Rio de Janeiro: “Prova de Fogo”. Semelhante a Nelson Pereira, que consultou antropólogos e pais-de-santo para produção de suas obras, Altberg teve inspiração na dissertação de Yvonne Velho, “Guerra de Orixá”, assim como contou com a ajuda de Nívio Ramos (Sociólogo e pai-de-santo para a construção do filme). Com argumento fraco, imperfeições estéticas e elipses que deixam lacunas, mas com um grande olhar histórico, a narrativa baseia-se na vida de Mauro Ramos, desde sua entrada na Umbanda até a constituição de sua fama como pai-de-santo. A obra faz uso de uma série de elementos estilísticos tais como iluminação, trilha sonora e travellings para compor o sobrenatural do filme.

Fotograma de  de “Prova de Fogo” (Marco Altberg, 1981)

Possivelmente “Prova de Fogo” é o filme que melhor caracteriza os elementos da Umbanda, pois nada é idealizado. Apesar de apresentar ideia semelhante a de “O Amuleto de Ogum”, em que a fé seria o “poder dos pobres”, os personagens não estão interessados em subverter a dominação na qual estão inseridos e o diretor procura desmistificar a religião como um símbolo diretamente relacionado à resistência social. Isso rompe com um discurso muito usual na indústria cultural da época que promovia um “uso positivo da África” para credibilizar artistas e intelectuais que utilizavam de suas referências.  Em “Prova de Fogo”, não se faz marcação étnica, justamente para que se evidencie a forma como a Umbanda encara o caráter universal da religião, promovendo uma rica representação de sua cultura com encenações de incorporações, preto-velhos, exus, pomba giras, zé pelintras, boiadeiros, caboclos e outros. As giras, os pontos cantados, cada momento que a câmera percorre o ambiente do terreiro é de uma naturalidade ímpar que nos imerge em uma verdadeira e genuína gira de Umbanda.  Em um momento metalinguístico e ousado, o filme revela câmeras de um canal de TV filmando uma incorporação, aludindo à imersão das religiões populares nas mídias brasileiras da época.

Com isso, visualiza-se que ocorrem oscilações nas formas como as representações destas religiões se dão nos filmes discutidos, mas a caracterização do poder-místico como aliado dos pobres é predominante, de modo que a Umbanda e o Candomblé, enquanto referências de segunda ordem, deflagram discussões e inserem-se como um valor identitário nacional e uma manifestação do povo. Em Tenda dos Milagrestemos a defesa de um Brasil futuro constituído por uma raça mestiça. Já em “O Amuleto de Ogum”, aparece como uma resistência autêntica e em “Prova de Fogo”, temos a personificação do popular. 

Em todos os casos, as duas religiões aparecem nos filmes como formadoras de imagens do brasileiro, promovendo signos que articularam diferentes raízes culturais da nação, de maneira a indicar as manifestações da fé afro-brasileira como núcleos aglutinadores das categorias culturais e sociais. E talvez o mais fundamental seja a compreensão de que em nenhum momento objetivou-se a homogeneização de um discurso. mas sim a conflagração de um debate (por meio da utilização das representações imagéticas de Umbanda e Candomblé) acerca de identidades, que começou a se destacar nos  primórdios dos anos  60 e ainda hoje segue em trânsito no Brasil.

 REFERÊNCIAS

ORTIZ, Renato. A Moderna Tradição Brasileira – cultura brasileira e indústria cultural. São Paulo: Brasiliense, 1988. 222p.

SALEM, Helena. Nelson Pereira dos Santos: o sonho possível do cinema brasileiro. 2 ed. São Paulo: Record, 1996. 371p.

SIQUEIRA, José Jorge. Entre Orfeu e Xangô: a emergência de uma nova consciência sobre a questão do negro no Brasil 1944/1968. Rio de Janeiro: Palles, 2006. 254p.

BASTIDE, Roger. As Religiões Africanas no Brasil. São Paulo: Pioneira; EDUSP, 1971.

MASCARELLO, Fernando. História do Cinema Mundial. Campinas, SP: Papirus, 2005.

XAVIER, Ismail. Cinema Brasileiro nos Anos 70. In: MORARES, Matos. Perspectivas Estéticas do Cinema Brasileiro. Brasília: Editoria da UnB, 1986.

FILMOGRAFIA

TENDA DOS MILAGRES. Direção: Nelson Pereira dos Santos. Produção de Regina Filmes. Rio de Janeiro, 1977. (148 min.)

O AMULETO DE OGUM. Direção: Nelson Pereira dos Santos. Produção de Regina Filmes Ltda e Embrafilme S.A. Rio de Janeiro, 1974. (112 min.)

PROVA DE FOGO. Direção: Marco Altberg. Produção: L.C. Barreto Ltda. e Embrafilme S.A.  Rio de Janeiro, 1981. (90 min.) 

Deixe uma resposta