Era Uma Vez: a naturalização da desigualdade social e dos clichês sobre a pobreza no cinema brasileiro¹

Por Mariana Peixoto² (Estudante de graduação em Cinema e Audiovisual na Universidade Anhembi Morumbi e estudante de bacharel e licenciatura em Filosofia pela Universidade de São Paulo)

Resumo: O trabalho se propõe a estudar como as desigualdades sociais são abordadas pelo cinema através dos olhos do diretor Breno Silveira, em seu filme de 2008, Era Uma Vez…, enxergando essas diferenças pelo que elas são: conflitos de duas classes sociais diferentes. Por meio de uma análise da mise-en-scène e das escolhas narrativas do longa em questão, e sua aproximação com estudos sobre as formas de representação dessas questões no cinema e o audiovisual por autores como Ivana Bentes mostramos como o cinema reflete e, ao mesmo tempo, ajuda a reforçar uma naturalização da desigualdade social da sociedade brasileira por meio dos clichês audiovisuais já estabelecidos acerca da pobreza.

Palavras-chaves: Cinema brasileiro contemporâneo. Desigualdade social. Breno Silveira. Era uma vez.

Introdução

Era Uma Vez, filme brasileiro de 2008, dirigido por Breno Silveira, roteirizado por Patrícia Andrade e Domingos Oliveira, é uma coprodução da Conspiração Filmes (produtora do diretor), Globo Filmes, Lereby e Sony Pictures. O longa conta a história de um casal de ‘rivais histórico-sociais’, uma espécie de Romeu e Julieta no Rio de Janeiro, mas o que os separa não é um ódio entre famílias de mesma classe social e sim a profunda desigualdade social, fadando o seu relacionamento ao fracasso, como o próprio filme vai construir.

As personagens desse romance são Dé(Thiago Martins), morador da favela do Cantagalo, e Nina (Vitória Frate), filha de um empresário de classe média e dono de um apartamento de frente para a praia de Ipanema, estes são os nossos amantes cuja relação serve de ponto de partida para o filme. Além deles, o irmão de Dé, Carlão (Rocco Pitanga) que fora preso injustamente anos atrás e volta para tomar o morro no mesmo momento em que os dois começam a namorar, é outro protagonista.

A estrutura melodramática está montada e os golpes da fortuna que atrapalham o relacionamento, que por si só já é uma espécie de revés da fortuna por juntar duas pessoas improváveis numa relação, vão construindo      a narrativa que explora uma série de clichês e estereótipos da favela e da pobreza. E como “mesmo no cinema de gênero, os estereótipos não são neutros” (SCHVARZMAN, 2018: 55), cabe aqui prestar atenção sobre como esses clichês se apresentam e o que eles representam. 

Sendo um filme majoritariamente produzido com incentivos públicos³, coproduzido pela Globo Filmes e uma major estadunidense, a Sony Pictures, o filme fez uma bilheteria razoável, 570.470 espectadores, mas ainda assim não arrecadou o suficiente para pagar a sua produção (a produção custou R$5.431.482,55 e arrecadou um total de R$4.558.034,00). 

Era Uma Vez é o segundo longa-metragem de Breno Silveira. Autor da cinebiografia Dois Filhos de Francisco, a maior bilheteria de 2005, o que justifica o alto investimento em um projeto mais autoral do diretor. O filme, entretanto, não repetiu o mesmo sucesso, mas movimentou a indústria cinematográfica nacional no ano de 2008, quando foi lançado.  

Os anos 2000 e a primeira metade dos anos 2010 foram um momento de grande crescimento para o Brasil como um todo. 2008, o ano de lançamento de Era Uma Vez, é um ano chave nesse crescimento econômico e estabilidade política do Brasil. Com a crise da bolha imobiliária estadunidense se espalhando se espalhando por todo o mundo, ainda havia esperança de que o momento de euforia que o país vivia não seria abalado. Como escreve Singer (2009), as medidas redistributivas que o governo Lula já vinha realizando na época ajudaram o Brasil a não sentir os efeitos da crise de maneira tão brusca.

Por meio de uma metodologia hipotético-dedutivo, analisamos o filme Era Uma Vez confrontando o com a bibliografia de Ivana Bentes (2003; 2007), sobre a representação do outro, e o conceito de clichê de Deleuze (2018), trazendo também referências da carreira do diretor do longa em questão. Visando entender como o cinema comercial trata as desigualdades dentro de um país que nasceu calcado nelas, especificamente nesse momento ascensão social para uma parcela da população brasileira e uma aparente guinada econômica que o país dava.

A Princesa e o Plebeu

    ‘Era Uma Vez’ assim começam os contos de fadas, e é com essa impressão que mergulhamos no filme de Breno Silveira. Um plebeu com uma história triste e apaixonado pela princesa, essa é a premissa que o filme nos apresenta durante pelo menos a primeira metade, o que também nos causa essa impressão de estar assistindo uma fábula amorosa que se passa no Rio de Janeiro. Vale a pena nos determos nessa relação, porque a forma quase fantasiosa de representar o contato morro-asfalto mostra de forma curiosa como funciona o olhar de um sobre o outro: o morro vendo o asfalto, e o asfalto vendo o morro, tudo isso a partir da visão de um cineasta de classe média, em um filme como o que acabamos de descrever. 

  “Eu moro no lugar mais bonito do mundo: o morro do Cantagalo”, enquanto a câmera faz uma panorâmica, saindo dos barracos da favela do Cantagalo e parando na vista da belíssima praia de Ipanema, “Uma favela no bairro mais rico do Rio de Janeiro”, assim começa a cena de abertura do filme. Falar que o Cantagalo é o lugar mais bonito do mundo, enquanto a câmera nos mostra a Praia de Ipanema, parece um bom jeito de mostrar ao espectador algo que está implícito na frase: o lugar mais bonito do mundo não é o Cantagalo. 

Em seguida, Dé (Thiago Martins), protagonista do longa, continua seu discurso: “Gari, babá, ambulante, flanelinha, motorista, garçom, boy, é muita gente. Faço parte dessa multidão invisível que trabalha todos os dias nas ruas de Ipanema”. Tudo isso com imagens do morro em primeiro plano, pessoas subindo e descendo em direção a cidade, e ao fundo a praia de Ipanema, com seus prédios imponentes e caros. Como se a “cidade” fosse uma presença constante dentro da favela, sempre no imaginário e a vista de todos os que ali habitam, todos os dias essas pessoas descem o morro e fazem os trabalhos que aqueles que estão no asfalto não fazem.

Um plano gravado no interior da favela mostra o quão próximos ficam os prédios chiques de Ipanema, e uma vista aérea confirma os barracos do Cantagalo separados dos prédios de luxo apenas por uma faixa de árvores.  

“Quase ninguém nota nossa presença”, conhecemos um pouco mais do personagem, que até aqui não nos havia sido apresentado: ele é vendedor de cachorro-quente na orla da praia de Ipanema. A cena explícita como o próprio filme pinta essa figura de um subalterno invisível, e a atribui ao seu personagem principal. Dé é a multidão invisível, sua posição enquanto vendedor da vendinha de cachorro-quente na orla da praia representa esse movimento de descer do morro e trabalhar na cidade, sem ser notado pelos que frequentam o calçadão de Ipanema, a não ser como o ‘vendedor de lanches’. Ele cumpre esse papel de subalterno na sociedade e representa a multidão invisível no filme.

“Minha mãe sempre dizia que rico é rico, e pobre é pobre”, se a cidade, por si só, com sua arquitetura partida, já deixava isso claro, a fala vem para reforçar essa cisão da cidade. Cisão essa que logo vai ser derrubada pelo conto de fadas e a regra implícita de que o herói fica com a mocinha – “Mas quando eu via ela, eu esquecia disso”, ou ao menos é isso que aconteceria num conto de fadas. 

Sobre como o cinema brasileiro se relaciona com a favela, Ivana Bentes (2007: 246-247) escreve: “fascínio combinado com expressões de horror e repulsa, sentimentos contraditórios que o cinema nunca deixou de apontar e expressar”. Essa frase é um bom jeito para começar a falar sobre a relação de Nina e Dé. Se entendermos que esse tipo de cinema é notadamente o olhar de quem não vem da favela sobre a favela, podemos substituir “o cinema” por “Nina” e entender que o que ela sente por Dé é essa mistura de fascínio e horror.  

A primeira cena em que o casal interage demonstra bem essa relação ambígua que apontamos acima. Dé salva Nina de um assalto. Seis garotos (todos negros) se aproximam da garota por trás e pretendem roubar sua bolsa, Dé vê a cena e se aproxima de Nina, que se assusta, pois acha que ele está junto dos garotos, que só então ela percebe. Dé é mais um favelado. E a relação que Nina tem com quem vêm do morro é uma relação conflituosa, de medo. Conforme a relação entre os dois vai se desenhando, esse sentimento se mistura com um deslumbramento frente aquilo que não se conhece. 

Dé encara os garotos, e a câmera nos oferece em plano e contra plano as duas versões do que um favelado pode ser: parte da multidão invisível (como Dé) ou bandido. O medo na cara de Nina não vai embora quando os garotos se afastam e Dé a leva até a porta de casa. O medo persiste quando ela não responde o “boa noite” que Dé fala, e ainda está lá enquanto as grades, que parecem barras de prisão, do portão fecham, separando os dois, “rico é rico, e pobre é pobre, cada um pro seu lado”. 

A parte da conquista é uma das mais importantes de todo conto de fadas romântico, o herói tem que encontrar um jeito de ficar com princesa. Joseph Campbell (1990: 211) escreve sobre o amor romântico e sua construção no imaginário mítico de toda a sociedade: “Eis aí a força desse princípio. Ele se originou na Provença do século XII e você foi topar com ele no Texas do século XX”, daí a importância dessa construção que o filme faz em torno do romance de Nina e Dé, e a importância de entender como é utilizado o clichê romântico na perpetuação das desigualdades e na naturalização da opressão. 

  Depois dessa apresentação das personagens, Dé procura se aproximar de Nina. Fingindo não ser favelado porque agora ele sabe que não tem chances com ela sendo pobre. Ele se aproveita do fato dela não o reconhecer como o vendedor da barraca de cachorro-quente e passa a fingir ser alguém que não é, finge não fazer parte da multidão invisível. 

Primeiro o garoto usa a prancha de surfe de um cliente da barraquinha para tentar se aproximar da garota e a impressioná-la, e mais tarde tenta entrar escondido em uma festa na praia. Na festa, é barrado e só consegue entrar quando finge ser carregador de bebidas, mas uma vez dentro, ele consegue se aproximar da menina e acaba ganhando um beijo. Quando ela descobre sua verdadeira identidade, um vendedor de cachorro-quente, fica chocada, e Dé, envergonhado por ter sido descoberto foge, ao ver a expressão no rosto da garota.

Um elemento comum em ambas as cenas que a câmera e o próprio diálogo não nos permitem deixar de perceber, é o livro de Zuenir Ventura, Cidade Partida, que Nina lê na praia, e mais tarde Dé usa como artifício para começar uma conversa com ela. O livro apresenta um panorama histórico de como a favela sempre foi tratada enquanto o “lado de lá”, violento, e que precisava ser combatido.

Além disso, a tópica da cidade partida que é também central no filme é explorada no livro de maneira parecida, a relação problemática do asfalto com o morro, criando duas cidades completamente diferentes dentro de um mesmo espaço geográfico.  

 A partir desse momento, Dé aceita que “Nina não é mulher pra ele”, e se afasta. Nina também se afasta, mas uma amiga observa que ela estava gostando do garoto, e agora, porque descobriu que ele é pobre, o sentimento acabou. Isso a deixa pensativa. 

Uma noite, quando seu pai dá uma festa para os sócios da sua empresa, Nina percebe a corrupção das pessoas ao seu redor, a fantasia de que vive uma vida perfeita vai ruindo. Quando a menina entra no escritório do pai e vê ele recusando uma oferta de propina a imagem em slow motion representa essa realização de que nem tudo ao seu redor é perfeito, mais adiante ela entra no banheiro e vê uma mulher usando cocaína, e a cena desacelera novamente. Ela corre até a janela da sala e vê, lá embaixo, na barraquinha, Dé limpando as mesas, e decide falar com ele. O garoto a afasta, pedindo desculpa por omitir a verdade sobre quem ele era, e diz que agora sabe que ela é “demais para ele”. 

Nina decide subir o morro e ir ao baile funk atrás de Dé. E somos inundados pelo olhar da menina sobre morro, logo de cara uma plongée do traficante de drogas – negro -oferecendo a ela 10 gramas de cocaína, que ocupa a posição da câmera, observando o de baixo, acuada. O mesmo recurso de desacelerar a imagem usado quando Nina percebe a ‘podridão’ ao seu redor volta aqui, para representar o olhar de Nina, e as coisas que chamam sua atenção. Ela olha uma multidão de corpos negros dançando, caminhando e correndo nas vielas, vê o corpo das mulheres em roupas curtíssimas, volta o olhar para os grafites e pichações nas paredes. O uso do mesmo recurso de desacelerar as imagens parece querer equiparar o que há de ruim nos dois espaços. 

Uma enxurrada de estereótipos do que é aquele “território real e simbólico com grande apelo no imaginário” (BENTES, 2007: 242). É a mesma favela, filmada do mesmo jeito que estamos acostumados a ver nas novelas e outros filmes que tratam desse espaço social. O exemplo mais marcante talvez seja Cidade de Deus, e conforme Ivana Bentes:

A questão é que não estamos mais lutando contra o olhar exótico estrangeiro sobre a miséria e o Brasil que transformava tudo “num estranho surrealismo tropical”, como dizia Glauber em 1965. Somos capazes de produzir e fazer circular nossos próprios clichês […] (BENTES, 2007: 253)

O clichê é, como aponta Deleuze (2018: 308), aquilo que dá a impressão de real para o que se vê na tela. É por meio deles que o filme vai naturalizando cenas e afirmando imaginários já naturalizados sobre o espaço da favela. Tudo isso numa estrutura narrativa, que por si só já é um clichê, o melodrama levado ao extremo. A sucessão de clichês aliada a qualidade tecnológica da imagem e a estética clean e familiar ao espectador, com “planos bem iluminados, bem compostos, nítidos, estáveis” (CARREIRO, 2018: 166), cria também uma atmosfera de hiper-realidade, nas palavras de Baudrillard (1991: 65). Atmosfera essa que reforça ainda mais a espetacularização do real que o filme passa.   

Depois da ‘mocinha’ enfrentar o ‘perigo’ e subir o morro, Nina e Dé finalmente ficam juntos. Ao som da trilha sonora original de Marisa Monte, o casal se beija no baile e depois vão juntos para a casa de Dé. De lá eles veem a praia e o apartamento da menina. “É tão perto, né?, diz Nina – Pois eu acho longe, responde Dé”.

O plebeu conquistou a princesa. A regravação do samba “Minha Rainha”, na voz de Luiz Melodia⁴ , começa a tocar e uma sequência de cenas do relacionamento aparentemente perfeito dos dois ocupa quase cinco minutos do filme. Uma espécie de videoclipe do “felizes para sempre”. Mas esses cinco minutos são exatamente o tempo que dura o idílio, porque a partir desse ponto, os problemas começam a aparecer, e começa a saga dos amantes desafortunados. 

O Bandido e o Plebeu

Depois da cena de abertura e antes de entrar de cabeça no romance, o filme nos leva dez anos antes e apresenta Dé e sua família. O menino acompanha seu irmão mais velho num jogo de futebol onde um olheiro do Flamengo recrutaria meninos para jogar nos times de base. O futebol é tido como uma das poucas opções para a ascensão social para meninos do morro, e faz sentido, logo em suas primeiras cenas, o diretor de Dois Filhos de Francisco, nos apresentar a ascensão social como um objetivo de vida das pessoas pobres, falaremos mais sobre adiante no texto.

Um outro garoto, envolvido com tráfico de drogas, não fica feliz com o possível sucesso de Beto, irmão de Dé, e briga com ele diante de todas as pessoas. Dé, com medo, chama seu irmão mais velho, Carlão (Rocco Pitanga), para apartar a briga. Ao final, ambos Beto e Carlão saem jurados de morte. Alguns dias depois, Beto é morto nas ruas do morro, e a mãe dos meninos manda Carlão fugir para que o mesmo não aconteça com ele.

Carlão já é adulto quando tudo isso acontece, trabalhava com instalações elétricas, resolvendo problemas causados pelos vários “gatos” nos postes de luz do morro. Depois de tudo isso, ele vai morar na rua, no calçadão de Ipanema. Dé o visita frequentemente, antes de ir para a escola. E assim segue a vida. Até um dia que Dé decide que quer matar o garoto que matou seu irmão, para tal rouba uma arma e a carrega na mochila. 

Em uma de suas visitas a Carlão, mostra a arma ao irmão, que preocupado tira a arma do menino e guarda em sua própria bolsa, desestimulando o irmão do desejo de vingança que não o levaria a lugar nenhum. Mais tarde, a polícia faz uma batida na praia, e aborda Carlão, que vai preso pelo porte da arma. 

É esse evento que vai, numa lógica determinista, criar as condições que levaram cada um dos personagens ao seu fim. E não por acaso, podemos ver nas histórias de cada um desses personagens uma representação de tipos sociais da pobreza, que já apontamos lá em cima: parte da multidão invisível porque pobre, ou bandido.

Essas duas possibilidades de existência aos que vem da favela é pautada em estereótipos: o trabalhador, que batalha para tentar mudar de vida, e o bandido. Mas quando falamos dessa perspectiva de um bandido clichê, é necessário observar como essa representação é ambígua e tem mais de uma faceta. O filme nos apresenta as duas perspectivas mitológicas do “bandido” que o cinema brasileiro já conhece: o “bandido vítima social” (que é resultado da violência do meio), encarnado pela personagem de Carlão, e o “bandido mau”, representado pelo garoto que mata Beto e anos mais tarde é morto por Carlão quando esse volta ao morro. 

Dé, como já mostramos, é parte da multidão invisível de pessoas que servem e trabalham para os mais ricos. Carlão é o bandido vítima social, que não se torna bandido por uma escolha, mas sim devido às circunstâncias (a prisão equivocada, uma injustiça que marca o personagem, elemento fundamental do melodrama, e a violência dos presídios), e decide usar o poder que ganharia através do tráfico de drogas para algo bom (não perpetuar a violência no morro), mas é impedido pelas instâncias maiores de poder acima dele (a polícia e os chefes do tráfico). 

Quando falo do bandido vítima social, entendo que o filme em questão se afasta tanto de uma tradição do bandido cinema-novista em que ele “rebelde primitivo, é portador de uma ira revolucionária” (BENTES, 2007: 242), mas também não se adequa por completo ao novo paradigma de representação do outro que está nascendo, onde a ideia de bandido “vai de encontro com a percepção do público, são bandidos e não vítimas sociais” (SCHVARZMAN, 2018: 23). É uma visão paternalista, de um outro caricato e que quer ser consumível.

É nesse contexto, de uma cultura capaz de se relacionar com a miséria e a violência com orgulho, fascínio e terror que podemos analisar os filmes brasileiros contemporâneos que se voltam para esses temas. Filmes que quase nunca se pretendem “explicativos” de qualquer contexto, não se arriscam a julgar, narrativas perplexas, e se apresentam como “espelho” e “constatação” de um estado de coisas. (BENTES, 2007: 49)

É preciso aqui, chamar a atenção sobre como os personagens de bandidos, envolvidos com o tráfico, são, em sua maioria, representados por negros. Carlão é interpretado por Rocco Pitanga, e em muitos momentos do filme é chamado pela alcunha de “macaco”, absolutamente pejorativa, pelos chefes do tráfico que mais tarde ele mesmo vai tirar do poder. O chefe do tráfico acima de Carlão, e que paga para tirá-lo da cadeia, é interpretado por Babu Santana. Na cena em que Carlão toma o morro, vemos todo o seu ‘exército’ de corpos negros, vestidos com estampas militares com armas em mãos. Enquanto Nina e Dé⁵ são brancos, assim como o pai de Nina e todos os seus amigos.

A persistência do imaginário de que corpos negros sempre ocupam espaços marginais, enquanto cabe ao branco o papel de protagonista e o idílio, mesmo que passageiro, persiste no filme. Apesar de estarmos aqui falando da desigualdade social, e como o filme a naturaliza, não podemos deixar de apontar como também naturaliza a desigualdade racial, ao persistir na “branquitude como padrão estético” (ARAÚJO, 2006). 

Imagens de pobreza e ascensão de classes como um denominador comum na filmografia de Breno Silveira (e Patrícia Andrade)

Se nosso objetivo é entender como o filme de Breno Silveira naturaliza a desigualdade social, então é relevante trazer para a discussão a filmografia do autor, e perceber como essa naturalização não é pontual apenas no filme em que e trabalhamos.

Tendo isso em mente, parece ser lugar comum na obra do diretor (e da roteirista que o acompanha em todos os seus filmes) imagens e temas relativos a esse “outro” que está concentrado nos bolsões do país associados à pobreza extrema: a favela e o sertão. Tópica explorada pela, já citada, Ivana Bentes. Mas além disso, parece haver um recorte mais preciso ainda dessas imagens que aparecem recorrentemente nessas obras: a relação pobre-rico, seja ela representada na forma de duas pessoas, uma de cada ‘lado da balança’, ou uma pessoa que ascende socialmente de uma classe à outra. 

O primeiro longa do duo, Dois filhos de Francisco, de 2005, aborda a possibilidade de deixar a extrema pobreza dos interiores do país por meio da música sertaneja. O filme foi um sucesso, ocupando a lista de filmes brasileiros mais vistos por anos. Coprodução com a Globo Filmes (e a Conspiração Filmes, produtora de Breno Silveira).

Era Uma Vez, o segundo longa, se refere ao recorte que abordamos, é também coprodução com a Globo Filmes. O quarto filme do diretor, Gonzaga: de pai para filho (2013), retorna às cinebiografias de músicos que renderam ao diretor sua estreia de peso, dessa vez falando sobre o sertão nordestino em contraste com o Rio de Janeiro, nas diferenças entre a infância de Luiz Gonzaga e Gonzaguinha, seu filho tardiamente reconhecido pelo pai. Também coprodução com a Globo Filmes. 

O último filme, feito e originalmente exibido enquanto uma minissérie na Globo, é Entre Irmãs (2017). O longa também vai falar sobre o sertão nordestino e seus contrastes com a capital de Pernambuco, Recife. Duas irmãs que seguem caminhos muito diferentes, uma se casando com um homem rico e influente na sociedade de Recife, e a outra se juntando ao cangaço. Cada uma representando caminhos que as afastaram da condição de quem precisa trabalhar para sobreviver. Uma através do “crime”, outra através da relação com alguém rico. De alguma forma, esse filme parece uma versão ambientada no Nordeste dos anos 1930, de algumas das questões levantadas pelo filme de Era Uma Vez, nosso objeto de estudo.

É importante prestar atenção aos discursos que esses filmes carregam sobre as relações entre a pobreza e a riqueza, pois são eles que ajudam a construir o imaginário do brasileiro médio, que consome filmes pela Globo. Esses filmes não trabalham necessariamente com a chave da identificação com a imagem na tela, eles tecem personagens e situações ambíguas que podem agradar tanto o público que poderia se enxergar na favela e no sertão, quanto com os que se veem enquanto a classe mais alta, e ainda aos que não se enxergam na tela, mas consomem aquele conteúdo absolutamente palatável por sua estética e discursos já conhecidos da televisão aberta. 

Esses filmes fazem também parte daquilo que Ivana Bentes (2007: 249) chama de espetáculo de pobres matando pobres: “não há mais sentido, só imagens. E é através dessas imagens que esses personagens e seus territórios podem desejar uma fugaz existência, sem qualquer promessa de redenção ou de integração” (BENTES, 2007: 250). Filmes de confronto de duas realidades distintas, mas o embate violento fica sempre detido no lado mais pobre, como veremos a seguir.

Do conto de fadas à tragédia 

Carlão vai ser a razão pela qual a relação de Nina e Dé se torna insustentável, como veremos a seguir. Ainda nessa lógica de que os problemas emanam sempre do ‘lado mais pobre da balança’. Chama a atenção o nome de Paulo Lins, autor do Cidade de Deus, entre os argumentistas do filme. A relação da cidade com o morro é só na chave do romance, para além disso, o extermínio fica entre os pobres, como no livro do autor. Tudo soa distante da realidade de uma polícia que mata jovens negros nas periferias todos os dias. Era Uma Vez parece uma versão melodramática de Cidade de Deus.

A desaprovação do relacionamento de Nina e Dé já vinha de antes da chegada de Carlão na história, desde o começo. E não parte só do pai de Nina, a mãe de Dé também não acha que os dois juntos seja uma boa ideia. A favela e a cidade não deviam se misturar desse jeito, é assim que pensa o status quo, pelo menos. 

Mas os dois permanecem juntos, e combinam uma fuga para o Nordeste para que possam se casar. Aqui está a maior semelhança com a tragédia Shakespeariana, junto com o final trágico e a dinâmica de amantes-rivais.

Antes da fuga, Carlão oferece uma festa no morro para se despedir do irmão, mas durante a festa é cobrado por um policial da dívida que ele tinha com a milícia após fugir da cadeia. Um dinheiro que ele não tem. Ele decide então sequestrar a namorada do irmão e cobrar um resgate por ela. No dia da fuga, Nina some e ninguém a encontra, nem Dé. Mas o pai de Nina o acusa do sequestro, colocando a polícia atrás dele. 

Quando Dé descobre que é Carlão que a está mantendo presa, vai em busca dela para salvá-la.  Diante da traição do irmão, numa discussão, acaba por matá-lo com um tiro, para proteger Nina – “o extermínio dos pobres se matando entre si”.

Os jovens procuram fugir e partem em busca do dinheiro que Dé havia pego emprestado para financiar a fuga, que estava guardado na barraquinha da praia em que ele trabalha. Chegando lá, encontram um circo de policiais, imprensa e curiosos, ávidos pelos desdobramentos do sequestro de Nina. 

Vendo que o casal corre para a barraca, são cercados pela polícia. A garota sugere que Dé saia apontando a arma para a cabeça dela, evitando que a polícia atire nele antes que eles expliquem o que estava acontecendo. 

O desfecho é previsível. Dé é morto pela polícia, Nina num acesso de raiva após a morte do amado, pega a arma e atira para cima, fazendo com que a polícia atire nela também, e ambos morrem. Com a mesma praia de Ipanema que começa, o filme termina. O corpo dos dois amantes, um sobre o outro no calçadão da praia, a gritaria e o choro da mãe e do pai desolados, rodeados pela imprensa filmados em um plano zenital (provavelmente feito com drone, uma novidade na época e um recurso caro). 

Há de se pensar que esse final, tal como o final de Romeu e Julieta, levaria a uma conciliação entre as “famílias”. Mas na realidade o que fica do relacionamento entre Nina e Dé é mais do mesmo, não existe conciliação entre as duas classes, porque essa divisão é calcada no conflito. Essa parece ser a mensagem que o filme deixa: a naturalização da desigualdade pautada na opressão do mais pobre pelo mais rico. As imagens param de passar na tela, mas ecoa a desigualdade irreparável que elas acabaram de demonstrar.

Depois da tragédia

A partir disso, podemos pensar a questão da representação e como se percebe o que o cinema mostra, discussão recorrente na pesquisa audiovisual. Falar em imagens não significa apenas o caráter indicial e figurativo da imagem, mas também sua contrapartida fora da tela, o imaginário que está associado a essa figura. Quais os discursos que um filme carrega em si e como ele atua para uma certa compreensão do mundo. 

Era Uma Vez faz parte do momento em que se chegou mais perto de uma estrutura industrial no cinema brasileiro, o modelo de produção que se estabeleceu no Brasil ao longo das duas primeiras décadas do século XXI. Com incentivo do Estado, coprodução de grandes produtoras e que está voltado para grandes bilheterias. Há de se pensar os filmes que resultam desse tipo de produção como totalmente inseridos numa cultura massiva. Esses discursos, a que nos referimos anteriormente, são por muitas vezes reflexo da condição desse tipo de cinema, inserido e que serve a uma indústria, abdicando de certo potencial crítico em nome de agradar o maior público possível.

A disfunção é individual, não é algo que podemos tributar a sociedade ou a política […] assim os filmes operam quase um ostensivo descolamento da realidade, que se constrói a partir da midiatização, como um cenário conhecido de outros filmes ou programas de televisão (SCHVARZMAN, 2018: 54)

O filme Era Uma Vez apresenta um casal de protagonistas que representa a “Cidade Partida”, e ao final transforma uma possível união numa coisa violenta, caótica e que parece errada. Não existe necessariamente um vilão que impeça essa união, só as coisas como elas são, e as desigualdades e cisões da cidade perpetuadas como uma verdade absoluta, que não tem como e nem porque ser questionada, uma naturalização da desigualdade. 

As imagens de favela, que certa cultura de massas pode nos proporcionar em produtos como esse, perpetuam os preconceitos e garantem que as desigualdades sociais permaneçam como um estado natural. Essas imagens servem como entretenimento e catarse e não tem como objetivo despertar no espectador um novo olhar sobre a desigualdade, como vem acontecendo em produções médias e pequenas no cinema produzido nesse mesmo período. 

Considerações Finais

Essa é a realidade de um cinema, que como apontamos acima, obedece a uma lógica de mercado e precisa ser o mais processado possível, refletindo aquilo que parece conversar melhor com uma audiência específica que compõe seu público-alvo, mas nem por isso podemos desistir do cinema, ou achar que ele só produz estereótipos ou clichês. Porque isso não é nem de longe verdade. Apesar disso tudo, ainda existem formas de tentar, a partir do clichê, pensar uma reconfiguração do sensível e a partir disso questionar as subjetividades políticas formadas a partir daquelas imagens e narrativas (RÁNCIERE, 2005: 17). 

Não é isso que Era Uma Vez faz, já sabemos, o filme é um exemplo daqueles que ajudam a perpetuar o status quo. Após a cena final, antes de subirem os créditos, o filme nos apresenta uma cena gravada no mesmo morro do Cantagalo que vimos no começo, com o mesmo Thiago Martins andando pelas ruas. Mas agora ele não fala por Dé, e sim como ele mesmo: “Eu sou Thiago Martins, e faço parte da companhia de Teatro Nós do Morro, moro numa favela que nem essa daqui, na Zona Sul do Rio de Janeiro. Eu batalhei muito para fazer esse filme, porque essa história, ela podia ser a minha”. O estereótipo de uma favela perigosa ecoa e ganha ainda mais ares de verdade com esse depoimento do ator, que afirma que o melodrama trágico exagerado que acabamos de assistir pode ser a realidade de alguém mais, além de personagens de um filme. 

A ficção termina ainda com uma proposta para solucionar os problemas que ele apresenta: “não sei se a cidade tem solução, mas se as pessoas olhassem mais umas pras outras”. Mais uma vez as disfunções políticas da cidade, que perpetuam a opressão e a desigualdade, são colocadas na conta das individualidades, como se os problemas sistêmicos de mais de 3 séculos se resolvessem com mais empatia. 

Falta ao filme de Breno Silveira um pouco menos de alienação e menos exagero no melodrama. Filmes como Casa Grande (Fellipe Barbosa, 2014) e Que Horas Ela Volta? (Anna Muylaert, 2015) tratam de questões que esbarram nos mesmos problemas da desigualdade e da opressão, mas ao fugir de alguns dos clichês que Era Uma Vez insiste em perpetuar, apostam num discurso um pouco mais crítico. 

Falta também ao mercado possibilitar que filmes como esses possam ser produzidos e tenham um alcance próximo ao que Era Uma Vez teve. Pensar isso em 2021 parece impossível, mas como disse antes, não podemos desistir de tentar e de produzir esses filmes, mesmo sem o apoio da estrutura (quase) industrial que nascia no Brasil.

¹ Este trabalho é parte da pesquisa de Iniciação Científica que integra o projeto de Pesquisa “O Cinema e o Audiovisual no Brasil e o Brasil no Cinema e no Audiovisual”, coordenado pela da Profa. Dra.  Sheila Schvarzmando Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Anhembi Morumbi. 

² Estudante de graduação em Cinema e Audiovisual na Universidade Anhembi Morumbi e estudante de bacharel e licenciatura em Filosofia pela Universidade de São Paulo

³ Dados retirados do relatório de filmes realizados com incentivos públicos entre 1995 e 2018 realizado pela Ancine. Disponível em: https://oca.ancine.gov.br/sites/default/files/repositorio/pdf/2408.pdf (último acesso em 14 de abril de 2021)

⁴ Sobre a trilha sonora do filme: “Minha rainha” foi uma sugestão de Marisa Monte ao diretor do filme, Breno Silveira, e ao produtor da trilha sonora, Berna Ceppas. Os versos “Eu sonhei/ que era rei/ e você minha rainha/ Quando acordei verifiquei que você não era minha/ Meu coração quase parou de dor/ Mas consegui te conquistar, meu grande amor”, logo ganharam identificação com a paixão quase proibida dos protagonistas. “Mas queria transformar em algo mágico, quase música da Disney – explica Ceppas que, para isso, incluiu o vibrafone (instrumento de percussão tocado com baquetas) de Guga Stroeter. Não é um instrumento comum ao samba, mas a mistura ficou boa e com sabor de fábula.” – https://extra.globo.com/tv-e-lazer/trilha-de-era-uma-vez-resgata-samba-de-manacea-tem-cancao-de-carlinhos-brown-inedita-de-marisa-monte-545465.html

⁵ Apesar do bronzeamento muito forte que faz parte da caracterização do personagem, o ator se autodeclara branco: https://noticiasdatv.uol.com.br/noticia/celebridades/thiago-martins-e-criticado-ao-falar-sobre-cotas-raciais-eu-sou-contra-e-doi-em-mim-32647

Referências

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