As grandes cidades brasileiras e o cinema da década de 1960

Por Ana Vitória e Samuel Carvalho

Introdução

A década de 1960 é marcada, no cinema, pelo surgimento de obras fílmicas que se comunicam intensamente acerca da relação do indivíduo com a grande cidade. A crescente urbanização e intensificação dos meios massivos provenientes da década anterior é vista e representada no cinema à nível mundial. Há, pois, uma nova maneira de se realizar cinema e que se populariza durante os anos 1960, o fazer cinema longe dos grandes estúdios, utilizando-se da política dos autores, câmeras mais leves e tomadas majoritariamente externas faz que o cinema desloque-se para a problemática dos centros urbanos. Dessa maneira, vê-se tal tendência cinematográfica representada em diversos lugares do mundo, como na França, com a Nouvelle Vague; no Japão, com a Nuberu Bagu; e no Brasil, com o Cinema Novo. No território brasileiro, o fator urbano se comunica sob diferentes formas de acordo com o público a ser representado, há a representação do bon vivant carioca e da incomunicabilidade paulista, mas, sobretudo, existe a presença do vazio que ocorre na medida que tais relações aceleram-se. Partindo de tais pressupostos, no presente artigo serão abordados diferentes autores brasileiros e como eles se comunicam com a modernidade sessentista, levando em consideração preceitos existencialistas 

De tal forma, pode-se relacionar uma diversidade de filmes brasileiros lançados nesse período, com cineastas como Walter Hugo Khouri, com seu olhar íntimo acerca do indivíduo cosmopolita que o aproxima do diretor italiano que se consagra a partir de seu uso da incomunicabilidade: Michelangelo Antonioni; ou como Luís Sérgio Person, que demonstra a modernização e industrialização analisando o papel da classe média na construção dessa sociedade burguesa; além de tais cineastas, há também os que se comunicam com a modernização a partir de uma visão carioca, como o romântico Domingos de Oliveira. Trataremos também de outros notáveis autores brasileiros, como Gerson Tavares, Rogério Sganzerla, Cacá Diegues e Neville D’almeida. 

Nota-se que o movimento cinemanovista, logo em seus primeiros anos, dirigia suas preocupações para representação do ambiente rural, mas conforme o andamento do movimento e em decorrência ao golpe militar de 1964, abre-se uma nova fase do Cinema Novo, agora com temáticas majoritariamente urbanas, especialmente focadas em grandes metrópoles brasileiras. Posteriormente, outras vertentes cinematográficas essencialmente brasileiras surgem e ainda utilizam-se do fator cosmopolita para se pensar o indivíduo, caso do Cinema Marginal (RAMOS, 2005). 

Walter Hugo Khouri: A estética existencialista


Embora não considerado por muitos como um representante do Cinema Novo, Noite Vazia de Walter Hugo Khouri é um filme de 1964 muito marcado pela representação de uma realidade paulista urbana e noturna, que coloca como centro visual e temático a solidão repleta pelos contrastes da iluminação da noite. Khouri, logo em suas primeiras produções, já demonstrava o caráter universalizante que permeia suas obras, isto é, apesar de seus filmes se comunicarem diretamente com uma realidade brasileira dos grandes centros, as angústias que cercam seus personagens estão presentes por todo o mundo e, portanto, em diversas representações cinematográficas. A influência estrangeira em seus filmes da década de 1960 e, especialmente a influência do cinema italiano de Michelangelo Antonioni, faz com que o diretor seja desmerecido por cineastas que compõem o Cinema Novo e também grandes críticos brasileiros. Toda essa visão negativa aos filmes de Walter Hugo Khouri e, consequentemente, Noite Vazia, colocava uma “polarização aparentemente intransponível entre o nacional e o cosmopolita, entre local e universal” (SILVA, 2008, p.331). Colocando como cerne anseios declaradamente universais, em Noite Vazia os protagonistas andam pela metrópole em buscas de emoções, mas acabam vivendo um ciclo de repetição, “Eles estão presos numa espécie de círculo infernal, condenados, como Sísifo, a refazerem as mesmas ações e obterem os mesmos resultados.” (ibidem, 2008, p.332), dando a entender que aquela noite é uma dentro de muitas dentro da vida daquelas pessoas.

Não somente, vê-se em Khouri também a união entre a representação da vida boêmia e do existencialismo, um grande exemplo desse feito seria o filme As Amorosas (1968), aqui, sob a figura masculina de Paulo José, Khouri retrata a classe média, realizando um recorte por entre os jovens adultos, e trata então de questões existenciais que chegam a seus personagens em razão da modernização. Nesse sentido, o personagem de Paulo José seria a personificação não só do brasileiro intelectual, mas sim do homem moderno como um todo, sendo seus anseios e angústias reconhecidos mesmo quando não há reconhecimento regional. Trata-se aqui, logicamente, da camada universalizante dos filmes de Walter Hugo. O cineasta paulista trata do vazio existencial, uma vez que se constata em seus filmes e, especialmente em As Amorosas, a insignificância individual. É exatamente isso que assombra Paulo José na obra, que em uma determinada cena declama “nós somos gente que não pode ser absorvida nem pelo mundo, nem por ninguém”, o personagem diz sentir também que o tempo irá passar, e engoli-lo sem que ele faça nada, enquanto relaciona tal situação com a vida moderna, onde há a dificuldade de se realizar algo verdadeiramente importante, que mude alguém. E é nesse contexto que Khouri constata que as pessoas passam em branco pelo mundo, não são notadas, e tudo isso torna-se ainda mais intensificado com a presença da trilha sonora de Rogério Duprat, que denota ao filme ares de tormento e de aflição. Percebe-se no personagem de Paulo José a presença da incomunicabilidade e, por mais que trate-se aqui de um personagem mulherengo, assim como o Paulo de Todas as Mulheres do Mundo (1966), existe uma camada de diferenciação entre esses dois personagens, a qual está ligada diretamente com o fato de que a São Paulo de Khouri é sempre mais soturna, enquanto o Rio de Janeiro de Domingos de Oliveira é dotado de um encantamento, uma solaridade. 

Domingos de Oliveira e o carioquismo boêmio 

Em 1966, Domingos de Oliveira realizou sua obra mais conhecida, Todas as Mulheres do Mundo, protagonizada por Paulo José e Leila Diniz. Baseando-se em si mesmo e em sua relação com a atriz Leila Diniz, com a qual havia se divorciado recentemente. Domingos refaz sua história com a atriz por meio da obra fílmica, dando à ela um final feliz, diferente do real. Vê-se aqui, como muito foi comentado à época de seu lançamento, uma comédia de qualidade e que refletia a juventude transgressora que almejava a liberdade. Leila Diniz é comparada pelo crítico Luis Carlos Merten à Anna Karina de Godard, e isso diante do amor demonstrado no ecrã do cineasta para com a musa, muito semelhante nos dois casos.  Trata-se de um filme sobre amor, sobre liberdade e, sobretudo, acerca do amor quando se há liberdade. Dessa forma, o filme se relaciona perfeitamente com sua época de lançamento: falando sobre as mudanças sociais ocorridas em relação à liberdade sexual feminina, Domingos constrói uma estética que discute essas mudanças, falando sobre problemas relativamente novos, com os quais a população não estava acostumada. Dessa forma, o jovem precisava descobrir uma outra forma de amor, decorrente da recente liberdade.

O filme fala da relação que se estabelece entre Paulo (Paulo José) e Maria Alice (Leila Diniz), de como a figura masculina se assusta perante a crescente independência feminina e sobre a falta de falsas promessas de amores eternos. E é esse um dos pontos mais contraculturais da obra de Domingos de Oliveira, como o diretor consegue associar a busca por temas cada vez mais discutidos mundialmente, ligados ao feminino e a sexualidade, com a quebra da linguagem clássica, própria das vanguardas sessentistas. Não somente no que diz respeito ao feminino, temos também bem delimitado a figura masculina na presente obra de Domingos. Paulo é um legítimo bon-vivant, um homem carioca de classe média e bem direcionado no campo cultural, além de mulherengo. Nisso, pode-se comparar o personagem de Paulo José a outras figuras do cinema, especialmente do cinema francês, como Jean-Paul Belmondo nos filmes de Jean-Luc Godard. Observa-se no cinema de Domingos esse entendimento acerca da sociedade a qual ele mesmo estava inserido e temos, em Todas as Mulheres do Mundo, um filme que reflete com beleza sobre temas que estavam sendo inseridos recentemente no campo brasileiro, e por isso tanto chocaram e, na mesma via, inspiraram.  

Outro aspecto que muito se destaca no filme de Domingos de Oliveira é a relação que o filme possui com o carioca médio, que leva uma vida boêmia e se vê representado por Paulo José. Tanto que, em seu lançamento comercial, vê-se essa dimensão “carioca” ser muito ressaltada como uma das maiores e mais autênticas características do longa, sendo o filme referenciado pelo escritor e cineasta Maurício Gomes Leite como o filme mais carioca já realizado no Rio de Janeiro. No entanto, para além de sua característica carioca, evidencia-se em Todas as Mulheres do Mundo a graça da universalidade, uma vez que seus assuntos se tornam preocupações a nível geral e, ainda, comunica-se não só com o cinema, mas também com a arte direcionada ao jovem de grande parte do mundo. A modernidade de Domingos é diferente da de Khouri, mas, mesmo assim, existe um aspecto universalizante que ronda os dois autores brasileiros. 

Partindo disso, torna-se nítido um viés um tanto quanto esperançoso que se dá no cenário artístico brasileiro, e isso devido ao sucesso comercial e crítico do filme, que faz com que jovens realizadores brasileiros pensem de forma otimista acerca da realização cinematográfica no país. No entanto, esse clima otimista que se firma entre 1966/1967 se esvai à medida em que o país se aproxima de 1968, não se vê, nos anos que seguem Todas as Mulheres do Mundo, obras que falam com tanta graça e delicadeza acerca das relações humanas, uma vez que não caberia aos anos de chumbo da ditadura militar proporcionar tal cenário. Um exemplo concreto disso seria outra obra de Domingos de Oliveira, Edu, Coração de Ouro (1968), que, partindo de uma estrutura parecida com Todas as Mulheres do Mundo, inclusive repete os mesmos protagonistas, não consegue devida atenção e prestígio. 

São Paulo, Sociedade Anônima (1965) e a metrópole alienadora de Luís Sérgio Person

Durante a década anterior, a Companhia Vera Cruz foi construída de acordo com um sonho industrial paulista. De acordo com Ismail Xavier, a prevalência dos genre films se movimentava entre “o melodrama dos ricos e a comédia popular”, sem ter como objeto “aquele segmento burguês de que os próprios donos da Companhia faziam parte como imigrantes italianos que se viam como ‘capitães de indústria’ e propulsores do progresso” (XAVIER, 2006). E, para o autor, o grande salto cinematográfico, capaz de impor “uma metáfora totalizante da cidade”, viria com o filme de Luís Sérgio Person, focalizando o impulso industrial dos anos de JK” destacando “a relação entre os pequenos industriais locais e as multinacionais do setor automobilístico” (ibidem, 2006). O longa conta a história de Carlos (Walmor Chagas), um homem de classe média que começa a trabalhar em uma indústria de peças automotivas. Preenchido pelo mal estar de seu protagonista, o filme investiga a relação da classe média paulista com o poder industrial. Aliado a seu patrão, Arturo Carrari (Otello Zeloni), Carlos serve como seu cúmplice em sua corrupção burguesa, vendendo peças mal feitas e escondendo trabalhadores da fiscalização do trabalho dentro do banheiro. Em sua vida de classe média, Carlos está tanto preso às próprias relações de trabalho quanto à sua própria vida familiar. As dinâmicas de explorador e explorado o colocam como cúmplice na exploração da classe trabalhadora pela burguesia industrial.


A grande cidade em São Paulo S/A é colocada como uma personagem causadora de todos os conflitos, Carlos não deseja apenas recomeçar, mas recomeçar em outra cidade, uma vez que São Paulo é a causa de sua angústia. As relações sociais demonstradas pela trama são extrapoladas para toda a vida paulistana. De acordo com Carolina Gomes Leme, o filme apresenta uma “perspectiva agudamente crítica e irônica” ao ideário pequeno-burguês, especialmente através de uma fala em off (LEME, s.d.), na qual Carlos dialoga imaginariamente com Luciana: “(…) Tudo o que você deseja na vida é que eu seja como ele, não é mesmo? Arturo é bom; Arturo é rico; massacra seus operários; rouba quanto pode; tem grandes e desonestas ambições.”. Dessa forma, o filme coloca, através de sua forma repleta pela verticalização dos edifícios e pela intrusão da geografia urbana aos espaços privados, a generalização dessa ideologia pequena burguesa para o resto da cidade. Um exemplo dessa intrusão está na cena da crise final, em que Ismail Xavier descreve “Observamos a cena da ruptura do casal com a câmera localizada fora do apartamento, mal ouvindo o que se fala. A visão dos gestos se justapõe à dos prédios refletida no vidro que nos separa da cena.” (XAVIER, 2006). O filme de Person aborda de forma direta a vinculação do indivíduo à grande cidade, reduzindo-o à automação tão presente nos processos de industrialização. A alienação transpassa as relações de trabalho e chega na esfera social, nesse ponto é notório a similitude entre São Paulo S/A e Deserto Vermelho (1964), de Michelangelo Antonioni, uma vez que em ambas as obras o aspecto industrial age como força motriz para a tragicidade humana.

Se Walter Hugo Khouri em seu cinema paulista demonstra a opressão metropolitana a partir da dilatação temporal, Person subverte isso, fazendo com que São Paulo S/A seja a demonstração da caoticidade que compõe os grandes ambientes urbanos. Não obstante, Jean-Claude Bernadet, em seu livro Brasil em tempo de cinema, reserva parte de seu texto sobre São Paulo S/A para abordar o dinamismo da capital paulista refletido na montagem fílmica. A câmera não para, assim como São Paulo não para. Só resta àqueles que lá vivem, como Carlos, padecerem diante da metrópole. Os pequenos burgueses presentes no filme de Person tornam-se, portanto, conscientes da própria ignorância e inutilidade, a cidade se consagra, então, como o personagem principal da obra, direcionando todos aqueles que lá vivem para a tragédia infindável, o destino final do homem metropolitano. 

Jardim de Guerra (1968) e a distopia sessentista

Muito se fala acerca da dimensão opressora que a cidade exerce no indivíduo urbano, como é o caso de São Paulo, Sociedade Anônima e, também, dos filmes de Walter Hugo Khouri. No entanto, durante os anos de chumbo da ditadura militar, observa-se no cinema de Neville D’Almeida uma outra forma de relacionar determinado aspecto urbano com a violência e a opressão, isto é, o diretor utiliza-se, em seu primeiro longa-metragem Jardim de Guerra (1968), da cidade como ambiente hostil e próprio para a violência advinda de figuras autoritárias, denotando, também, tal ambiente urbano como palco para manifestações artísticas e de contestações político-sociais. Como resultado da trama altamente crítica ao momento vivido pelo brasileiro, o filme é duramente censurado, tendo sua versão integral digitalizada e exibida no meio virtual apenas no ano de 2021, com a mostra Neville 80 promovida pela Cinemateca do MAM Rio (Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro).

Na obra, percebe-se seu estilo revolucionário logo em seu aspecto metalinguístico, observado em uma das personagens centrais, uma aspirante à cineasta interpretada pela atriz Maria do Rosário. Vê-se aqui um fato transgressor posto em tela por Neville, já que a realização cinematográfica estava inteiramente dominada por homens. A personagem, com uma câmera 16mm, filma o urbano ao mesmo tempo que está inserida nessa camada urbana, os ambientes citadinos são confundidos, então, entre ficção e realidade, os transeuntes são roubados pela câmera (pela câmera de Dib Lutfi e de Maria). Outro aspecto urbano que muito se faz presente é a representação feita pelo diretor das diferentes camadas sociais, existe Edson, que pertence ao proletariado e, de um lado oposto, uma classe média alta que é demonstrada a partir de suas incongruências e irregularidades.

Não somente, Neville D’Almeida irá pôr no ecrã o ambiente urbano a partir de sua relação com a participação popular. Há, em diversas cenas, a menção à luta armada em outros países, como a Argélia, tal fato é também demonstrado em tela a partir do recurso da colagem, na qual o diretor justapõe imagens de manifestações ao longo do mundo e traça um paralelo entre a arte contracultural e os protestos que surgem fortificados por ela.  Nessa preferência pela utilização da expressão caótica através da linguagem, nota-se uma semelhança com a Nouvelle Vague

Além de tais fatores, observa-se em Jardim de Guerra a transgressão que se dá via corpo humano, que fica evidente tanto nas tomadas que envolvem o ato sexual, quanto a própria violência urbana exercida por autoridades à um de seus personagens principais, Edson (Joel Barcellos). O longa, diante de tantas leituras, possui também sua dimensão distópica. Inserida no ano de 1968, a obra de Neville parece tratar tanto de uma realidade presente e palpável, quanto de um futuro distante e distópico, uma vez que parte da classe artística tentava pensar de maneira otimista acerca do ano de 1968. Zuenir Ventura, em seu livro 1968: O Ano Que Não Terminou, disserta sobre a passagem do ano de 1967 para 1968, o escritor diz: “Algo tinha se movido em 67, ainda que parecesse que se movera para continuar igual. De qualquer maneira, a ditadura havia trocado de ditador…. com algum otimismo, encontravam-se boas razões para se esperar um feliz 1968. A efervescência criativa criativa de 67 não era por um mau sinal;”. A partir da fala do escritor, percebe-se como a obra de Neville, em dado momento, prevê, a partir de sua camada distópica, a violência exacerbada que viria a seguir. Violência essa que acontece de forma urbana, direcionada às massas que se manifestavam. 

O aspecto etnográfico na obra de Cacá Diegues, A Grande Cidade (1966)

Logo de início, em A Grande Cidade, tomadas aéreas tomam conta da tela, juntamente com uma série de escritos que valorizam a grandeza da capital carioca e, logo após essa exaltação, um dos protagonistas, Calunga (Antônio Pitanga), começa a discursar para o espectador, realizando uma série de perguntas a transeuntes na rua: a que horas você acordou? Quantas horas trabalha? Quantas horas anda por dia? Que horas você vai dormir? Você vai ao cinema? O resultado dessa série de questionamentos etnográficos: sobram, para o brasileiro da década de 1960, 4 horas do dia, horas essas que ele passará descansando ou esperando algo. Calunga, então, direciona essas mesmas perguntas ao espectador do filme e é logo nesse início que se percebe uma das preocupações de A Grande Cidade: o ambiente urbano. Diegues acompanha a vida do imigrante nordestino e nortista, sempre evidenciando a violência urbana que, já direcionada ao carioca, é intensificada quando chega ao imigrante. O Rio de Janeiro para  Cacá Diegues é visto como ambiente intensificador de contrastes sociais – visão que começa a ser posta no cinema com Nelson Pereira dos Santos na década de 1950, com Rio, 40 Graus, sendo tal representação uma quebra do Rio glamourizado de outrora (PINTO, 2010). 

Nesse ponto, diversos paralelos podem ser tratados acerca da similitudes entre A Grande Cidade e Rio, 40 Graus, dentre elas a forma como o filme começa, a cidade como maior protagonista é apresentada ao espectador através de um plano aéreo.  Na cidade, agora em uma visão mais aproximada de sua zona urbana, ambos os filmes têm como objetivo a representação de personagens negros e as violências contra eles cometidas. Além de tais semelhanças, existe uma primordial: a apresentação da modernidade e os problemas que surgem durante tal processo. Aqui, Cacá Diegues realiza um encontro entre as fases do Cinema Novo, isto é, sua primeira fase de representação do sertão e sua segunda fase de representação do espaço urbano. Na presente obra, segundo Carlos Eduardo Pinto, o sertão e a cidade se encontram, o que acaba por ressaltar tanto a miserabilidade do sertão brasileiro, quanto dos grandes centros urbanos. No longa de Diegues, Luzia (Anecy Rocha) sai de Alagoas após a morte de sua mãe em busca de seu noivo, Jasão (Leonardo Villar), o sonho de um ambiente melhor é logo desconstruído e as diferenças sociais são cada vez mais explicitadas pela trama. São os diversos planos gerais captados na rua, provavelmente sem aviso prévio, que contextualizam os personagens da obra de 1966, trata-se da imagem da classe média como plano de fundo no longa de Cacá Diegues, tais pessoas sempre ocupam algum espaço do plano fílmico para evidenciar os contrastes sociais do filme. 

Existe, portanto, em A Grande Cidade, algo que o determina como uma das maiores obras cinemanovistas a tratar do espaço urbanizado e de seus problemas, e isso se deve ao fato de, conscientemente, assumir seu caráter de estudo social mediante as grandes mudanças estruturais. O filme utiliza-se da quebra da diegese de maneira não lúdica, mas consciente e com o intuito de aproximar o espectador que frequentava o cinema de uma conscientização acerca dos problemas sociais. Trata-se aqui não apenas do choque pelo choque, de se utilizar da quebra da linguagem a partir de artifícios lúdicos, mas sim como comunicação direta que choca por conta da veracidade de seu conteúdo.

O Bandido da Luz Vermelha e a antropofagia na construção do urbano

Antes de realizar sua obra mais conhecida, O Bandido da Luz Vermelha (1968), Rogério Sganzerla dirigiu o curta-metragem Documentário que já demonstrava, através de uma montagem que valorizava as capas de revistas e jornais, uma ideia da dominação da cultura midiática na vida social urbana. Em O Bandido da Luz Vermelha essa noção é extrapolada pelo próprio fato de o filme ser narrado por vozes em off como se tratasse de um programa de rádio sensacionalista. A grande cidade para Sganzerla é dominada pela mídia, exemplificando a futilidade desses meios. A antropofagia aqui está tanto nessa midiatização quanto na própria paródia dos gêneros estadunidenses, o noir é desconstruído através do jogo de gato e rato entre polícia e bandido que é transformada em piada terceiro mundista, em que a estética marginal satiriza a própria condição brasileira. Sendo o principal representante do que veio a ser chamado de Cinema Marginal, o filme contrapõe o Cinema Novo e exala o movimento tropicalista em toda sua estética carnavalesca, na qual o antropofagismo é levado para essa “estética da avacalhação” onde tudo se torna sátira. 

Para Ismail Xavier,  o filme de Sganzerla “trabalha os processos de esmagamento pela engrenagem urbana, mas seu foco é a mídia, a construção de imagem, a crise de um sujeito cuja identidade se faz a partir do ‘discurso dos outros’”. Dessa forma, ao percorrer diversos lugares de São Paulo, o bandido adentra diversos apartamentos, tudo torna-se – dentro na estética anárquica, em que prevalece a influência midiática sobre o sujeito – lugares boçais preenchidos pela iconoclastia do anti-herói, sem importância dentro de sua vida niilista. Enquanto nos filmes do Cinema Novo a grande cidade foi tratada como um objeto construtor das mazelas sociais, aqui, por mais que isso seja também verdade, a cidade é desprezível dentro dessa misantropia decorrente aos meios de comunicação. A antropofagia do filme engole o rádio, as revistas, o cinema e a televisão como construtores da identidade do homem urbano moderno.

Conclusão 

Nesse sentido, percebe-se nos anos de 1960, atrelado ao próprio cinema vanguardista, uma representação da realidade metropolitana devido ao próprio crescimento ocorrido nos anos anteriores. Os filmes selecionados refletem o período e esse crescimento, sendo crítico a forma que se deu essa modernização, as mudanças sociais ocorridas tanto em escala global quanto na própria realidade nacional evidenciam os problemas abordados em tais obras. Seja em relação a influência de mídias como a  tv e o rádio no caso de O Bandido da Luz Vermelha, quanto o crescimento da liberdade sexual feminina em Todas as Mulheres do Mundo, assim como os próprios problemas derivados da sociedade de classes e seus papéis na estrutura social como em São Paulo S/A, ou até mesmo a noção da própria insignificância diante da vastidão da grande cidade nos filmes de Walter Hugo Khouri, quando a constatação da própria pequenez resulta na incomunicabilidade pessoal. Há, ainda, em todas as obras fílmicas já mencionadas, uma camada crítica direcionada à modernização desenfreada brasileira que resulta na manutenção da sociedade de classes. Nesse sentido, A Grande Cidade de Cacá Diegues toma frente, uma vez que traz conscientemente para o espectador a dimensão destrutiva intensificada pelo rápido crescimento das cidades. 

Destarte, evidencia-se, tanto no cinema brasileiro como no cinema de vanguarda a nível global, filmes que trazem temas que em comum critiquem a rápida industrialização e modernização, e, em consequência, a marginalização que tal feito promove. Assim, vê-se que a década de 1960 é marcada por grandes transformações políticas que, aliadas a uma nova forma de produção, como mencionado, dessa vez menos industrial e mais móvel, se apropria do ambiente urbano para tecer suas reivindicações. Vê-se no cinema sessentista de vanguarda o fato deste possuir papel direto e indireto no meio político-social, assim como refletir a própria sociedade através da metalinguagem fílmica, como no filme de Neville D’Almeida, Jardim de Guerra. O cinema brasileiro da década de 1960 discutiu, então, esse crescimento através de um cinema plural que foi desde o existencialismo de Walter Hugo Khouri até a antropofagia anárquica e misantropa de O Bandido da Luz Vermelha. A realidade nacional molda o cinema através da diferença do tempo histórico dentro da própria década, refletindo a situação político-social assim como as próprias mudanças ocorridas dentro da linguagem cinematográfica ao longo do tempo.

XAVIER, I. N. São Paulo no Cinema: da coesão da cidade-máquina à corrosão da cidade-arquipélago. Sinopse: Revista de Cinema, São Paulo, v. 11, p. 18-25, 2006.

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BERNADET, Jean-Claude. Brasil em tempo de cinema. 1 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. 224 p. 

TODAS as mulheres do mundo. Direção de Domingos de Oliveira. Brasil: Saga Filmes, 1966. (90 min), P&B.

EDU, coração de ouro. Direção de Domingos de Oliveira. Brasil: 1968. (81 min), P&B.

NOITE vazia. Direção de Walter Hugo Khouri. Brasil: Kamera Filmes, 1964. (93 min), P&B.

AMOROSAS, as. Direção de Walter Hugo Khouri. Brasil: Kamera Filmes, 1968. (100 min), P&B. 

GRANDE cidade, a. Direção de Rogério Sganzerla. Brasil: Mapa Filmes, 1966. (83 min), P&B. 

RIO, 40 graus. Direção de Nelson Pereira dos Santos. Brasil: Equipe Moacyr Fenelon, 1955. (100 min), P&B. 

BANDIDO da luz vermelha, o. Direção de Rogério Sganzerla. Brasil: Urano Filmes, 1968. (92 min), P&B.

PINTO , Carlos Eduardo. Uma grande cidade a 40 graus: o Cinema Novo e a representação crítica da modernidade urbana carioca (1955-1965). Associação nacional de história , Rio de Janeiro, 23 jul. 2010. Disponível em: http://www.encontro2010.rj.anpuh.org/resources/anais/8/1277207792_ARQUIVO_umagrandecidadea40graus.pdf. Acesso em: 8 out. 2021. 

DESERTO vermelho. Direção de Michelangelo Antonioni. Itália: Film Duemila, 1964. (117 min), color.

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