A Dicotomia da existência: Limite (1931), de Mário Peixoto

Por Vitória Rocha

Dirigido por Mário Peixoto, Limite (1931) emana e constrói uma fascinação, que progride a cada plano que passa diante dos nossos olhos. A combinação de diversas características técnicas do cinema experimental e a manipulação de recursos narrativos ambíguos, são os sustentáculos da sólida constituição de um dos pioneiros em nosso cinema brasileiro, afirmando-o como uma das mais notáveis e preciosas obras que temos. O jovem Mário, que em 1931 tinha apenas 21 anos, formado na Europa, estruturou com maestria e maturidade cinematográfica as concepções das duas dimensões, cronológica e psicológica, assim como o recorrente revezamento entre as concepções de contemplação e ação e vida e morte. É entre estas e outras dicotomias que Limite (1931) encontra a sua potência poética e o primor da linguagem fílmica em toda sua exploração do cinema de arte. 

É de extrema importância ressaltar, que os enfrentamentos de ideais não se mantiveram somente à frente das câmeras, mas também, e de forma muito específica, nos bastidores. Ainda que o cinema fosse um patrimônio artístico muito recente na primeira metade do século 20, já existia uma estrutura clássica que se desenvolvia com potência, apoiada nas configurações das majors norte-americanas, em todas as suas formas de supremacia. Diante desta crescente uniformidade que também atingia os estúdios brasileiros, sobretudo pela ausência de preceitos de produção, exibição e ideais, o ímpeto de uma expressividade cinematográfica se apresentou como uma proposta atípica, de traços vanguardistas europeus, que influenciou não apenas realizadores como também o Cinema Novo na década de 60, além de atrair atenção internacional e manteve-se fora do circuito de exibição comercial. O trabalho de Mário Peixoto se resumiu a Limite (1931), esta intrigante produção experimental do cinema brasileiro. 

A NARRATIVA

Limite (1931), aborda duas dimensões de concatenação da diegese, uma dimensão cronológica e outra psicológica. Nos primeiros minutos do longa, vemos duas mulheres e um homem dentro de um barco perdido no mar. O que o espectador espera é uma resposta que leve ao motivo de os personagens estarem em tal situação. Assim que a primeira sequência na embarcação chega ao fim, inicia uma rememoração, por parte da mulher n°1, que começa a apresentar suas lembranças. Isto posto, entendemos que a lógica de expectativa estará apoiada nos relatos das memórias de cada uma das personagens. Entretanto, o inesperado é que as causas de eles estarem na embarcação, será irrelevante diante da rica reflexão que teremos sobre vida x morte posteriormente. 

A abertura filosófica e poética que esta dicotomia oferece, é muito presente durante toda a duração, e por isso, acredito que Limite (1931) seja sobre os limiares da morte. É interessante pensar como um dos cinco rios de Hades, na mitologia grega, chamado de Lethe, tinha a função de fazer as almas esquecerem da vida que viveram para que pudessem morrer e reencarnar. Desde o início, a obra de Peixoto parece seguir esta mesma lógica de esquecimento da vida. Diante da morte iminente, as lembranças da vida vão passando pela mente e, quanto mais perto está o fim, mais escassas serão as memórias da vida humana. Por esta razão, ao final do filme, as águas “da morte” começam a ficar mais caudalosas e as lembranças de uma vida cotidiana, passam a ser lembranças da vida enquanto natureza existencial e contemplativa. Com este argumento, surge mais uma dicotomia que Mário buscou exprimir em seu trabalho: ação x contemplação – sobre o ser e sobre viver, respectivamente. 

Depois de nomeadas as principais impressões, se torna possível a análise de diversos motivos que aparecem durante toda a duração e a inserção destes dentro de uma lógica de significação. O plano que mostra o rosto da mulher nº 1 junto com mãos algemadas, no início do filme, produz uma certa premonição, prevendo uma relação entre prisão e liberdade. Além do que já foi dito no parágrafo anterior, outro elemento guia a nossa absorção destes subtextos: os cabelos bagunçados pelo vento que estão presentes em todo o filme – inclusive no cemitério com um contraponto de um cabelo arrumado. Por mais simples que possa parecer essa característica, a bagunça no topo da cabeça não parece ser somente uma condição externa, muito pelo contrário demonstra a brisa do fim se aproximando e confundindo a consciência. Similarmente, a filmagem dos pés das pessoas, possui duas situações muito específicas: os pés dos personagens caminhando na praia e os pés de pessoas que não vemos o rosto, caminhando de um lado para o outro – nos últimos 20 minutos de filme. No primeiro, se vê um casal caminhando na areia para, em seguida, com uma dissolução de planos, não estarem mais presentes os pés, mas sim as pegadas. Na segunda situação, percebemos que aquela movimentação é motivada pelos hábitos e compromissos de vida, ao contrário de estar caminhando na praia. Entretanto, ambas exprimem que os passos de alguém demonstram sua presença terrena na vida. Os caminhos que se trilham durante a vida, são os mesmos que serão lembrados durante a ida até a morte. A primeira situação em que só restam as pegadas rumo ao horizonte, e os pés não mais estão lá, exemplificam com excelência a dicotomia morte x vida. 

Diante de toda esta conjuntura, percebe-se que as dicotomias sempre estiveram apontando para um só destino. Esta afirmação em tudo se relaciona com a vida pessoal de cada um dos personagens. Analisando suas memórias até o momento mais próximo que eles estiveram a ponto de entrar no barco, percebemos que a vida de cada um sempre esteve rodeada por uma aura de perecimento. A relação da mulher nº 1 com a morte, está inscrita tanto na fuga da prisão (metáfora para fuga da vida), quanto com seu gesto durante a manipulação de uma tesoura. A história da mulher nº 2, é introduzida com os últimos suspiros de um peixe. Pouco depois de chegar da praia, em sua casa, uma melancolia de frustração atinge a personagem de modo que ela tem a atitude de ir até o topo de um morro e lá de cima olhar para as águas no penhasco –  como um olhar de receio diante do fenecimento que seria, ao mesmo tempo, oportuno para ela. Por último, o homem que embala a fuga de um prisioneiro com a sua música, após abrir mão da sorte da ferradura, parece tocar a sinfonia de seu próprio funeral. Em perfeita concordância com esta análise, a mulher nº 1 é a primeira a chegar no píer na praia e é quem está na ponta do barco, ela conhece o caminho da liberdade que a morte oferece. A mulher nº 2, por outro lado, não vai ao píer, e é última a perecer nas águas, mas sem qualquer indício de que ela não aceitaria seu destino – além de ter sido a única que adormeceu. O homem é o segundo a chegar no píer, mas é o primeiro a ser consumido pelo mar e por causa de sua própria vontade, ele se jogou. 

A TÉCNICA

Todos estes choques que Mário Peixoto desejou criar, ganham o impulso metafísico ideal a partir das técnicas cinematográficas de um cinema experimental. Como já dito anteriormente, o jogo entre os conceitos de contemplação e ação são trabalhados durante toda a duração. Desde o momento em que aparece a mulher nº 1 dentro do barco à deriva em contraste com o mar, apreende-se que existe a diferença entre a contemplação apontada pela magnitude das águas sem fim, em contrapartida com a presença humana que preenche o barco, duas mulheres e um homem. Como consequência, cria-se uma relação gráfica entre a visão subjetiva “barco x mar” , com a vista do horizonte “mar x céu”, mais uma vez dividindo a ação para os primeiros, e a contemplação para os segundos. Esta relação gráfica, por sua vez, não possui uma estética de harmonia tradicional, fazendo com que possa haver a impressão de que o quadro e os elementos fora de quadro são erros técnicos. Isto se deve pela profundidade de campo manipulada de forma a privilegiar uma figura, sendo potencializada pela inerte posição das personagens, enfatizando a contemplação da personagem dentro do quadro – em contraposição a ação que pode vir de fora do quadro e não ser apresentada em sua totalidade visual. Todas as ações são, na verdade, deduções visuais e humanamente materiais de uma contemplação subjetiva.

A partir do momento em que a dimensão psicológica é introduzida, a composição do quadro continua a priorizar os movimentos e feições apáticas dos personagens junto a contemplação dos espaços – esta por sua vez ganhando maior evidência na segunda metade do filme. Entretanto, novas configurações de cortes começam a fragmentar mais os planos, – e, consequentemente as pessoas e espaços – os movimentos de câmera podem estar fora dos eixos de continuidade espacial, ocorrem algumas “vertigens visuais” e frames são repetidos como motivos gráficos. Vale frisar que toda esta estrutura também se vale de uma supressão da expressividade melodramática clássica. As reações diante de situações que abalam o emocional do ser humano não são exprimidas com um caráter sensacionalista e nem mesmo geram uma identificação por parte do espectador. Ao contrário, tudo que é psicológico, dramático, filosófico ou poético não é apresentado de uma maneira óbvia, é necessário que haja um desejo voluntário de despertar os sentidos emocionais e mentais para apreender a narrativa – o que se apresenta como um verdadeiro desafio para o ser humano que prioriza a ação em detrimento da contemplação. Tradicionalmente, a montagem “invisível” se concretiza na cabeça do espectador, dando a fluidez e a naturalidade que transmitem o conforto de uma narrativa real, sem que haja um esforço de fato. Contrariamente, Limite (1931), em primeiro lugar, não se utiliza da linearidade e encadeamento “lógico” e, consequentemente, em segundo lugar, não atribui nenhuma ilusão de realidade – não é sobre a morte x vida na realidade humana e cotidiana, mas sim sobre morte x vida em seu sentido existencial. 

CONCLUSÃO

Limite (1931) trata das dicotomias da existência, baseadas em uma presença da morte na vivência humana, que vai se tornando cada vez menos latente e amedrontadora –  diante das frustrações e desesperos da vida – para adquirir uma feição de libertação e conveniência. É um verdadeiro limite que determina até onde se pode querer ou precisar viver, mostrando que viver é um processo de conhecer a morte e morrer, é compreender a vida como ela mesma, enquanto um estado de existência superestimado. Mário Peixoto soube exatamente como provocar o anseio de uma assimilação dos ideais, assim como ativou a participação do espectador perante a experiência. Sobretudo e, concluindo, a produção de uma obra tão significativa encontrou nas técnicas cinematográficas mais incomuns o seu ponto alto de revolução. Estas mesmas técnicas foram as bases dos cinemas de vanguarda ao redor do mundo, combatendo o tradicionalismo na maneira de filmar. Mário se municiou das mesmas para abalar a tradição brasileira na primeira metade do século 20, assim como o Cinema Novo na década 60, as lutas de classes, os manifestos, entre outras possibilidades de se discutir o que está mais para “elite”, e o que está mais para “formas terceiro mundistas” de se revolucionar a linguagem e potencializar as concepções humanas através de uma expressividade única e experimental. 

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