CONFISSÕES: O DIÁLOGO COM O PÚBLICO COMO RECURSO DO ANTI HERÓI FRANK UNDERWOOD EM HOUSE OF CARDS, DA NETFLIX.

Suelen Cristina Nino Fernandes1

Resumo: O artigo propõe analisar o uso de recurso do diálogo com o espectador, também conhecido como a quebra da quarta parede pela personagem anti-heroica Frank Underwood, da série House of Cards (2013-2018), da Netflix, e de que maneira o recurso foi utilizado para cativar a cumplicidade com o espectador das ações praticadas pela personagem na trama, ainda que estas sejam moralmente reprováveis em algum aspecto ou em seu todo. A quebra da quarta parede traz a presença do público para dentro da narrativa e permitem que este conheça aspectos da personalidade do anti-herói que não são revelados aos demais personagens ou que só são revelados em momentos futuros da narrativa e na série House of Cards, a personagem de Underwood estabelece o diálogo com o espectador como sua marca característica. Para a composição do artigo, utilizo dos textos Campos (2007), Vogler (2006), Brombent (2001), dentre outros, para individualizar a personagem do anti-herói e no que concerne as características das narrativas seriadas, recorro às notas de Esquenazi (2010) e Araújo (2015), dentre outros, para entender a incidência e utilização destas personagens nas narrativas contemporâneas e, por fim, analisar a personagem Frank Underwood e o uso da quebra da quarta parede no diálogo com o espectador como recurso para conquistar sua simpatia e, eventualmente, seu perdão.

Palavras-chave: discurso, anti-herói, Frank Underwood, House of Cards.

  1. INTRODUÇÃO

Em uma tradição de produção clássica, heróis e vilões têm suas funções bastante claras porque, grosso modo, ao primeiro são relegadas as qualidades e virtudes, enquanto ao segundo os defeitos, as falhas de caráter, remetendo-nos à batalha maniqueísta do bem contra o mal, porque, basicamente, é como esses dois tipos eram retratados na trama. Com a saturação visual destes dois tipos de personagens, esta mesma tradição clássica passou a introduzir a figura do anti-herói em suas narrativas, cuja terminologia, em um primeiro momento, pode sugerir ser aquele que se opõe ao herói, porém se revela uma combinação de características de ambos os tipos.

Portanto, neste sentido, o anti-herói deve ser entendido como um tipo especial de herói contemporâneo, alguém que está à margem, que apresenta defeitos, todavia, recebe certa complacência do público, em razão deste mau comportamento ser colocado em um contexto que, em certa perspectiva, justifica as ações da personagem anti-heroica, ainda que por vezes reprovável ou incompatível com os padrões do mesmo público.

A incidência deste tipo de personagem aparece com mais frequência no protagonismo das séries americanas, a partir do início do século XXI, e em muitos casos, é possível notar o uso do diálogo direto ou indireto com o público: quebra da quarta parede, como acontece em House of Cards, do voice over como em Mr. Robot (2015-2019) e pela incidência de personagens na narrativa que funcionam como ouvintes/espectadores, como a terapeuta de Tony Soprano em Os sopranos (1999-2007).

Dentro das possibilidades do discurso como recurso da personagem do anti-herói em narrativas seriadas, cabe analisar como a quebra da quarta parede pela personagem Frank Underwood (Kevin Spacey) é utilizada para se aproximar do espectador, de maneira que este consiga justificar, ou no mínimo, compreender seus atos na trama, pelo fato de que esta aproximação torna o espectador cúmplice das ações na trama. Para isso, começamos com a individualização do conceito de anti-herói.

  1. O ANTI-HERÓI NO PROTAGONISMO DE NARRATIVAS SERIADAS

O artigo se debruça sobre a personagem principal, “aquela que se converte na causa, na restrição e no objeto de identificação do público com a história narrada” (Bordwell, 1996, p. 157), isto é, diz respeito à pessoa que age, sobre quem os fatos da história recaem, que se torna referência para a participação de um antagonista ou quem delimita a função da personagem secundária, por exemplo. Logo, quanto mais complexa for sua composição, melhor será a percepção e empatia aos olhos do público, e este, por seu turno, poderá reagir repudiando, aprovando ou, às vezes, até justificando suas atitudes.

O anti-herói é um modelo arquétipo primário que pode ser reproduzido ou confrontado de acordo com a função que desempenha em um contexto narrativo. Eles “são preexistentes a qualquer cultura e se ligam ao mundo dos instintos, mais até do que ao simbólico que lhes dá materialidade” (Campos, 2007, p. 143). Como afirma Moisés:

O anti-herói não se define como a personagem que carrega defeitos ou taras, ou comete delitos e crimes, mas a que possui a debilidade ou indiferenciação do caráter, a ponto de assemelhar-se a toda a gente. E que apenas ostenta relevo porque selecionada pelo escritor da massa humana onde se inscreve. Na verdade, o herói identifica-se por atos de grandeza, no bem ou no mal, enquanto o anti-herói não alcança emprestar altitude ao seu comportamento, seja positivo, seja negativo: ao passo que o herói eleva e amplifica as ações que pratica, o anti-herói as minimiza ou rebaixa. Em suma, comporta-se como o reverso do herói (Moisés, 2004, p. 29).

De acordo com Arantes (2008) é na modernidade que se torna evidente o interesse pelo protagonismo de personagens que subvertem os valores heroicos. Estabelecer uma data precisa como marco para sua incidência é perigoso e temerário, mas Baranita (2015) aponta o cinema noir da década de 1940 como popularização deste arquétipo nos detetives/investigadores das histórias que apresentavam traços negativos em sua personalidade, como a cobiça (da femme fatale) ou dependência de bebidas (detetives).

Esse herói moderno é problemático, solitário, fisicamente distante dos padrões, e mais próximo da realidade que conhecemos, principalmente por estar afastado das figuras divinas dos heróis. Por isso, embasada nestes teóricos, é que posso afirmar que a tradução literal do termo como sendo aquele que é contra o herói não facilita sua compreensão e pode induzir o leitor a pensar no antagonista, quando, na verdade, deve ser entendido como alguém que se distancia do herói clássico, mas ainda sim um herói: um herói de sua própria narrativa. O fato de nos solidarizarmos com sua postura errante e o seu código moral questionável diz muito sobre a sociedade em que estamos inseridos. James Bonet diz que:

O objetivo do anti-herói é tomar posse de uma entidade e redirecioná-la em direção a objetivos que satisfaçam seus próprios desejos e necessidades, que é acumular, controlar e desfrutar de tudo o que precisa para satisfazer seus desejos insaciáveis por objetos dos sentidos, segurança, riqueza e território. Em termos modernos, estamos falando de dinheiro, sexo e poder. Psicologicamente, estes são os apetites e desejos do eu inferior tomando posse do eu consciente, e redirecionando seus objetivos (Bonnet, 2012).

Para Brombert, a principal marca do anti-herói é de ser um questionador dos pressupostos socialmente estabelecidos. Seu espírito está repleto das inquietudes humanas, de ter de escolher entre desejos individuais e coletivos, questionar figuras de autoridade, preferindo novas configurações ou mesmo sua subversão (Bombert, 2001), o que faz com que seja repudiado pelas outras personagens que compõem a trama, mas é bem recebido pelos espectadores, que conseguem perceber a complexidade e profundidade dramáticas que elas agregam à narrativa.

Outra diferença bastante apontada em relação ao padrão clássico diz respeito à constituição física. Os heróis eram descritos – e interpretados – por figuras de boa aparência, ao passo que anti-heróis parecem dispensar tais atributos. Frank é um político de meia-idade, fora do peso, com atitudes rudes pela criação sem berço, diferente de sua esposa Claire (Robin Wright), oriunda de uma rica família texana.

Para Vogler (2006), o anti-herói pode apresentar duas origens, podendo ser bastante semelhantes aos heróis tradicionais, com um acentuado cinismo ou uma cicatriz que salte aos olhos do espectador. Ou podem ser trágicos, incapazes de despertar admiração e que podemos até julgar pelas ações deploráveis, mas este caso seria o mais próximo da personagem que vive em constante conflito com seus demônios íntimos, cujos defeitos ele não consegue vencer.

Pela complexidade em que está envolvo, é possível compreender sua crescente utilização nas séries televisivas a partir do final da década de 1990, historicamente inserido na terceira fase da televisão estadunidense, em que se verificou a popularização dos serviços de TV a cabo e streaming, expressivo investimento na qualidade da produção, apresentando protagonistas que fugiam ao padrão estabelecido e falando sobre temas nada convencionais nas séries produzidas até então, como o caso de Oz (1997 a 2003), produção da HBO que mostrava o cotidiano de uma prisão. Este tipo de produção se voltava mais para o mercado de nichos e oferecia conteúdo diferente, mais visceral, com abordagens diferentes dos programas da TV aberta, mais preocupada em alcançar o maior número possível de espectadores. A produção seriada americana que traz este tipo de protagonismo costuma jogar com as emoções do espectador entre momentos de aproximação e repulsa, apresentando personagens moralmente reprováveis postos em situações que tentam justificar suas ações na trama. Para Comparato:

Normalmente existe uma série de pontos de identificação, que só se percebem quando intervém a emoção: no momento em que nos damos conta de que o problema que a personagem enfrenta também poderia ser o nosso. Isso faz com que o espectador diga: “se eu fosse ele, não faria aquilo”. Todo conflito possui, por mais absurdas que pareçam as premissas, um ponto em comum – de identificação – com a plateia (COMPARATO, 2000, p. 150).

Dois anos depois, a HBO lançava a série usualmente apontada como o primeiro protagonismo de um anti-herói na narrativa seriada. Indicada como a melhor série de todos os tempos pela revista Rolling Stones2, em 2016, The Sopranos (1999 a 2007) apresentou ao mundo Tony Soprano (James Gandolfini), um chefe de família que também liderava a máfia de Nova York, com crises de ansiedade e com problemas para administrar seus dois mundos. Desde que estreou na HBO, a série se tornou grande sucesso e conquistou inúmeros prêmios ao longo das seis temporadas que ficou no ar.

Desde então, personagens complexos passaram a povoar não apenas as narrativas dramáticas e diversas personagens com traços anti-heroicos foram surgindo no protagonismo das séries, modificando inclusive sua forma de narrativa, misturando o procedural com o serializado e cultivando na audiência um anseio maior pelo próximo episódio, pela próxima temporada, fazendo com que as séries caíssem de vez no gosto popular. A esta nova estrutura, Mittell (2015) denomina de TV complexa.

Partindo da afirmativa de Comparato (2000) a respeito da identificação, temos como hipótese principal que a identificação do personagem anti-herói causa com o espectador, ainda que nem todos os seus atos sejam dignos de aprovação, é feito por meio do discurso com a audiência, manifestados por meio de diálogo direto com o espectador ou quando se vale de outros recursos e/ou personagens da diegese para compartilhar com este, intenções e pensamentos que acabam por cativar atenção, torcida e eventual perdão.

Conforme o entendimento de Marques, o contexto em que imperam as personalidades anti-heroicas na televisão contemporânea refletem:

a decadência do Sonho Americano, o fracasso e inadequação de esperanças e sonhos em um presente desprovido de tais ilusões. Os homens à frente dessas narrativas são arautos da frustração e insanidade, de doença psíquica e desconexão emocional. Esses personagens […] estão à beira do colapso, seus monstros internos despertaram para realidades sombrias da contemporaneidade. Sua força reside em demonstrações de poder e crueldade, como eles exercem sua atração através de tiradas inteligentes sem emoção de autoconsciência, usando o público como confidentes de sua visão destorcida, mas frequentemente precisas sobre o mundo3(Marques, 2016, p. 9).

Em uma narrativa, com expectativa de se manter no ar por muito tempo, não adianta somente ter uma boa história para contar, é necessário haver tipos que intensifiquem a relação com o espectador e que o prendam à trama por várias temporadas. Por esta razão, o anti-herói oferece ao público, bem como para os roteiristas, maiores possibilidades dramáticas para a trama, uma vez que, por conter traços bons e ruins, suas reações não se tornam previsíveis, trazendo certo elemento de surpresa para o arco narrativo.

  1. HOUSE OF CARDS E UMA NOVA EXPERIÊNCIA COM O CONSUMO

Em 2011, a Netflix investe na produção de conteúdo original para o canal, porém é no ano de 2013 que a empresa quebra paradigmas com a adaptação de uma minissérie anteriormente produzida pela BBC, nos anos 1990, inspirada em um best-seller inglês, denominada House of Cards. O drama sobre um político inescrupuloso que cava a presidência dos Estados Unidos com meios obscuros e reprováveis. Entretanto, o mais curioso é descobrir por que a Netflix decidiu apostar em uma história cujo pano de fundo era a política americana?

A empresa investia no desenvolvimento de algoritmos que antevissem o gosto do espectador e chegou a promover um concurso cultural que premiou com US$ 1 milhão quem conseguisse desenvolver o melhor software, ação que a Netflix ainda mantém, com vistas a estar sempre à frente de suas concorrentes. A empresa utilizou a metodologia de pesquisa em banco de dados através do Big Data4, um sistema que permitiu mapear e estudar dados sobre as preferências dos espectadores, que incluíam os horários em que mais assistiam ao canal, diretores e atores mais buscados, quantidade de horas investidas, de maneira a prever as preferências do público e, literalmente, oferecer o que eles desejassem.

O resultado da pesquisa revelou que um drama político, com rostos famosos e com direção precisa seria interessante para o público e, assim, House of Cards estreou em 2013, com todos os 13 episódios da primeira temporada disponibilizados de uma única vez, prática repetida em outros conteúdos da empresa, sejam eles originais ou não, incentivando seus assinantes a maratonar a série no menor tempo possível, inclusive figurando entre as 20 séries mais maratonadas nos Estados Unidos, de acordo com dados divulgados pela Netflix em seu portal, em outubro de 2017. Foram muitos os que acompanharam em um único dia a trama encabeçada pelo casal Underwood até a Casa Branca.

A sua popularidade permitiu que a produção original fosse a primeira da plataforma a concorrer a prêmios tradicionais voltados para a televisão aberta e a cabo, como o Emmy e o Globo de Ouro, a ter atores indicados por vários anos consecutivos aos principais prêmios para a categoria, além de conquistar prêmios técnicos como fotografia e som.

A narrativa de House of Cards, da Netflix, trata de narrar a escalada do corregedor e líder do partido democrata no Congresso, Francis J. Underwood, ou simplesmente “Frank”, ao poder, depois que é quebrado o acordo que este havia feito com o candidato à presidência, Garrett Walker (Michael Gill), pelo cargo de Secretário de Estado5. A partir daí, a trama é conduzida pelas ações da personagem Frank e sua busca inescrupulosa pelo poder e as consequências que elas trazem para sua vida política e pessoal, fazendo com que suas decisões se tornem suas principais opositoras em muitos momentos das cinco temporadas.

Percebe-se que um dos recursos utilizados pelos autores para aproximar espectador e personagem é a promoção do diálogo com outros personagens presentes na trama. No caso de Tony Soprano percebemos o diálogo com o espectador personificado na figura de sua terapeuta na primeira temporada, pois ele esconde que está fazendo terapia de sua família e dos parceiros da máfia. É para ela que ele conta todos as suas angústias, frustrações, estresses das transações. É por meio da conversa com esta personagem que conhecemos um lado que os outros personagens da trama não tem ciência, de que mesmo um homem que cuida das famílias, inclusive a da máfia, é violento, vive a margem da lei sob o disfarce de um bom pai e marido, sofre com problemas comuns e promovem um desequilíbrio entre os desafios de sua vida ordinária.

A marca da personagem principal em House of Cards é a de realizar diversos monólogos com o espectador desde a sua apresentação e assim persistem por todas as cinco temporadas em que Frank Underwood conduz a trama da série, expondo para a audiência seus pensamentos sórdidos, explicando suas motivações para praticar este ou aquele ato e tornando-os cúmplices de seus atos antes mesmos de eles serem praticados.

  1. FRANK UNDERWOOD E A QUEBRA DA QUARTA PAREDE

A personagem representa o sonho americano que deu certo. Filho único de um pobre, bêbado e violento fazendeiro de pêssegos da cidade de Gaffney, Carolina do Sul, e de uma arrumadeira que só conseguia empregos por ser branca, mas que frequentemente furtava objetos de seus patrões, Frank construiu com as próprias mãos sua posição na política. Conquistou meritória educação ao conseguir uma bolsa de estudos na tradicional escola militar The Sentinel, estudou direito em Havard e se casou com uma rica texana de Dallas, cujo pai foi responsável por financiar sua primeira campanha.

Willimon, o showrunner, disse em uma entrevista para o site Town & Country6que Francis é “alguém que te surpreende com momentos de humanidade, porque ele é amoral, a princípio, descaradamente. Ele é alguém que começa como um sociopata e termina como um espectro” (tradução da autora). Uma personagem que consegue se desenvolver desta forma é muito efetivo para uma narrativa longa como a de House of Cards, que mantém a fidelidade da audiência após tantas temporadas. Como entender o fascínio que a personagem causa no público a ponto de ter mais aceitação7 que o real presidente Barack Obama no mesmo período?

De fato, as atitudes de Frank tendem a pesar mais para um lado de vilania e amoralidade em muitos aspectos, e, vez por outra, somos apresentados aos outros elementos de sua personalidade que visam amenizar sua imagem, colocando-o em contextos de fragilidade, insegurança, humanidade e até mesmo sacrifício, ainda que alguns escondam segundas intenções.

E sua apresentação, que é bastante rica, nos dá um vislumbre de como será a relação com o espectador. Frank socorre o cachorro dos vizinhos que havia sido atropelado e, pela gravidade, não há possibilidades de sobrevivência. Enquanto o segurança sai de cena para avisar os donos sobre o ocorrido e, Frank inicia um monólogo, jogando com a audiência.

Frank: Há dois tipos de dor. A dor que nos torna fortes e a dor inútil, a que se reduza sofrimento. (olhando para o público) Eu não tenho paciência com inutilidade (começa a estrangular o cachorro). Momentos como esse exigem que alguém aja, que faça o desagradável, o necessário (aqui, não se ouve mais os gemidos do animal, seguido de longa pausa). Pronto. A dor parou (Capítulo 1, 1ª temporada).

Logo nesses poucos minutos da abertura o espectador entende que ele é pragmático, decidido, aquele de quem se espera a ação, assumindo-se como principal personagem da série. O compartilhar de seus pensamentos será fundamental para sabermos suas emoções a respeito das coisas que o cercam e para capturar a cumplicidade do espectador neste e nas ações que se sucederão, pois, a conexão foi estabelecida no monólogo que o apresenta.

Este recurso da personagem se trata de uma técnica bastante utilizada no cinema para manter a relação com o espectador mediante uma experiência teatral conhecida como quebra da quarta parede que acontece quando a personagem rompe as barreiras invisíveis de separação com a plateia e a esta se dirige, quebrando o distanciamento que os posicionamentos dicotômicos entre palco e público cultivavam. Com relação ao cinema, a mesma lógica teatral é mantida e não se é permitido em um primeiro momento quebrar a transparência do dispositivo cinematográfico e reconhecer a existência do observador pela lente da câmera, se dirigindo diretamente ao público, literalmente olhando e falando com/para a câmera. Esta convenção é quebrada logo nos primórdios com O grande roubo do trem (1909), de Edwin S. Porter, em que um dos personagens saca a arma e atira em direção à câmera, encarando-a ao final da película.

Como função principal para o uso deste recurso se nota a aproximação do espectador com os eventos da narrativa e tirá-lo de uma posição passível, fazendo com que ele participe ativamente da ação praticada pela personagem que promove a quebra da transparência (Esquenazi, 2010). Neste sentido, a conversa de Frank com o público tem duas finalidades: declarar seus pensamentos e ganhar a cumplicidade do espectador, atribuindo a este a

responsabilidade pelo julgamento dos atos por ele praticados. Em muitos momentos, este recurso é usado para que ele justifique suas atitudes para o espectador. “Essa personalidade do narrador promove diferentes interpretações por parte do público, alguns questionam sua ética e outros admiram seu comportamento” (Zanette e Sigiliano, 2021, p. 5). Rodrigues confirma o entendimento, alegando que:

Através do recurso da quarta parede, não temos um protagonista recluso à história. Ele interage conosco. Quando Frank fala conosco, não é como um paciente em terapia, precisando de ouvidos com quem falar para resolver seus conflitos. Frank sabe o que fará, por que fará, e quer que você o acompanhe. Então ele joga o conflito para você (e para mim). Conosco fica o desconforto de torcer por ele sabendo que não é o correto. O conflito interno está em nós, espectadoras e espectadores (Rodrigues, 2016).

Portanto, quando Frank conversa com o público, interrompe o fluxo da trama para puxar o espectador para uma ação ativa, para que este saiba o que ele pensa sobre outras personagens em cena, independente da presença destes, suspendendo momentaneamente a diegese para buscar a atenção de seus cúmplices. Depois que esta relação está estabelecida, bastará em alguns momentos apenas o direcionamento do olhar para a câmera para ligar a relação de Frank como narrado com sua audiência/cúmplice de suas armações, criando um mundo paralelo dentro da diegese, no qual apenas os dois polos fazem parte.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O arquétipo do anti-herói, aquele que reúne características de herói e vilão em sua composição, tem figurado bastante nas produções seriadas estadunidenses dos últimos vinte anos, sobretudo com o investimento na qualidade dos produtos, abordando temas que visam nichos específicos do público e não somente conteúdo para as massas, com a elaboração de episódios que requerem maior envolvimento do espectador.

A popularização da tecnologia streaming, a exemplo da Netflix, proporcionou aos consumidores a experiência de controlar o que, quando, como e onde assistir a filmes e séries, incentivando a cultura da maratona, principalmente entre o público jovem. Esses canais aproveitaram para investir em produções próprias, com muita qualidade técnica e narrativa, protagonizada, em alguns casos, por personagens anti-heroicos que, por reunirem qualidades de heróis e vilões, dão subsídios aos criadores para explorar diversos caminhos dramáticos, como acontece na série House of Cards.

Até a quinta temporada, em que se mantém no protagonismo da série, Frank manipula, engana, usa as pessoas e até chega a matar, caracterizando perfeitamente seu comportamento que pende mais para o lado sombrio do vilão. Em outros, se vê enredado em um contexto em que muitos outros são piores do que ele, fazendo com que compreendamos suas atitudes, embora não concordemos com elas.

Nas narrativas complexas, em que o discurso das personagens transforma a relação do espectador com a narrativa, convidando-o a preencher lacunas, interpretar informações e organizar os fatos que estão diante de si, a quebra da quarta parede pela personagem Frank Underwood, cria uma intimidade com o espectador e faz de nós cúmplices de seus crimes e ouvintes de seus pensamentos, atribuindo-nos a decisão final do julgamento dos seus atos na trama.


1 Mestre em Artes (PPGARTES/UFPA – 2021), Bacharel em Cinema e Audiovisual (UFPA – 2018) e em Direito (UNAMA – 2010), Professora Substituta no Bacharelado em Cinema e Audiovisual – UFPA, Assistente de Direção, Membro e Produtora no Coletivo Audiovisual Inovador Talvez Filmes. E-mail: ninonandes@gmail.com.

2 A pesquisa apontou as 100 melhores séries de todos os tempos e The Sopranos ficou em primeiro lugar. A lista completa está disponível em https://www.rollingstone.com/tv/lists/100-greatest-tv-shows-of-all-time-w439520.

3 Texto original: [The television series of the new millennium] expose the decadence of the American Dream, the failure and inadequacy of hopes and dreams in a present devoid of such illusions. The men at the forefront of these narratives are heralds of frustration and insanity, of psychic illness and emotional disconnection. These characters[…] are on the verge of collapse, their inner monsters awoken to the grim realities of contemporaneiry. Their strength lies in demonstrations of power and cruelty as they exert ther attraction through clever emotionless tirades of self-centredness and sel-awareness, using the audience as confidants of their twisted but often accurate views on the world.

4 De acordo com o site Marketing por Dados, o Big Data é um conceito que descreve o grande volume de dados estruturados e não estruturados que são gerados a cada segundo. Ele não é o único sistema de análise de dados, mas o diferencial do programa é a possibilidade de cruzamento de dados por diversas fontes, o que pode dar resultados mais precisos. Disponível em: http://marketingpordados.com/analise-de-dados/o-que-e-big-data-%F0%9F%A4%96/.

5 Essa função no sistema político americano corresponde, guardadas as devidas proporções, ao ministério das relações exteriores no Brasil. É um dos cargos de maior posição por lidar com assuntos externos.

6 Entrevista completa disponível em https://www.townandcountrymag.com/leisure/arts and-culture/reviews/a990/beau-willimon-house-of-cards-interview/.

7 Segundo pesquisa realizada do site Polling Reuters, em março de 2015, Frank Underwood teria 58.4% de aprovação contra 46% de Obama, caso fosse de fato o presidente americano, mesmo depoisde ter mentido, manipulado, armado e matado nas duas primeiras temporadas da série. Pesquisa completa disponível em: https://polling.reuters.com/#!response/TM496Y15_3/type/smallest/dates/20150306-20150320/collapsed/true.

REFERÊNCIAS

ARANTES, Aldinéia Cardoso. O estatuto do anti-herói: um estudo da origem e representação, em análise crítica do Satyricon, de Petrônio e Dom Quixote, de Cervantes. Maringá. 2008. 116 p. Dissertação de Mestrado – Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Paraná.

ARAÚJO, Lucas Vieira de. As séries americanas que mudaram a forma de fazer TV: um sinal do que está por vir. Revista Comunicação e Sociedade. v. 37, n. 2, p. 327-334, maio/ago. 2015

BARANITA, Pedro Alexandre de Almeida Lima Fernandes. Anti-heróis no cinema. Porto.2014-2015. 94 p. Dissertação de Mestrado – Escola das Artes da Universidade Católica Portuguesa, Porto.

BONNET, James. Explorando o lado sombrio: a jornada do anti-herói. Disponível em: https://dicasderoteiro.com/2012/03/07/explorando-o-lado-sombrio-a-jornada-do-anti heroi/.

BORDWELL, David. “La narración em el cine de ficción”. In: BORDWELL, David. Modos históricos de narración. Barcelona: Paidós. 1996. Cap. 3. p.149 – 166.

BROMBERT, Victor H. Em louvor de anti-heróis: figuras e temas da moderna literatura europeia. Trad. José Laurênio de Melo. São Paulo: Ateliê Editoril, 2001. 219p.

CAMPOS, Flávio de. Roteiro de Cinema e Televisão: a arte e a técnica de imaginar, perceber e narrar uma história. Rio de Janeiro. Zahar. 2007.

COMPARATO, Doc. Da criação ao roteiro. Rio de Janeiro. Rocco. 2000.

ESQUENAZI, Jean-Pierre. As series televisivas. Trad. Pedro Elói Duarte. Lisboa. Texto e Grafia. 2010.

HOUSE OF CARDS. Direção: David Fincher, James Foley, Joel Schumacher et al. Produção: Beau Willimon, Dana Brunetti, Kevin Spacey, et al. Local: EUA, 2013. Disponível em Netflix.

MALONEY, Al. Why are there so many TV anti-heroes? Out/2014. Disponível em: http://www.bbc.com/culture/story/20130920-when-tv-characters-break-bad. Acesso em 12/06/2018.

MANZOTTI, Pablo. Seriemanía: la guia para elegir tu próxima serie favorita. Buenos Aires. Reservoir Books. 2014.

MARQUES, Maria João Brasão. The one who knocks: the hero as a villain in contemporary televised narratives. 2016. 90 p. Dissertação de Mestrado – Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa.

MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. São Paulo: Cultrix. 2004. 423p. MR. ROBOT. Criação: Sam Esmail. EUA: USA Network, 2015 a 2019. Amazon Prime Vídeo.

OZ. Direção: Adam Bernstein, Darnell Martin. Produção: Barry Levinson, Debbie Sarjeant, JimFinnerty, et al. Local: EUA, 1997.

THE SOPRANOS. Direção: Allen Coulter, David Chase, John Patterson. Produção: Brad Grey, David Chase. Local: EUA, 1999. Série de TV. Disponível em: http://www.fbseries.com/?s=os+sopranos&tipo=video.

VOGLER, Christopher. A Jornada do escritor: estruturas míticas para escritores. Trad. Ana Maria Machado. 2ª Ed. Rio de Janeiro. Nova Fronteira. 2006.

ZANETTE, Nayara. SIGILIANO, Daiana. A Quebra da Quarta Parede em Narrativas Complexas: Uma Análise das Séries Fleabag e High Fidelity. Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação. 44º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – VIRTUAL – 4 a 9/10/2021

Author Image

RUA

RUA - Revista Universitária do Audiovisual

More Posts

RUA

RUA - Revista Universitária do Audiovisual