A Cor do Dinheiro (1986) é a única sequência que Martin Scorsese dirigiu em sua carreira. E não é uma sequência típica: o longa-metragem acompanha o personagem Eddie Felson, seguindo os acontecimentos do filme The Hustler (1961), de Robert Rossen. O protagonista era um trambiqueiro do mundo da sinuca que vivia de apostar em sua habilidade no esporte.
No entanto, nada além do próprio personagem interessa à continuação de Scorsese. O cineasta segue um caminho próprio e transforma esse projeto, que veio para ele como uma encomenda, em um trabalho autoral. Junto ao roteirista Richard Price, ele desenvolve uma obra sobre como a ganância e a masculinidade são a perdição do homem.
A trama segue Felson já envelhecido e fora do mundo da sinuca, trabalhando como vendedor de bebidas alcóolicas. Contudo, o personagem esbarra com Vincent (Tom Cruise), um jovem prodígio do bilhar, que junto a sua namorada Carmen (Mary Elizabeth Mastrantonio) tenta aplicar golpes em apostas, para tirar uma grana de seu talento. Lembra muito o que Felson fazia nos seus dias de juventude. Então, o ex-apostador parte em uma viagem pelos Estados Unidos com o casal, servindo como mentor no mundo do bilhar.
Segundo Scorsese, em uma entrevista dada a Peter Biskind e Susan Linfield, o nome “A Cor do Dinheiro” foi retirado de um livro, o qual também era sequência do livro original “The Hustler”. Porém o diretor e o roteirista decidiram não adaptar o material e apenas se apropriar do título. Assim, a partir desse nome, já é possível pressentir o caráter moralista que vai percorrer a narrativa — a temática da ganância já parece viva antes da projeção do longa-metragem. Para o crítico Sérgio Alpendre (2021), trata-se de um “conto moral”.
Quase como em uma trama fabular, parece que Scorsese pretende fazer uma narrativa de ressurgimento do protagonista e de queda para o personagem de Tom Cruise. No entanto, essa progressão não é apenas um arco de desenvolvimento, mas também uma troca de papéis. É como se, do início ao fim, Felson e Vincent trocassem de posição. Antes, o novato era obcecado pela vitória e por seu talento; não era tão focado na trapaça e sim em ser o melhor sempre — assim como Paul Newman no filme original. Entretanto, quanto mais a projeção passa, mais Felson retoma sua obsessão por vencer, e Vincent começa a focar no dinheiro e na trambicagem. O caráter moralista vem dessas obsessões.
Penso, porém, que a obra vai além de um conto moral, sobretudo pelo estilo de decupagem e montagem. Junto a Scorsese, Thelma Schoonmaker cria um rigor tão poderoso nas partidas de bilhar, que chega a ser prazeroso assistir a elas. As jogadas e tacadas perfeitas são ritmadas pela edição, levando a cenas extremamente plásticas. Até o som das tacadas se torna um motivo dramático, que cria o prazer de olhar a partida. Funciona quase como uma pulsão escópica lacaniana (MACHADO, 2007): se torna impossível desviar o olhar da satisfação que os acertos no bilhar proporcionam, mesmo que soubéssemos o impacto negativo causado às personagens.
Felson, Vincent e Carmen vão para um bar de bilhar no qual são desconhecidos (logo, é fácil enganar os outros jogadores). No entanto, o personagem de Tom Cruise insiste em enfrentar o melhor jogador do lugar, apesar de seu mestre dizer o contrário. Afinal, se Cruise derrotar um “hustler” consagrado, ele começará a ser reconhecido, e seus trambiques não terão tanto impacto. Mas a partida acontece, e o nível das jogadas é grandioso. Tudo muito calculado e rigoroso, e a decupagem da cena segue essa mesma lógica: a câmera se movimenta graciosamente pela mesa de bilhar e cria um diálogo com os movimentos das bolas. Existe uma união dramática e rítmica entre ambos os movimentos.
Enquanto isso, porém, a montagem começa a sobrepor o rosto de Felson observando toda aquela graciosidade. Esse é o momento do filme que mais representa a dualidade entre a ganância e o prazer. O protagonista está contrariado pelos erros de Vincent, que perdeu a chance de tirar muito dinheiro daquele bar. Entretanto, seu desapontamento é tão grande quanto seu fascínio — os olhares de Paul Newman parecem transitar entre uma excitação prazerosa e uma raiva reprimida. Todo esse trecho é um ponto de virada para o personagem, tanto que, na cena seguinte, ele decide voltar a jogar sinuca por conta própria e abandona seu jovem aprendiz. E é aí que Scorsese consegue nos colocar no centro da disputa moral do protagonista.
A Cor do Dinheiro (1986) é a única sequência que Martin Scorsese dirigiu em sua carreira. E não é uma sequência típica: o longa-metragem acompanha o personagem Eddie Felson, seguindo os acontecimentos do filme The Hustler (1961), de Robert Rossen. O protagonista era um trambiqueiro do mundo da sinuca que vivia de apostar em sua habilidade no esporte.
No entanto, nada além do próprio personagem interessa à continuação de Scorsese. O cineasta segue um caminho próprio e transforma esse projeto, que veio para ele como uma encomenda, em um trabalho autoral. Junto ao roteirista Richard Price, ele desenvolve uma obra sobre como a ganância e a masculinidade são a perdição do homem.
A trama segue Felson já envelhecido e fora do mundo da sinuca, trabalhando como vendedor de bebidas alcóolicas. Contudo, o personagem esbarra com Vincent (Tom Cruise), um jovem prodígio do bilhar, que junto a sua namorada Carmen (Mary Elizabeth Mastrantonio) tenta aplicar golpes em apostas, para tirar uma grana de seu talento. Lembra muito o que Felson fazia nos seus dias de juventude. Então, o ex-apostador parte em uma viagem pelos Estados Unidos com o casal, servindo como mentor no mundo do bilhar.
Segundo Scorsese, em uma entrevista dada a Peter Biskind e Susan Linfield, o nome “A Cor do Dinheiro” foi retirado de um livro, o qual também era sequência do livro original “The Hustler”. Porém o diretor e o roteirista decidiram não adaptar o material e apenas se apropriar do título. Assim, a partir desse nome, já é possível pressentir o caráter moralista que vai percorrer a narrativa — a temática da ganância já parece viva antes da projeção do longa-metragem. Para o crítico Sérgio Alpendre (2021), trata-se de um “conto moral”.
Quase como em uma trama fabular, parece que Scorsese pretende fazer uma narrativa de ressurgimento do protagonista e de queda para o personagem de Tom Cruise. No entanto, essa progressão não é apenas um arco de desenvolvimento, mas também uma troca de papéis. É como se, do início ao fim, Felson e Vincent trocassem de posição. Antes, o novato era obcecado pela vitória e por seu talento; não era tão focado na trapaça e sim em ser o melhor sempre — assim como Paul Newman no filme original. Entretanto, quanto mais a projeção passa, mais Felson retoma sua obsessão por vencer, e Vincent começa a focar no dinheiro e na trambicagem. O caráter moralista vem dessas obsessões.
Penso, porém, que a obra vai além de um conto moral, sobretudo pelo estilo de decupagem e montagem. Junto a Scorsese, Thelma Schoonmaker cria um rigor tão poderoso nas partidas de bilhar, que chega a ser prazeroso assistir a elas. As jogadas e tacadas perfeitas são ritmadas pela edição, levando a cenas extremamente plásticas. Até o som das tacadas se torna um motivo dramático, que cria o prazer de olhar a partida. Funciona quase como uma pulsão escópica lacaniana (MACHADO, 2007): se torna impossível desviar o olhar da satisfação que os acertos no bilhar proporcionam, mesmo que soubéssemos o impacto negativo causado às personagens.
Felson, Vincent e Carmen vão para um bar de bilhar no qual são desconhecidos (logo, é fácil enganar os outros jogadores). No entanto, o personagem de Tom Cruise insiste em enfrentar o melhor jogador do lugar, apesar de seu mestre dizer o contrário. Afinal, se Cruise derrotar um “hustler” consagrado, ele começará a ser reconhecido, e seus trambiques não terão tanto impacto. Mas a partida acontece, e o nível das jogadas é grandioso. Tudo muito calculado e rigoroso, e a decupagem da cena segue essa mesma lógica: a câmera se movimenta graciosamente pela mesa de bilhar e cria um diálogo com os movimentos das bolas. Existe uma união dramática e rítmica entre ambos os movimentos.
Enquanto isso, porém, a montagem começa a sobrepor o rosto de Felson observando toda aquela graciosidade. Esse é o momento do filme que mais representa a dualidade entre a ganância e o prazer. O protagonista está contrariado pelos erros de Vincent, que perdeu a chance de tirar muito dinheiro daquele bar. Entretanto, seu desapontamento é tão grande quanto seu fascínio — os olhares de Paul Newman parecem transitar entre uma excitação prazerosa e uma raiva reprimida. Todo esse trecho é um ponto de virada para o personagem, tanto que, na cena seguinte, ele decide voltar a jogar sinuca por conta própria e abandona seu jovem aprendiz. E é aí que Scorsese consegue nos colocar no centro da disputa moral do protagonista.
Aliás, é interessante perceber que, apesar de estarem sempre no fundo da trama, as mulheres também fazem parte desse jogo de ganância e prazer. Vincent tem uma relação quase que maternal com sua namorada Carmen, colocada por Scorsese e Price como uma figura que vai cuidar do prodígio e ajudá-lo no mundo sujo das apostas e do bilhar. Entretanto, essa personalidade é apenas fachada para uma mulher controladora, que, na realidade, está sempre um passo à frente de seu namorado, guiando seu caminho. Quando abandona seu mentor, todavia, Vincent começa a tomar controle da situação e passa a tratar Carmen com desprezo e superioridade. A ganância consome o personagem.
Enquanto isso, Felson vive um romance com Janelle. Na primeira cena, o diretor perde bons minutos mostrando o flerte entre o casal e a tensão sexual entre eles. Pouco depois, há outra cena que os mostra dançando em volta de um espelho, em um restaurante. Nesse momento, o protagonista já havia decidido viajar com Vincent e ensiná-lo sobre a trambicagem, portanto o espelho funciona como um lembrete. Quase como um segredo que Felson esconde de Janelle, um lado seu que sempre estará refletido em sua persona – mesmo que escondido. E quando ela descobre, o relacionamento deles é comprometido, pois Felson sempre coloca o jogo e as apostas à frente de tudo.
Assim, ainda que tenham menos tempo de tela, as personagens femininas evidenciam como a masculinidade de Felson e Vincent funciona. Suas preocupações estão nas suas respectivas obsessões, não nos amores que vivenciam. E isso fica mais evidente na sequência final, na qual Vincent engana Felson para ganhar nas apostas, fazendo seu antigo professor acreditar que havia vencido no campeonato de bilhar. Porém, quando descobre a trambicagem, o veterano desafia o personagem de Tom Cruise para uma última partida. O protagonista precisa saber a verdade, precisa descobrir se ainda é o melhor jogador de bilhar que existe.
Eles se posicionam de lados contrários na mesa, enquanto suas respectivas parceiras aparecem ao fundo — como se não tivessem importância. No espelho, os dois casais estão refletidos. Esse plano concretiza a transformação de Vincent em um trambiqueiro, que não se importa com o jogo, enquanto Felson se torna um homem da sinuca. A troca de papéis, prenunciada desde o princípio, enfim acontece.
Então, quando eles estão prestes a iniciar a partida, o filme fecha com uma imagem congelada de Paul Newman. Nunca sabemos o vencedor. Não importa. A transformação de um no outro já está evidente, a fábula de Scorsese atingiu a sua moral. Um dos homens perde para a ganância, enquanto o outro se encontra no prazer plástico do jogo. A vitória na partida seria um mero detalhe, pois o vencedor moral deste conto é Eddie Felson. Como o personagem mesmo diz, ele está de volta.
REFERÊNCIAS E FILMOGRAFIA
ALPENDRE, Sérgio. The Color of The Money. Letterboxd, 2021. Disponível em: <https://letterboxd.com/sergioalpendre/film/the-color-of-money/>. Acesso em: 06 de janeiro de 2023.
BISKIND, Peter; LINFIELD, Susan. “Chalk Talks”. In: Brunette, Peter (org.). Martin Scorsese: Interviews. Mississipi, USA: University Press of Mississipi, 1999. Disponível em: <https://books.google.com.br/books?hl=pt-BR&lr=&id=D_asDNgs5S4C&oi=fnd&pg=PR7&dq=martin+scorsese&ots=_HkTxDzNBw&sig=PoHd6LBcn-0ehTvMB9mxjfAsXqs#v=onepage&q=color%20of%20the%20money&f=false> Acesso em: 06 de janeiro de 2023.
MACHADO, Arlindo. O sujeito na tela: modos de enunciação no cinema e no ciberespaço. São Paulo, Paulus, 2007.
A COR do Dinheiro. Direção: Martin Scorsese. Produção: Touchstone Pictures. Estados Unidos: Buena Vista Distribution, 1986. Streaming.
DESAFIO à Corrupção. Direção: Robert Rossen. Produção: Rossen Enterprises. Estados Unidos: 20th Century Fox, 1961. Streaming.