A ironia como ferramenta crítica: uma análise da sátira sobre a Internet e seus impactos atuais presente no filme Inside (2021)

Por: Ana Menezes

Introdução

Inside (2021), é um especial musical da Netflix dirigido, roteirizado, interpretado e montado pelo comediante norte-americano Bo Burnham. O filme foi traduzido e legendado para 29 idiomas diferentes (segundo o próprio site da Netflix), obteve feedback positivo por grande parte de seu público (Rotten Tomatoes; IMDB) e vencedor de uma dezena de prêmios, incluindo, entre eles, 3 Emmys. Em linhas gerais, dentro do gênero da comédia stand-up, a obra consiste na reunião de diversos conteúdos produzidos pelo artista, todos gravados em um mesmo cômodo de sua casa, ao longo de um ano, durante o período de isolamento causado pela pandemia de Covid-19.

Assim como diversos outros produtos artísticos produzidos nessa época, este explora o sentimento de desconcerto universal causado pela pandemia, por meio da mostra intimista dos conflitos vividos pelo artista, como cansaço, angústia, bloqueio criativo, sentimentos depressivos e entre outros, que são tanto extremamente pessoais a ele, quanto familiares a todo o seu público. Dito isso, o filme intercala, em meio a tais excertos de vulnerabilidade, diversas provocações satíricas sobre temas atuais, dentre elas, está a crítica extensa a respeito do papel da indústria cultural na contemporaneidade, chamando atenção para os impactos, intensificados no período de isolamento pandêmico, da internet na sociedade atual, que se define cada vez mais pelo mundo online.

Nesse sentido, embora o filme apresente em si diversas camadas passíveis de análise, este ensaio pretende examinar como o diretor utiliza-se do humor irônico para, em meio a essa premissa um tanto quanto documental, fomentar o pensamento crítico frente a produção de conteúdo e a cibercultura1 na contemporaneidade. Além de discorrer sobre o fato de que tudo isso é feito enquanto Inside em si se configura justamente como um produto vinculado à Indústria Cultural, estando dentro de uma plataforma de streaming diretamente relacionada à Internet e ao engajamento proporcionado por ela.

A evolução de Burnham

A carreira de Bo Burnham, idealizador do especial, se iniciou da mesma forma que diversos outros produtores de conteúdo encontraram a porta de entrada para o seu atual sucesso: compartilhando seus vídeos, que podem ser considerados amadores, no YouTube,

1 Conceito definido como: “(..) formação histórica de cunho prático e cotidiano, cujas linhas de força e rápida expansão, baseadas nas redes telemáticas, estão criando, em pouco tempo, não apenas um mundo próprio, mas, também, um campo de reflexão intelectual dividido em várias tendências (…) consequência cultural da relação humana com os aparatos tecnológicos digitais, onde um contamina o outro na construção de novos sentidos para a realidade.” (RUDIGER, 2011, p. 07).

logo no ano seguinte ao lançamento da plataforma (2006). A partir daí, o comediante foi atingindo, cada vez mais, um maior número de espectadores, chegando a migrar do mundo online para o ao vivo com suas performances de comédia stand up. Dito isso, seu reconhecimento se tornou mais difundido quando o artista decidiu postar, de forma gratuita, gravações íntegras de suas performances em seu canal na plataforma.

Em meados de 2015, devido à problemas de saúde mental, Burnham tomou a decisão de se ausentar por tempo indeterminado, tanto dos palcos quanto das performances individuais para a Internet. No entanto, continuou tomando parte em produções desvinculadas do gênero da comédia stand up, como nos filmes Eighth Grade (diretor) e Promising Young Women (ator). Após um período de 5 anos, o comediante planejou finalmente retornar aos shows ao vivo no início do ano de 2020, porém, algo inesperado aconteceu: o início da pandemia e, consequentemente, do isolamento social. Assim, foi a partir dessa sequência de acontecimentos inesperados que o artista produziu Inside.

Tal qual sua fama, é perceptível que a complexidade, e até mesmo a qualidade, de seu conteúdo também cresceu ao longo dos anos. Tanto em seus primeiros vídeos compartilhados no YouTube, quanto no início de sua carreira como comediante de stand up ao vivo, é notável que ele fazia o uso de um ironia sem muitas camadas, não levando em consideração que suas composições poderiam ofender diversas minorias. Essa abordagem estilo “humor sem limites” acatada por Burnham fez com que ele fosse alvo de diversas críticas e protestos, aos quais ele rebateu, na época, de forma um tanto quanto arrogante

Apesar disso, conforme o passar dos anos, é possível reconhecer como a abordagem humorística do autor escalou de algo um tanto quanto problemático, para construção satírica presente em Inside. Embora Burham sempre tenha se aproveitado da ironia na escrita de suas performances, a forma como ela é aplicada no especial da Netflix é inovadora e complexa, se diferenciando, consequentemente, do estilo apresentado anteriormente pelo comediante em sua carreira.

Eu comecei a fazer comédia quando era apenas uma criança abrigada

Eu escrevi coisas ofensivas e eu as disse

Deus, por favor me perdoe Pelo que eu não percebi que fiz O

u que iria viver para me arrepender ( BURNHAM, Problematic, 2021) 2

2 Bo Burnham. Livre tradução da autora de: “I started doing comedy when I was just a sheltered kid/ I wrote offensive shit and I said it/ Father, please forgive me/ For I did not realize what I did/ Or that I’d live to regret it”

O humor de Inside

Como estabelecido anteriormente, a ironia presente em Inside se estabelece como principal agente de sua perspectiva crítica a respeito do papel da internet na sociedade atual e seus impactos. Assim, faz sentido que o público principal que Burnham pretende dialogar com essa sátira seja composto pelas gerações mais afetadas por tal configuração: alguns Millennials (nascidos entre 1990 e 1995, como o próprio Burnham) e, principalmente, a chamada Geração Z (nascidos de 1995 a 2010), os chamados nativos digitais (KOJIKOVSKI, 2017). Dessa forma, o estilo satírico do longa acompanha as tendências humorísticas características desse grupo de indivíduos, fazendo com que eles estejam aptos a absorver esse viés pretendido pelo autor

“(…) a meta do enquadre irônico de um significado é, em geral, a entrega de uma avaliação implícita e um convite ao leitor/audiência para compartilhar da perspectiva do ironizador. Isso torna a ironia especialmente adequada para a tarefa de expressar a crítica, embora a avaliação implícita possa ser mais complicada e multinivelada do que uma pura desaprovação. Contudo, se não for identificada pelo receptor, a ironia simplesmente não é ironia.” (CASAGRANDE, 2021)

Nesse sentido, para compreender como Inside se utiliza da ironia como ferramenta crítica é necessário explorar, brevemente, o que consiste tal humor comum ao final da geração Y e à toda a Z. Segundo os acadêmicos europeus Timotheus Vermeulen e Robin van den Akker o termo que caracteriza as novas expressões sociais e culturais que emergiram junto ao século XXI seria o chamado Metamodernismo, que caracteriza uma sociedade permeada pela democratização das tecnologias digitais que formou uma “mídia com uma lógica metamoderna de criação amadora constante e de redes sociais como o palco dessas criações.” ( BEDIM, 2017).

“A estrutura metamoderna de sentimento invoca uma oscilação entre o desejo moderno por sentido e uma dúvida pós-moderna sobre o sentido de qualquer coisa. Entre uma sinceridade moderna e uma ironia pós-moderna. Entre esperança e melancolia. Empatia e apatia. Unidade e pluralidade. Pureza e corrupção. Ingenuidade e sagacidade. Entre criação e conceitualização. Utopia e pragmatismo. Metamodernismo pode ser caracterizado como um pêndulo. Cada vez que ele balança em direção ao fanatismo, a gravidade o puxa de volta para a ironia, no momento em que a ironia cai na apatia, a gravidade o puxa de volta ao entusiasmo.” (BEDIM, 2017)

Tal configuração contemporânea dialoga diretamente com o estilo humorístico próprio desses indivíduos, permeado por elementos muitas vezes aleatórios e, de certa forma, absurdos ou inesperados, que surgem a todo o tempo na cena. Uma produção considerada precursora dessas características especificamente é a esquete Dear Sister, realizada pelo programa norte-americano Saturday Night Live, bem como as obras do comediante estadunidense Eric Andree.

Além disso, outro aspecto bastante presente entre esses jovens é a utilização do humor como forma de enfrentar tempos de crise por meio, por exemplo, de memes a respeito de catástrofes, o que inclui a pandemia. A primeira vista, isso pode parecer uma abordagem um tanto quanto depreciativa ou pessimista da realidade, no entanto isso não significa que eles se sentem completamente desesperançosos, ou que tenham a intenção de desrespeitar um momento delicado. Pelo contrário, mesmo quando esses próprios indivíduos são as vítimas de um acontecimento, como no caso do surto de Covid-19, sua abordagem humorística manifestou-se como uma válvula de escape, além de constatar que tais indivíduos tinham consciência do que acontecia ao seu redor.

Com isso em mente, retomando o fato de que a ironia, junto com as características citadas, se faz presente de maneira assídua no humor característico desse contingente, é importante estabelecer que o discurso irônico pode ser enunciado de diferentes formas, contendo uma ou mais camadas, o que eleva o nível de subjetividade e possibilidades de interpretação da mensagem. Tomando como base o vídeo ensaio intitulado What makes gen z humor so interesting?3 É possível estabelecer diferentes níveis de utilização desse recurso partindo do ponto de que o discurso literal teria zero camadas de ironia, isto é, o comunicador diz explicitamente o que se quer dizer.

O primeiro deles seria o sarcasmo, que possuiria apenas uma camada de ironia, ou seja, a intenção do enunciador é que a mensagem signifique o contrário daquilo que ela quer dizer. Em seguida, a chamada “pós-ironia”, tendo seu nome uma relação direta com o período do pós-modernismo, acontece quando algo sincero é dito de maneira sarcástica. Por último, relacionando-se com o Metamodernismo, citado anteriormente, a “meta-ironia” acontece quando não é possível afirmar com certeza se o enunciador está sendo sincero ou não, ou seja, a ironia parte da fonte da mensagem, e não de seu conteúdo em si.

Burnham vai além de simplesmente utilizar o sarcasmo na composição crítica de Inside, incorporando tais características próprias do humor da geração Z em seu longa. Com

3 O que torna o humor da geração Z tão interessante?

isso em mente, é possível citar alguns momentos chave nos quais esse especial explicita seu viés satírico perante a cibercultura na contemporaneidade, utilizando-se das diversas camadas da ironia para dialogar justamente com esses indivíduos que já as incorporam na sua expressão de humor cotidiana.

Welcome to the Internet

A presença do digital na contemporaneidade é uma das principais linhas narrativas abordadas em Inside. Nesse sentido, um dos trechos do filme que mais dialogam com tal perspectiva é a faixa musical chamada Welcome to the Internet4 . Aqui, Burnham tece uma crítica ao mecanismo digital atual de forma irônica quando ele se coloca como uma espécie de “guia turístico” da Internet, que, em um tom animado e positivo, vai guiar o telespectador pelo vasto mundo digital:

Bem-Vindo à internet

Olhe em volta

Qualquer coisa que seu cérebro puder pensar você pode encontrar

Temos montanhas de conteúdo

Alguns melhores, alguns piores (…)

Querida, como você cresceu

E se permanecermos juntos

Quem sabe o que podemos fazer

Sempre foi o plano Colocar o mundo em suas mãos 5 (BURNHAM, 2021)

Desde as primeiras estrofes a letra da música possui um conteúdo que conversa com uma abordagem tecnofílica, apresentando a Internet como “uma extensa biblioteca (…) diversificada e dinâmica através das múltiplas vozes que alimentam seu saber.” (LEVY apud RUDIGER, 2011), como a geradora de uma utopia, que proporciona benefícios inimagináveis à humanidade. No entanto, à medida que a música avança, nota-se sua abordagem crítica, elaborada a partir dessa premissa irônica de amor incondicional ao digital. A melodia se acelera progressivamente, causando uma sensação de ansiedade e desespero, ao mesmo

4 Bem-vindo à internet

5 Bo Burnham. Livre tradução da autora de: “Welcome to the internet/ Have a look around/ Anything that brain of yours can think of can be found/ We’ve got mountains of content/ Some better, some worse/ If none of it’s of interest to you, you’d be the first (…) Honey, how you grew/ And if we stick together/ Who knows what we’ll do/ It was always the plan/ To put the world in your hand.”

tempo que a voz de Burnham mantém o tom animado inicial. Essa disparidade causa um efeito desconcertante, análogo ao que se pode sentir com o bombardeamento constante de conteúdos providos pelo mundo online.

Não há motivo para pânico
Isso não é um teste, haha
Apenas balance a cabeça dizendo sim ou não e nós faremos o resto
(…)
Poderia te interessar em tudo?
Toda hora?
Um pouco de tudo
Toda hora
Apatia é uma tragédia
Tédio é um crime
(…)
6
(BURNHAM, 2021)

A atual plataformização fez com que o mundo digital se transformasse em um espaço no qual a produção de conteúdo se torna acessível não só para as grandes empresas, mas também aos consumidores. Considerando as plataformas como “[…] serviços on-line de intermediários de conteúdo”, capazes de gerenciar grandes fluxos de informações e de trocas (comerciais, culturais, subjetivas)” ( GILLESPIE apud POELL et al; 2020), percebe-se que a internet se configura como um espaço de bombardeamento de conteúdos extremamente diversos à todo o tempo, assim como estabelece o refrão da música. Tal configuração leva à configuração atual de uma sociedade de plataforma (ref), na qual é impossível dissociar esse recurso das estruturas sociais.

Isso culmina em diversas consequências,podendo ser prejudiciais, à sociedade, principalmente aos jovens, que já nasceram intrínsecos ao meio tecnológico. A interação entre os usuários e a internet deixa de ser algo orgânico e intelectualmente produtivo, uma vez que eles passam a estar sujeitos a diversos fatores como “[…] bolhas nas redes sociais; fake news, amplo domínio do rastreamento, coleta e processamento da vida social na forma

6 Bo Burnham. Tradução livre da autora de: “There’s no need to panic/ This isn’t a test, haha/ Just nod or shake your head and we’ll do the rest (…) Could I interest you in everything?/ All of the time?/ A little bit of everything/ All of the time/ Apathy’s a tragedy/ And boredom is a crime de dados operacionalizáveis para fins diversos (comerciais, políticos, governamentais)”( LEMOS, 2019).

“Apenas balance a cabeça dizendo sim ou não e nós faremos o resto”, esse constante bombardeamento de conteúdo não é aleatório, uma vez que as plataformas ganham espaço na estrutura econômica, as grandes instituições, públicas e privadas, começam a se aproveitar de seus artifícios para a geração de vendas e lucros. Por meio da dimensão da governança, junto ao capitalismo de vigilância7 , é possível reger as interações dos usuários através de algoritmos que reconhecem as preferências de cada público de acordo com suas ações dentro do mundo online. A partir disso, as plataformas conseguem se auto programar para exibir conteúdos que concordem com as preferências de cada indivíduo, viciando seus usuários cada vez mais em um looping mecânico de interação e consumo online. Não é produtivo que o indivíduo fique entediado, não é lucrativo que ele não demonstre reações perante ao que lhe é exibido.

Além da crítica mais explícita aos meios digitais presente nesse trecho de Inside, que já é construída de uma forma satírica, ainda é possível inferir aquela que Burnham faz ao seu próprio produto audiovisual. Afinal, ele próprio faz parte desse grupo de indivíduos que não só se tornaram produtores de conteúdo graças às plataformas, como também têm esse trabalho como sua principal fonte de renda. Paradoxalmente, o filme, assim como a Internet, também é construído de forma a entreter o espectador a todo o tempo, seja com trechos mais introspectivos, seja com trilhas musicais. Para que sua crítica seja validada, sua obra precisa de audiência, de interações do público, ela precisa ser recomendada aos usuários pelo mesmo algoritmo que acaba de satirizar.

White Woman’s Instagram

A faixa musical White Woman’s Instagram é uma perspectiva cantada a respeito da estética típica de um feed de instagram pertencente a uma garota branca.

Neve fresca caída no chão

Um golden retriever com uma coroa de flores

(…)

Latte com desenhos na espuma

7 O conceito de capitalismo de vigilância exprime “um modelo econômico baseado na antecipação de resultados e promessas de eficiência e customização a partir da análise de dados, moldando demandas e opiniões do público.” (ZUBOFF, 2019)

Abóboras pequenas

Meias felpudas confortáveis

Mesa de café feita de madeira 8 (BURNHAM, 2021)

Ao interpretar tal música Burnham dialoga com o conceito elaborado por McLuhan de teatro global, o qual exprime que “ (…) todo jovem está preocupado em atuar, exibindo-se publicamente”, ou seja, os indivíduos passam a deixar o mundo real em segundo plano, como se as experiências ao vivo fossem apenas geradoras de conteúdo para serem postadas online. Tudo o que a personagem “garota branca” vive, ela compartilha em seu instagram, seu cachorro, seu café da manhã, almoço e jantar, como se tais momentos não pudessem ser vividos sem serem “instagramados”.

Isso é o paraíso?

Ou isso é apenas

O Instagram

O Instagram de uma mulher branca 9 (BURNHAM, 2021)

Nesse trecho, ao comparar o instagram da garota ao “paraíso”, o comediante traz a perspectiva atual e extremamente presente nas redes sociais do self design10 , que consiste em uma “forma de inserção no universo social diverso através da (re)elaboração da própria imagem por meio dos recursos técnicos disponíveis”. Isto é, ao elaborar seu perfil na rede social, o indivíduo possui o desejo de mantê-lo da melhor forma, esteticamente, possível, uma vez que é a partir daquela configuração que o restante da sociedade irá formar sua primeira impressão sobre ele. Tudo aquilo que é ali apresentado interfere na sua imagem: sua roupa, casa, carro, filtro utilizado nas fotos e entre outros.

Sua foto preferida da mãe

A legenda diz: “Eu não posso acreditar

Faz uma decada que você se foi

8 Bo Burnham. Tradução livre da autora de: “Fresh fallen snow on the ground/ A golden retriever in a flower crown (…) Latte foam art, tiny pumpkins/ Fuzzy, comfy socks/ Coffee table made out of driftwood (…)\” 9 Bo Burnham. Tradução livre da autora de: “ Is this heaven?/ Or is it just a/ White woman/ A white woman’s Instagram”

10 Conceito elaborado por Boris Groys (2008)

Mamãe eu sinto sua falta, eu sinto falta de sentar com você no jardim

Ainda estou descobrindo como viver sem você (…) 11 (BURNHAM, 2021)

Em meio a descrições de imagens do dia a dia da “garota branca” a estrofe acima descreve um momento de vulnerabilidade que teria sido postado pela personagem em seu instagram. Embora esse trecho possa parecer um registro mais real em meio a tantas fotos fúteis, é preciso questionar: por que essa personagem compartilharia um post tão íntimo a respeito da morte de sua mãe em uma rede social? Isso se relaciona diretamente com a problemática atual de que, independentemente da gravidade ou intimidade do registro, tudo é passível de se tornar conteúdo, seja o início de uma guerra, seja a cura de uma doença, absolutamente todos os acontecimentos ao redor do mundo estão sujeitos a serem compartilhados em busca de engajamento.

Nesse momento, outro paradoxo irônico do filme pode ser observado. A partir dessa faixa musical, Burham crítica de forma satírica a sede atual dos indivíduos por engajamento online, que os leva inclusive a transformar seus momentos de tristeza e vulnerabilidade em produtos para alimentar suas plataformas. No entanto, o que seria Inside senão a materialização dessa descrição? O longa, junto aos seus trechos de interpretação mais elaborados, documenta justamente momentos de crise vividos pelo diretor durante o período de isolamento, filmagens essas que, logicamente, compõem o especial em questão, produto que tem como objetivo gerar interações e lucro.

Teriam tais momentos de vulnerabilidade sidos encenados por Burnham? Ou o comediante realmente se filmou de maneira intimista e exibiu suas ansiedades ao público? Aqui se pode observar a “meta-ironia” anteriormente citada, não é possível conceber com certeza quais foram as intenções e planejamentos do autor, isto é, se ele está sendo realmente transparente ou não.

Don´t Wanna Know

O grande fluxo de conteúdos online que permeia a atualidade também impactam nas relações dos usuários com aquilo que consomem. Quando uma nova produção é lançada em

11 Bo Burnham. Tradução livre da autora de: “Her favorite photo of her mom/ The caption says, “I can’t believe it/ It’s been a decade since you’ve been gone/ Mama, I miss you, I miss sitting with you in the front yard/ Still figuring out how to keep living without ya (…)”

uma plataforma de streaming, por exemplo, a empresa normalmente deseja que seu público demonstre engajamento em diferentes mídias sociais, como o instagram, twitter e entre outros.

“A princípio, convergência pode ser interpretada como uma integração tecnológica entre os meios de comunicação (a ultrapassada ideia da caixa preta). Porém, ela é melhor definida pelas práticas culturais que emergem do fluxo de conteúdos e do público por diferentes meios, reconfigurando a noção de audiência.” (FAST e JASSON, 2019)

Tal cenário abre espaço para que a audiência compartilhe seu feedback constantemente, o que possibilita que o conteúdo midiático seja moldado de acordo com as vontades de seus espectadores. Além disso, o público tende a se concentrar naqueles produtos que estão de acordo com o que apreciam, participando ativamente de seu engajamento, podendo até mesmo produzir novos conteúdos com base nele, como artigos, paródias e vídeo ensaios.

Com isso em mente, é possível dialogar sobre outro momento de Inside que aborda o mundo digital na contemporaneidade, a faixa musical intitulada Don´t Wanna Know. Nela, Burnham presume diferentes reações possíveis do público ao seu especial, tanto negativas quanto positivas, no entanto, ao final de cada uma delas deixa bem claro que: “não quer saber”.

Como você está se sentindo? Está gostando do show? Está cansado? Não importa, eu não quero saber Está achando chato? Muito rápido? Muito lento? Estou perguntando, mas não responda, pois não quero saber 12 (BURNHAM, 2021)

Juntamente com essa música, existem outros momentos do filme nos quais Burnham propõe essa quebra com a possibilidade de feedback do público a respeito de seu produto midiático. Um deles acontece aos 27 minutos do filme, em um trecho que o artista reage a outro segmento do próprio Inside e, em seguida, reage à sua reação, fazendo isso por volta de quatro vezes subsequentes. Em cada um desses diferentes takes de reacts o diretor consegue

12 Bo Burnham. Tradução livre da autora de: How are you feeling? Do you like the show?/ Are you tired of it? Never mind, I don’t wanna know/ Are you finding it boring? Too fast? Too slow?/ I’m asking, but don’t answer ’cause I don’t wanna know

se blindar, de certa forma, de qualquer opinião que sua audiência pudesse ter sobre o seu conteúdo, uma vez que já as inseriu em sua produção.

Esse momento de reação ao próprio filme não é o único no qual Burnham incorpora possíveis feedbacks negativos/positivos da audiência a respeito de sua obra, no entanto, o que chama atenção é outro momento do longa, no qual ele pede que ninguém se quer emita um parecer. Por volta do minuto 25, o comediante divaga a respeito da emissão pública de opinião feita pelos indivíduos e como isso seria desnecessário: de maneira bem direta ele pede para que “calem a boca”.

Assim como nos outros momentos supracitados, não é possível identificar quando Burham está sendo ironicamente sincero ou quando não está. Ele concorda com todos os feedbacks negativos que deu sobre si mesmo? Até que ponto o comediante realmente se frustra com o engajamento de seu público a respeito de suas obras? Novamente, temos aqui um paradoxo: o artista tece uma crítica a respeito do impacto da opinião externa tanto sobre os conteúdos, quanto em seus produtores, bem como de sua real utilidade prática. No entanto, é nítido que Inside depende exatamente desse parecer de sua audiência para obter sucesso.

Antecipando diferentes decodificações que o público poderia ter a respeito de seu material, sem ser possível apontar com certeza quando o artista está sendo pós ou meta-ironico, Inside não se propõe de fato a agradar alguém, mas também não exprime ofensas. Assim, mesmo sendo um especial vinculado à Netflix, plataforma conhecida pela produção de conteúdos generalistas que instigam a convergência do público, o longa não se propõe a ser hegemônico, mas sim a satirizar tal modelo.

Considerações Finais

Ao abordar a Cibercultura e os desdobramentos da internet na atualidade, Bo Burnham, em Inside, constrói sua sátira nos moldes humorísticos próprios, principalmente, da geração Z (também incluindo os últimos cinco anos da Y). Utilizando-se, então, da ironia como ferramenta crítica, o comediante produz um humor inteligente dotado de diversas camadas, fazendo com que a obra seja inovadora e se destaque, tanto em meio a suas outras produções próprias, quanto no catálogo da plataforma em que está vinculada.

Em meio às interpretações musicais, trechos falados e referências à cultura pop em geral, o ponto chave para a abordagem crítica de Inside é a sátira que ele faz de si mesmo. Ao levantar diversas reflexões a respeito do mundo digital na contemporaneidade, o filme, ironicamente, leva o público a refletir sobre o próprio especial em questão. Nesse sentido, percebe-se uma autoconsciência exacerbada em cada construção humorística feita por Burnham, não se moldando, consequentemente, às vontades de um grupo específico, sem deixar claro sequer se foi elaborado às vontades do próprio Burham.

Por fim, Inside acabou por se moldar à aceitação de quase a totalidade de seu público, uma vez que alcançou justamente telespectadores engajados que produzem conteúdo e discutem sobre a obra em diversas plataformas presentes na internet. Teria esse feedback positivo sido intencionalmente planejado pelo diretor? Ou o comediante teria, desde o início, assumido um risco, ficando aflito até a data de lançamento de seu produto? Mais uma vez, não é possível inferir.

Referências Bibliográficas

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