Almodóvar, (Neo) Barroco e Imaginário

Cláudia Bavagnoli possui Graduação em Publicidade e Propaganda pela Escola Superior de Propaganda e Marketing (2000), Mestrado em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2002) e, atualmente, trabalha na Universidade Ibirapuera. Tem experiência na área de Comunicação com ênfase em Teoria da Comunicação, atuando, principalmente, nos seguintes temas: Estética Cinematográfica, Barroco, Travesti, Psicanálise, Intertextualidade e Imaginário.

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Há mais de século, o cinema provoca emoções nos espectadores por filmes de gêneros ditos industriais, por escolas revolucionárias como o cinema soviético e posteriormente o novo, ou, ainda, por cineastas que isoladamente desenvolvem estilo próprio. Considerando estes inovadores e os aspectos recorrentes no conjunto de sua produção, destaca-se o cineasta Pedro Almodóvar.

Transgressor desde o primeiro longa, o diretor desloca valores já impregnados na sociedade, como família, religião e sexo, e os subverte em seus filmes. Almodóvar mostra a sociedade:

de una forma cercana, sin miedos, com entereza, y com una representación antimarginal, que hace que lo más inverosímel resulte creíble. (Holguin, 1998, 13).

Apresenta um mundo ressemantizado, no qual a moral e a ética estão subjugadas ao desejo, que explode na tela não só como mola propulsora do comportamento dos personagens, mas, inclusive, na disposição dos cenários, na fotografia, na montagem, no roteiro, na música, no figurino, nas cores… Enfim, em todos os excessos que permeiam sua obra.

Em 1999 Almodóvar lançou Tudo sobre minha mãe. O boom da movida madrileña[1] já havia passado e tais ideais embasaram-no de maneira mais madura. O cineasta que ao longo de seus outros doze filmes saia do underground

das produções independentes e ganhava cada vez mais espaço, com este aglomerou estátuas como o Oscar e o Globo de Ouro na categoria de melhor filme estrangeiro e a Palma de Ouro na de melhor diretor.

Tudo sobre minha mãe é capaz de suscitar certo incômodo no espectador, uma espécie de tensão causada pelo excesso não só de sua estética, mas também de seu tema e da maneira labiríntica na qual é desenvolvido.

A subversão da sociedade clássica burguesa é tematizada com trivialidade – seus personagens, que se recortados do filme pareceriam absurdos, quando inseridos no texto e imbricados com música, cenário e fotografia da estética trabalhada, tecem uma história coesa que, mesmo dialogando com outros textos, significa por si só.

A estética barroca salta aos olhos no filme. Porém, ao aprofundarmos essa idéia percebemos que Tudo sobre minha mãe está calcado num jogo entre a realidade vivida pelos personagens e as obras de ficção que eles têm acesso na trama, criando um jogo realidade X ficção, no qual a ilusão impera e o Registro do Imaginário de Lacan se faz presente.

Segundo textos de Severo Sarduy – ensaísta e romancista cubano que não enclausura o barroco num determinado período da história da cultura e o encontra em diferentes civilizações e épocas, já que o vê como uma atitude generalizada e uma qualidade formal dos objetos que o exprimem -, na sociedade contemporânea pode-se visualizar um neobarroco ou barroco moderno que se apresenta como uma ruptura da homogeneidade, a não disposição de um Logos absoluto, como a “arte da deposição e da discussão”, do descentramento (s/ d, 96). O neobarroco sarduyano transgride as regras da sociedade burguesa, privilegia o uso da linguagem como prazer e não com fim na comunicação. O neobarroco, também de Omar Calabrese (1987), tem a complexidade como dominante, é o excesso, a falta de limites, a desmesura.

Essa estrutura que embasa o neobarroco defendido por tais autores apresenta características como a pulverização de elementos, e, dentre estes, encontramos as citações, as referências a outras obras, os textos dentro de outros textos: a intertextualidade.

Há relação direta entre o barroco e o Registro do Imaginário[2] Lacaniano, que é o lugar do eu, com seus fenômenos de ilusão, captação e engodo (Roudinesco, 1998, 371). O imaginário é, por definição, o local das ilusões do eu, da alienação e da fusão com o corpo da mãe, onde a imagem fabulada do sujeito atuara sempre como suplente para impedir a falta. O Imaginário “não cessa de se escrever”, é o campo do que é necessário e faz sentido.

Este artigo revelará alguns jogos propostos pelo cineasta manchego que, por não manter uma oposição binária “realidade versos ficção”, e, sim, por organizar as situações de modo que esses dois elementos apareçam continuamente imbricados, engendrando certa tensão, faz com que a narrativa ganhe movimento: há um encaixe entre a realidade e a ficção que se relacionam num tipo de espelhamento e sem se mesclar, originando uma espécie de liga encontrada na estética neobarroca, já que além de excessiva mostra-se transgressora.

Essa proliferação de elementos que se agregam superando uma oposição clássica e excludente, proporcionando esse jogo tensivo como já dito, é notada nas citações dos textos que ocorrem ao longo do filme, na sua estética e na elaboração de suas personagens. Neste artigo desenvolveremos apenas as citações presentes em Tudo sobre minha mãe.

O jogo dos Espelhos

A verdade, seja lá qual for, só é acessível pela mentira, pela trapaça, pela invenção e pela imaginação da arte… (Ítalo Calvino)

Intertextualidade é um conceito introduzido no Ocidente por Julia Kristeva a partir de leituras que fez sobre as idéias de dialogismo e ambivalência, encontradas na obra do russo Mikhail Bakhtin. Intertextualidade é um processo de incorporação de um texto em outro – construindo, produzindo ou transformando o sentido do texto incorporante.

Porém, o neobarroco de Calebrese diz que a intertextualidade distorce o sentido original do texto incorporado, ressemantiza-o de acordo com o que o texto incorporante pede. Severo Sarduy, em La estrategia, continua:

La intertextualidad no es una mera acumulación de referencias externas, sino que es un trabajo interno de re- escritura, de readaptación y, como le gustaría decir al autor, de “tatuaje”. (apud Varderi, s/d, 19)

Almodóvar, referindo-se a este mesmo procedimento, faz uma declaração que confirma fielmente as propostas de Calabrese e Sarduy:

Cuando una película sale en una película mía no es un homenaje, es un robo. Lo robo y hago que forme parte de la historia que he escrito, por eso funciona de un modo muy activo, mientras que un homenaje siempre es una cosa pasiva. (Almodóvar, 1995, 61)

Tudo sobre minha mãe traz diversas citações, fazendo referências a outros filmes, peças e textos de teatro e intelectuais. Revelados durante a trama, alguns desenvolvem profundos diálogos com o texto – aparecendo de “modo muy activo“; outros são apenas citados, como homenagens vistas nas seguintes passagens: Manuela conta que atuou com Lola em Cabaré para Intelectuais, feito a partir de textos escritos por Boris Vian; o aspecto de Agrado após sofrer a agressão em “el Campo” fez-lhe lembrar O Homem Elefante de David Linch; a presença de três mulheres sozinhas no apartamento de Manuela recorda a Agrado Como agarrar um milionário de Jean Negulesco; o presente de aniversário que Manuela dá ao filho, Música para Camaleões, de Truman Capote[3], apresenta em seu prefácio, lido por Manuela a Esteban, a condição do escritor diante de seu dom e látego de escrever.

Almodóvar, ao final deste filme, dedica-o à mãe e às atrizes Gena Rowland de Opening Night, Bette Davis de All about Eve e Romy Schneider de L’Important c’est d’aimer:

Para Bette Davis, Gena Rowland e Romy Schneider, para todas as atrizes que interpretaram atrizes, para todas as mulheres que representam, para os homens que representam e se tornam mulheres, para todos aqueles que querem ser mães e para minha mãe.

Explica que, inicialmente, sua idéia era fazer um filme sobre a capacidade de atuação de não atores; qualidade esta que notou nas mulheres de sua família durante a infância em La Mancha – elas fingiam e resolviam os problemas, muitas vezes em silêncio, evitando assim tragédias.

Contra ese machismo manchego que yo recuerdo (tal vez agigantado) de mi niñez, las mujeres fingían, mentían, ocultaban y de ese modo permitían que la vida fluyera y se desarrollara, sin que los hombres se enteraran ni la obstruyeran. (Además de vital era espectacular. El primer espectáculo que vi fue el de varias mujeres hablando, en los patios). (apud Holguín, 1998, 296)

O cineasta manchego, partindo das próprias experiências vividas, isto é, da sua realidade, cria um filme fictício, no qual, em inusitadas situações, suas personagens se envolvem numa espécie de labirinto no qual as suas realidades e os textos de ficção a que têm acesso imbricam-se constantemente.

Tudo sobre minha mãe dialoga com o real vivido pelo diretor, e, também, com três outros textos que de “modo muy activo” são citados: All about Eve, Um bonde chamado Desejo e Haciendo Lorca. Tais textos abordam o fingimento feminino, seja por meio da profissão de atriz ou como meio para a busca da felicidade.

A urdidura desse emaranhado almodovariano entrelaça a realidade vivida pelo diretor, o fictício assistido por ele e por seus personagens (textos intertextualizados), com a própria narrativa fílmica proposta.

Os intertextos juntam seus fios com os fios de Tudo sobre minha mãe, tecendo assim uma nova teia na qual as situações vividas pelas personagens almodovarianas também necessitam de fingimento e dissimulação para sobreviverem. Analisemos cada um dos intertextos explicitados:

All about Eve

Já no título Tudo sobre minha mãe nota-se referência ao filme All About Eve, de Joseph L. Mankiewicz (1950). Nesse clássico do cinema americano, a aspirante a atriz Eve Harrington (Anne Baxter) aproxima-se da famosa estrela de teatro Margot Channing (Bette Davis), conquistando aos poucos sua confiança até ser contratada para trabalhar como sua assistente. Simulando inocência e insegurança, Eve trai sua protetora roubando-lhe o papel principal numa grande produção.

Logo no início de Tudo sobre minha mãe, quando Esteban e Manuela assistem ao filme All about Eve durante o jantar, Esteban explica à mãe que a tradução do título para o espanhol, Eva al desnudo, está errada, mas Manuela diz que Todo sobre Eva soa estranho. Esteban, que está escrevendo um texto sobre a própria mãe para um concurso, intitula-o “Todo sobre mi madre”, dizendo a Manuela que é um futuro Prêmio Pulitzer.

Nesta passagem o espectador é incitado a traçar paralelos entre Eve e Manuela, que serão aprofundados no camarim de Huma Rojo, após Manuela substitur Nina no papel de Stella, enquanto a atriz estava impossibilitada de atuar por causa das drogas. Ao saber do ocorrido, Nina se irrita:

NINA. ¡Aquí llega la mosquita muerta!…

MANUELA (extrañada). ¿Qué pasa?

NINA. ¿Lo tenías todo planeado, eh?, ¡hija puta!…

HUMA. ¡Nina, no insultes!

NINA. ¡Eres igualita que Eva Harrington! ¡Te aprendiste el texto de memoria a propósito! Es imposible aprendérselo sólo oyéndolo por los altavoces, ¡coño! ¿Por quién me tomas, por gilipollas?

Mas Almodóvar, tomando para si a história de All about Eve, subverte a relação que emerge entre atriz e assistente: Huma e Manuela tornam-se amigas.

No Press Book do filme o cineasta relata a semelhança entre o pátio de sua cidade natal e o camarim – lugar onde Eve, por meio de mentiras, conquistou a confiança e o papel de Margot e onde Manuela, por ser amiga, foi xingada por supostamente agir como Eve:

Mujeres que se confiesan y se mienten en el camerino de un teatro, convertido en sancta santorum del universo femenino (equivale al patio de mi niñez. Tres o cuatro mujeres, hablando, significan para mí el origen de la vida, pero también el origen de la ficción, y de la narración).

Huma Rojo, ao explicar a origem de seu nome artístico, diz ter homenageado Bette Davis, que interpreta a Margot em All about Eve. Confessa ter começado a fumar para imitar a atriz norte-americana, e, por isso, a escolha do nome Huma que traz alusão à fumaça, mas também à sua personalidade, frágil e esvoaçante como sua personagem Blanche Dubois.

A sequência de All about Eve intertextualizada por Almodóvar por meio da televisão de Manuela é aquela em que atriz e admiradora se conhecem: Margot, que despreza “caçadores de autógrafos”, recebe Eve, uma simples fã, em seu camarim. Em Tudo sobre minha mãe Esteban morre atropelado justamente quando busca um autógrafo de Huma. Se no filme americano a atriz repudia seus fãs e, quando os conhece, trata-os com falsidade, fingindo-se encantada, no filme espanhol também essa relação é subvertida: Huma Rojo lembra-se de Esteban com o caderninho de notas esperando um autógrafo debaixo de chuva quando já estava no táxi com Nina. Numa tentativa de reviver a situação, escreve uma carta autografada e a entrega à mãe de seu póstumo fã, mostrando que para ela os fãs são sim pessoas e não “animais que andam em bando feito coiotes”.

A streetcar named desire

A peça Um bonde chamado Desejo[4], de Tennessee Williams (A streetcar named desire, 1947), retrata a ida da conturbada Blanche Dubois para New Orleans. Depois de o marido cometer suicídio, envergonhado por ter sido pego numa relação homossexual, de ter hipotecado e perdido a propriedade familiar, e de ter sido demitida do colégio onde lecionava acusada de tentar seduzir um aluno, Blanche, sem ter para onde ir, vai morar com a irmã e o cunhado: Stella e Stanley Kowalsky. Frágil e fantasiosa, Blanche constantemente entra em atrito com o bruto Stanley, que descobre que ela se prostituiu num hotel de baixo nível. Ele a violenta na noite em que Stella dá à luz. Blanche termina sendo levada para um manicômio.

A versão intertextualizada por Almodóvar traz um novo final para Stella. Se Tennessee propôs, no momento em que Blanche é levada ao manicômio, que Stella, desolada, fosse eroticamente apaziguada por Kowalsky, deixando que sua condição permanecesse a mesma, Almodóvar, transgressor, ressemantiza e dá a Stella uma postura revolucionária: afastando bruscamente o marido que tenta reconfortá-la com carícias, abandona-o e vai embora com o filho nos braços.

STELLA. ¡No me toques!… no vuelvas a tocarme, ¡hijo de puta! (le murmura al niño que lleva en brazos). No volveré a esta casa nunca más. ¡Nunca!(Estrecha al niño contra su pecho. Y se va, despacio.)

Com relação a este intertexto neobarroco, já que ressemantizado, além da citação evidente, pois é representado dentro do filme pelos próprios personagens de Tudo sobre minha mãe, pode-se ainda encontrar diálogos entre os personagens de Um bonde chamado desejo e seus respectivos atores: os personagens do filme do cineasta manchego.

Manuela, que interpretara Stella no passado e agora na substituição de Nina, tem a própria vida refletida na desta personagem. Sua história começa do ponto em que Um bonde chamado desejo termina: com o abandono da casa e do suposto marido em busca de uma melhora de vida para si e para o filho. Manuela identifica-se com Stella.

Mas, assim como Blanche Dubois, Manoela se sente por ter um marido com um comportamento sexual um tanto controverso.

Huma Rojo, por sua vez, além de se inspirar na atriz Bette Davis, age como a personagem Blanche Dubois. Guiada pelo sensível, não tem vergonha de expressar a necessidade que tem dos outros, chegando a tomar para si a frase de Blanche quando ajudada por Manuela, quem acabara de conhecer: “Gracias. Quienquiera que seas, siempre he confiado en la bondad de los desconocidos”.

Há ainda certo diálogo entre Nina e Kowalsky: ambos extremamente egoístas, rudes e preocupados apenas com seus próprios vícios: drogas e jogo, respectivamente.

Haciendo Lorca: Bodas de Sangue e Yerma

Quando Manuela foge com Esteban de Barcelona, Huma Rojo está ensaiando uma homenagem a Federico García Lorca (1898-1936), Haciendo Lorca, de Lluís Pasqual, feita a partir de passagens extraídas de Bodas de Sangue e Yerma, ambas de Lorca.

Bodas de Sangue (Bodas de sangre, 1933) é uma peça teatral que fala do amor e da dor de seguí-lo ou ignorá-lo. Uma jovem abandona seu marido na noite de suas bodas para fugir com seu ex-noivo, Leonardo, único personagem que é nomeado no enredo e que também é casado. Uma história de ciúmes e morte baseada em acontecimentos reais entre camponeses da espanhola Andaluzia.

Yerma (1934) relata a trajetória de uma mulher sem filhos, casada com um homem que só compreende a necessidade do êxito financeiro. A provável esterilidade de Yerma marca sua tragédia que, apesar de unida pelo nome a terra, está condenada pela fisiologia e pela honra a viver afastada dos processos reprodutivos da natureza. A maternidade representa para esta mulher o destino total, a última e definitiva finalidade do sexo feminino que não consegue alcançar.

Almodóvar intertextualiza um texto de Lluís Pasqual, texto este feito de recortes de peças de Lorca, que nesta passagem específica diz respeito ao sentimento perante a perda de um filho, sofrimento que Yerma não pode sentir já que sua dor é por não ter filhos, mas que a “madre” de Bodas de Sangue sentirá um pouco mais à frente. A subversão aqui é em abismo, uma vez que Pasqual a faz para montar seu texto e Almodóvar também, ao recortar este segundo texto de modo que sincronize num perfeito diálogo com seu filme.

O diálogo[5] é tão bem realizado que se pode pensar que o texto encenado por Huma fora escrito justamente para homenagear Manuela, pois seu filho ficara com o corpo estendido no meio da rua após o atropelamento. O trecho que Huma ensaia no teatro é o seguinte:

HUMA. Hay gente que piensa que los hijos son cosa de un día. Pero se tarda mucho. Mucho. Por eso es tan terrible ver la sangre de un hijo derramada por el suelo… Una fuente que corre durante un minuto y a nosotras nos ha costado años. Cuando yo descubrí a mi hijo, estaba tumbado en mitad de la calle. Me mojé las manos de sangre y me las lamí con la lengua. Porque era mía. Los animales los lamen, ¿verdad? A mí no me da asco de mi hijo. Tú no sabes lo que es eso. En una custodia de cristal y topacios pondría yo la tierra empapada por su sangre [6].

Intertextos: da ficção para a realidade

As referências intertextuais atravessam Tudo sobre minha mãe mostrando ao espectador sua ficcionalidade, seu artifício, o modo como está construído, enfim, tudo aquilo que o faz ser auto-reflexivo. Esse é um modo metaficcional que Almodóvar utiliza para narrar sua história.

A metaficção apresenta vários recursos para se fazer presente: a ficção dentro da ficção ou mise en abyme; o desdobramento do texto em seu próprio comentário crítico ou nas chaves do seu desciframento; a explicação dos processos de edificação dos mundos representados; a invenção de personagens por outros personagens no interior da historia; o narcisismo como determinante neurótico da caracterização desses mesmos personagens.

Metaficção é o nome dado à ficção que expõe sua convencionalidade, explicita sua condição de artifício, explorando, dessa forma, uma relação problemática entre realidade e ficção. Patricia Waugh, em sua obra intitulada Metafiction, explica esse mecanismo e afirma que não é um subgênero, e sim uma tendência que opera por meio do exagero de tensões e oposições inerentes a toda obra. Para Waugh, a metaficção se interessa pelo caráter ficcional aplicado ao produto narrativo, explorando as relações entre seus distintos elementos e sua complicada relação com o real (Waugh, 1984).

Há um caráter narcisista da metaficção: ela retorna uma história sobre si mesma, mostrando-se especular. Assim como Narciso, enamora-se da própria imagem refletida: é o processo feito visível por meio dessa reflexão.

É possível entender que esse “voltar sobre si” conceba visibilidade à verdade mais profunda ou, como acredita Zatlin ao falar sobre o metadrama, torna possível “descubrir la verdad por medio de la ficción” (1988, 125). Essa ficção, irreal, leva o personagem a se confrontar com o Registro do Imaginário Lacaniano: como no Estádio do Espelho, é através de um reflexo de si, de uma imagem ficcional que se constitui o Eu.

Almodóvar elabora a relação entre vida real e ficção a tal ponto que esta última permite a transformação da primeira. Neste filme, o ato de escrever, dramatizar ou inventar, permite aos personagens adquirir uma identidade.

As relações de espelhamento entre o texto e os intertextos, assim como entre as personagens (Manuela, Huma e Nina) e suas respectivas personagens (Stella-Eve, Blanche-Margot e Kowalky), ilustram a metaficção narcisista, que engendra o confronto entre realidade e ficção dentro da trama.

A coexistência da realidade e ficção em constante tensão, acrescida da pluralidade de citações de textos subvertidos em função da significação do texto incorporante, acarreta a Tudo sobre minha mãe um caráter labiríntico neobarroco.

Reflexos

Na obra de Almodóvar convergem a vanguarda, o classicismo e o cinema de todos os gêneros. Um cinema barroco, que junta num mesmo ímpeto as grandes aventuras artísticas do século. É isso que o torna apaixonante. (Frederic Strauss)

O cineasta manchego tece a trama de Tudo sobre minha mãe a partir de paradoxos e de excessos disseminados por todo o texto. Constantemente estruturado numa elaboração jocosa na qual a ambiguidade se mostra presente em diferentes recortes da mesma cena simultaneamente, Almodóvar cria uma cadeia de signos que suscita um desconforto, uma inquietação já que, com naturalidade, transgride as leis de uma sociedade centralizada, clássica e supostamente racional.

Ao invés de apresentar uma oposição binária e moralista, Almodóvar imbrica elementos dissonantes sempre num jogo onde a realidade e a ficção aparecem, o que engendra uma tensão responsável pela mobilização do filme. Essa engrenagem neobarroca – uma vez que oferece tal proliferação de elementos que se agregam – é notada nas citações dos três textos, na estética do filme e na elaboração de suas personagens.

As citações realizadas por Almodóvar transgridem o valor primeiro dos textos, ignorando as passivas homenagens em prol de uma resignificação em seu filme. As citações de All about Eve, A streetcar named desire, e Haciendo Lorca, ganham vida em Tudo sobre minha mãe ao entrelaçarem as narrativas entre si e ecoarem durante todo o texto almodovariano, reafirmando a idéia do diretor e não apenas aparecendo como referências ou homenagens. Essas citações neobarrocas – já que transgressoras do original – possibilitam um jogo de espelhamento com a trama espanhola num narcisismo que remete ao Registro do Imaginário Lacaniano e suas ilusões de completude, pois é por meio dessa intertextualidade que se dá o jogo de reflexos entre as personagens e as narrativas, num mise en abyme infinito.

O neobarroco sarduyano que transgride as regras da sociedade burguesa, que privilegia o uso da linguagem como prazer e não com fim na comunicação, o neobarroco calabreseano no qual a complexidade é dominante, o neobarroco do excesso, da falta de limites, da desmesura… Esse é o neobarroco almodovariano, aqui apresentado pela tensão que provém do lúdico realidade versus ficção, opostos que labirinticamente suplementam-se em espirais de gozo, libertando-se dos círculos redutores do classicismo racional.

Barroco em sua ação de pesar, em sua queda, em sua linguagem afetada, às vezes estridente, multicor e caótica, que metaforiza a impugnação da entidade logocêntrica que até então nos estruturava em sua distância e autoridade; barroco que recusa toda instauração, que metaforiza a ordem discutida, o deus julgado, a lei transgredida. Barroco da Revolução. (Sarduy, 1979, 178).

Bibliografia

ALMODÓVAR, Pedro. Página Oficial. (Online). Disponível na internet: http://clubcultura.com/clubcine/clubcineastas/almodovar/

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CALABRESE, Omar. A idade neobarroca. Lisboa, Edições 70, 1987.

HOLGUIN, Antonio. Pedro Almodóvar. Madrid: Ediciones Cátedra, 1998.

HUTCHEON, Linda. Narcissistic Narrative. The Metafictional Paradox. Waterloo/Ontario, Wilfried Laurier University Press, 1984.

LACAN, Jacques. Algumas reflexões sobre o espelho. São Paulo, Clínica Freudiana, 1985.

LOPES, Edward. Discurso Literário e Dialogismo em Bakhtin. in BARROS, D. L. P., & FIORIN, J. L. (orgs.) Dialogismo, Polifonia, Intertextualidade: em torno de Bakhtin. São Paulo, EDUSP, 1999.

PEÑUELA CAÑIZAL, Eduardo. A citação em abismo: Buñuel e Almodóvar. In SOCINE II e III(org.). São Paulo, Annablume, 2000.

PHYLLIS Zatlin. El (meta) teatralismo de los nuevos realistas. La cultura española en el posfranquismo: Diez años de cine, cultura y literatura (1975-1985). Ed. Samuel Amell y Salvador García Castañeda. Madrid: Playor, 1988. 125-31

ROUDINESCO, Elisabeth. Dicionário de Psicanálise. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1998.

SARDUY, Severo. Barroco. Lisboa, Veja, s. d.

_____________. Escritos sobre um corpo. São Paulo, Perspectiva, 1979.

VARDERI, Alejandro. Severo Sarduy e Pedro Almodóvar. Madri, Pliegos, s/da.

WAUGH, Patricia. Metafiction. The theory and Practice of Self-Conscious Fiction. London, New York, Methuen, 1984.


[1] Movida Madrileña eclodiu entre o final dos anos 70 e início dos 80 levando os marginalizados ao centro de Madri que, por meio da arte e de outras manifestações, divulgaram suas idéias pretendendo mudar a moral imposta pelo franquismo (1939-1976). Almodóvar, envolvidíssimo, teve seu segundo longa, Laberinto de Pasiones (1982), elegido como ícone do movimento.

[2] Lacan nomeou a estrutura psíquica, formada pelas instâncias Real, Simbólico e Imaginário, de RSI. Na constituição do sujeito e na teoria psicanalítica estas inbstâncias encontram-se intrinsecamente ligadas. Para ilustrá-las, pode-se formar a imagemdo do Nó Borromeu, atado de tal forma que, quando uma de suas linhas se rompe, o nó se desfaz: os 3 aros se cruzam, se tocam e não podem se separar, ou seja, eles apresentam pontos de interseção, bastando cortar qualquer uma das três cordas para que todas sejam liberadas – elas são equivalentes entre si. O registro do Imaginário, termo correlato da expressão lacaniana Estádio de Espelho – antecipação do psicológico ao biológico da criança por meio de uma situação na qual esta, entre 6 e 18 meses, se identifica com a imagem do semelhante e com a sua própria através do espelho, estruturando seu próprio Eu – diz respeito ao lugar do Eu por excelência.

[3] Truman Capote (1924-1984), escritor ídolo do ícone da Pop Art Andy Warhol, tem seu mais destacado livro, A sangue frio, levado às telas de cinema por Richard Brooks. Truman declarou certa vez “Sou homossexual, sou drogado, sou alcoólatra. Sou um gênio”, frase que Almodóvar parodia da seguinte maneira: “No soy ni drogadicto, ni homossexual, ni genio. Todo há sido una pose”.

[4] A primeira montagem de Um Bonde Chamado Desejo foi dirigida em Nova York por Elia Kazan em 1947, com Marlon Brando como Stanley e Jessica Tandy como Blanche. Dois anos depois, Laurence Olivier encenou a peça em Londres, com Vivien Leigh. Quando Kazan dirigiu a versão cinematográfica em 1951, chamou Brando e Leigh para os papéis principais. O pôster de divulgação do filme é esse reproduzido acima.

[5] Cabe ainda acrescentar que esta citação dialoga também com o que se passou com o próprio Federico García Lorca, que empapou a terra com o seu sangue ao ser assassinado logo no início da Guerra Civil Espanhola, em 1936.

[6] Grande parte da citação pertence a Yerma, mas o que está destacada em itálico, pertence a Bodas de Sangue.

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Este post tem 2 comentários

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    TRABALHO COM ALMODÓVAR E SAURA EM MIONHAS AULAS DE ESPANHOL E FOI BASTANTE ÚTIL SEU ARTIGO. REALMENTE “TODO SOBRE MI MADRE” E UM FANTÁSTICO MATERIAL DE ANÁLISE. TRABALHO A QUESTÃO DA MULHER E DA MÃE E DAS VÁRIAS MÃES QUE APARECEM NO FILME, INCLUSIVE A PERSONAGEM AGRADO QUE É A MÃE TODAS AS MULHERES E MUITO BEM RESOLVIDA COM SUA CONDIÇÃO DE TRAVESTI, EXATAMENTE QUEM PODERIA TER OS MAIORES CONFLITOS EM UMA SOCIEDADE CATÓLICA COMO A ESPANHOLA. TAMBÉM TRABALHO AS CORES E O JOGO DE CÂMERA ABERTA E INVERTIDA PARA DAR OLHOS ÀS PERSONAGENS, BEM COMO A INTERTEXTUALIDADE E JOGO DE ESCURO COMO CONVITE A OUTRO ESPAÇO.

    ESPERO PODER CONTAR COM MAIS TEXTOS MARAVILHOSOS SOBRE O CINEMA.

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