ARTIGO | A Cor da Romã e o paradoxo visual

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Por Heloisa da Silva Panuci

Graduada em Bacharelado em Artes Visuais pela Universidade Federal do Paraná (UFPR)

Resumo: A partir do filme A Cor da Romã (1969), do cineasta soviético Sergei Parajanov, o artigo dispõe do emprego dos recursos visuais para levantar questões de teorias da imagem e da linguagem. Articulam-se os teóricos Georges Didi-Huberman e Roland Barthes como locutores da análise, a defender A Cor da Romã (1969) como exemplo de produção artística voltada à multiplicidade semântico-simbólica, e como produção visual paradoxal por excelência.

Palavras-chave: A Cor da Romã. Sergei Parajanov. Didi-Huberman. Roland Barthes. Imagem. Signo.

         O sumo vermelho das romãs, que se converte em uma mancha sanguínea sob um punhal. Peixes se debatendo junto a ossos curvos e inertes. Letras e raízes. Imagens de morte e vida, ícones cristãos e o mundo natural. Sergei Parajanov introduz A Cor da Romã (1969) com aproximações e contrastes visuais, a repercutir implicações semânticas. O filme preconiza um tratado sobre a memória pessoal do Ashugh (dentro da tradição anatoliana, é um tipo de trovador-cantor) armênio Sayat Nova (1712-1795), a gestar múltiplas dimensões das imagens expostas: a seleção de signos que habitam a imaginação coletiva coeva à obra, a enredar uma perspectiva íntima e não-linear do tempo de vida do poeta. Ainda, a partir da construção de uma subjetividade de Sayat Nova (1712-1795), propõe-se a remontagem e exposição do imaginário armênio no século XVIII.

         Logo de início, em um dos poucos momentos verbais do filme, narra-se o livro bíblico de Gênesis 1 – “Deus criou o céu e a terra; no sexto dia, criou o homem a partir da terra, em uma relação de imagem e semelhança”. Na Bíblia, a origem é um fenômeno de separação. Criam-se parâmetros; algo passa a ser perceptível e de fato existir quando também se estabelece um oposto que o distingue. Não obstante o termo imagem é diretamente citado, e o é na introdução da humanidade. Distingue-se o sempiterno divino como a imagem, e a criação do humano como semelhança. O divino já era absoluto, existia antes mesmo da origem, enquanto o humano é criado, produzido. Parajanov produz e posiciona a dualidade cristã como um eixo narrativo da vida de Sayat Nova, contrastada pela paixão libidinosa e a austeridade monástica. Contudo, a pretensão de referenciar especificamente a vida do poeta em filme, engendra o visual como o dualismo por excelência, reforçado pelo predomínio da imagem perante o sonoro.

Ninguém a experimenta [a morte] melhor do que o sonhador, sem dúvida: seu ponto de vista é, teoricamente – o que quer dizer, aqui: impossivelmente –, o melhor posto para observar aquilo de que uma imagem, de que uma semelhança são capazes. O sonho não se tece inteiramente por um interminável responso de semelhanças em que imagens de desejo e imagens de morte, desejos da imagem e morte da imagem participam da mesma enigmática coreografia? (Didi-Huberman, p. 31, 2011)

         A escolha da vida de Sayat Nova como mote, encontra possibilidades de ordem pessoal por Parajanov – embora fosse georgiano, ambos os pais do cineasta eram armênios. Sendo o contraste “morte e vida” uma necessidade narrativa em A Cor da Romã, a fala do diretor de que “nasceu na Geórgia, trabalhou na Ucrânia e morreria na Armênia” (Holloway, 1996) reflete neste a importância íntima do país; que nascer é algo impositivo, enquanto ativamente escolher onde morrer reflete o acúmulo de uma vida. Além disso, é possível considerar a insistência de temas culturais e religiosos armênios no contexto da escalada do realismo socialista na cinematografia e as consequentes censuras a obras disruptivas estilisticamente. A Cor da Romã foi, inclusive, readaptada e impedida de usar o nome Sayat Nova como título, por não “educar” devidamente o público a respeito do Ashugh Armênio. Escolher a Armênia como destino final da própria obra e existência – considerando a exaltação por Parajanov da histórica resistência Armênia contra a perseguição étnica, religiosa e política – é de tom simbólico em si.

         Até este ponto, o presente artigo parte do pressuposto de que a representação é uma forma do autor reeditar e transpor imagens da própria experiência, consciente ou inconscientemente. Produzir – no caso, dirigir um filme – é um ato consciente de ordenamento de uma narrativa, defende não exclusivamente uma fidelidade a um mote, como também expõe o entorno de quem o produz. Desde a vontade de conceber à concepção em si, o fazer artístico expõe pretensões. Em meio aos trechos literários cravados em A Cor da Romã, a frase “muitos vieram antes de mim, e vagamente conheceram este mundo incrível. Eles se extinguiram e expiraram antes de mim.” se alia à transcendência semântica amplamente exposta no filme.

         Nada existe sozinho no mundo. Rememorar uma romã, inserida na afetividade biográfica subjetiva de Nova-Parajanov e cultural-contextual da Armênia, ainda assim não a desloca das acepções em que são interpretadas em um distinto contexto daquele em que se propõe representar. A romã, fruta símbolo da Armênia e – de forma ampla no Ocidente – ícone de fertilidade, é empregue no filme como alegoria regional, assim como do que é carnal na vida pessoal de Sayat Nova. Contudo, sendo o filme exposto para um público amplo dentro e fora da União Soviética, a extensa construção simbólica fica à mercê do espectador. Em uma produção primordialmente visual, como abordar uma miríade de implicações semânticas? O colunista Gregory Smalley (2016), em seu blog pessoal 366 Weird Movies, descreve a obra como “cada imagem cuidadosamente composta é atrelada a um significado, mas a chave para as interpretar está perdida” e que “o talento individual [de Parajanov] e o fundo cultural informam e alimentam um ao outro”.

         Assim, A Cor da Romã encarna outro paradoxo: o íntimo e memorial filme de Parajanov pode ser posto à luz da antítese entre a morte do autor e o nascimento do leitor, conceitualizada por Roland Barthes. Em O rumor da língua (1984), Barthes delimita que o autor é um fruto da sociedade moderna, na medida em que se justifica o sentido de uma obra (e a própria necessidade deste) a partir do entendimento de quem é a autoria. Torna-se uma questão de decifrar o que está disposto, a fim de tomar um sentido único, teológico, sob a vontade de um Autor-Deus. Contudo, Barthes elabora a retomada da multiplicidade de sentidos de uma obra – no caso da análise literária. Diz que “o texto é um tecido de citações, oriundas dos mil focos da cultura” (Barthes, 2004, p. 62), sendo múltiplo para além da existência do autor em si, o texto não se decifra, desfia-se. Ainda que Barthes trate especificamente da literatura, objeto de estudo do semiólogo francês, atravessa outras concepções de narrativa que habitam a vizinhança. Cita, inclusive, as tragédias gregas – gênero teatral – nas quais há a constante tomada de um único sentido pelos personagens, em um texto construído sobre ambiguidades. A tragédia seria o descompasso entre o leitor, que observa e capta a multiplicidade semântica, e o personagem, construído pelo autor de forma a ironizar a cega unilateralidade de sentido. O texto não existiria como proposição caso o leitor não fosse posto em tal lugar de abrangência. Desdobrada assim no teatro e na cinematografia, não é estranho analisar obras em que esse dinamismo ocorre sob os olhos de um espectador plural, não necessariamente selecionado pela capacidade de interpretar “corretamente” o que está disposto. Mesmo que seja positivo à expectativa de A Cor da Romã, não seria mandatório um profundo conhecimento sobre a tradição armênia, a vida de Sayat Nova ou a intimidade de Parajanov.

         Tal como disposto por Smalley, sim, interpreto que a retroalimentação entre autor e obra é uma premissa basilar em A Cor da Romã. Vejo como raiz de como o filme se propõe da forma que é. Contudo, a montagem do filme não exige uma chave de fato; essa é uma sensação que parte do vício narrativo do espectador. A disposição de tableaux vivants (takes em que os elementos apresentam certa estaticidade intencional, a fim de se assemelhar ao pictórico) dizem respeito à abertura a uma não-resposta. Como disposto anteriormente, o ver é paradoxal. Georges Didi-Huberman, no capítulo A inevitável cisão do ver, presente na obra O que vemos, o que nos olha, de 2010, logo atesta “a inevitável modalidade do visível: inelutável e paradoxal, paradoxal porque é inelutável” (Didi-Huberman, 2010, p. 29). Parte de um trecho de Ulysses (1920), do escritor irlandês James Joyce, em que se dispõe o visível como uma relação de índice e fundo, aparecimentos e desaparecimentos, ver e perda. Os tableaux vivants de Parajanov são dispostos de forma análoga às iluminuras medievais armênias, fitando um fundo de multiplicidade invisível que, paradoxalmente, é inerente ao que é visual. Ainda, com o uso do termo “desaparecer”, Didi-Huberman (2013) remonta a outro aspecto da própria relação com a imagem enquanto objeto de estudo: o anacronismo. De apreço Warburgiano, para o estudioso a imagem “sobrevive”. O lidar com a imagem permite uma aproximação e reedição de imagens-símbolos de diferentes momentos da historiografia (melhor: os que escapam da historiografia, na medida em que esta é uma narrativa linear). Parajanov sobrevive imagens, deslocadas do todo de seus contextos, numa edição que compõe um tecido, não apenas uma linha. A Cor da Romã expõe o literal, o visual enquanto ferida aberta e evidente, considerando aquilo que se embrenha na multiplicidade da imagem.

REFERÊNCIAS:

BARTHES, Roland. O rumor da língua. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

COR da Romã. Direção: Sergei Parajanov. Produção: Armenfilm. Nova Iorque: Janus Films, 2014. 1 DVD (79 min.)

DIDI-HUBERMAN, Georges. De semelhança a semelhança. Alea, v. 13, n. 1, p. 26-51, jan./jun. 2011.

DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Editora 34, 2010.

DIDI-HUBERMAN, Georges. A imagem sobrevivente: História da arte e o tempo dos fantasmas segundo Aby Warburg. Rio de Janeiro: Contraponto. 2013.

HOLLOWAY, Ron. Sergei Parajanov:Interview with Ron Holloway. Kinema. 1996. Disponível em: https://openjournals.uwaterloo.ca/index.php/kinema/article/view/834/758. Data de acesso: 25 jan. 2025.

SMALLEY, Gregory. 238.The color of pomegranates  (1969). 11 de maio de 2016. Disponível em: http://366weirdmovies.com/the-color-of-pomegranates-1969/. Data de acesso: 29 jan. 2025.

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