Cabrera e o conceito-imagem: possibilidades de abordagem do audiovisual

Lázaro Barbosa *

Introdução

Desde que o cinema se instituiu enquanto instituição[1] e linguagem dotada de códigos e convenções específicos, filósofos diversos consideraram o poder fascinante da imagem cinematográfica. Dentre os mais conhecidos, podemos lembrar Walter Benjamin (1987), da Escola de Frankfurt, que escreveu sobre o potencial do cinema enquanto ferramenta com propósitos políticos; Gilles Deleuze, que, a partir de C. S. Peirce e Henri Bergson, elaborou uma análise do cinema enquanto forma de pensamento, ao mesmo tempo que buscou uma alternativa às abordagens de cunho estruturalista, tão em voga em meados do século XX (DELEUZE, 1985); e Slavoj Žižek, que traçou interlúdios entre cinema, filosofia e psicanálise, seja em obras específicas, seja ao longo de textos diversos (ŽIŽEK, 1992; ŽIŽEK, 2003, passim). Suas obras despertaram o interesse de estudiosos variados nos campos da filosofia e do cinema, em parte pela originalidade de suas reflexões, em parte pelos debates que provocam. Mais ainda, as contribuições da filosofia não se restringiram à instituição cinematográfica, abrangendo também o audiovisual em outras formas – a exemplo de Douglas Kellner, que elaborou análises dos videoclipes da cantora Madonna e da série de desenho animado Beavis and Butt-Head (KELLNER, 2003).

No entanto, há um traço comum a esses pensadores, apesar das divergências teóricas e metodológicas. Exceto talvez por Deleuze, que se preocupou, em sua atividade filosófica, em destacar o cinema enquanto forma de pensamento (tão válida quanto a filosofia e a ciência), há uma tendência generalizada em submeter a análise de filmes aos conceitos filosóficos. É verdade que, dada a vastidão de áreas da filosofia e da produção cinematográfica, sempre há aqueles estudos que nos prendem por seu caráter insólito, invocando pensadores estranhos ao mainstream filosófico e cinematográfico, buscando análises em filmes desconhecidos do grande público ou assaltando nossa curiosidade pelos confrontos que empreendem entre cineastas e filósofos já conhecidos. Contudo, em todos esses casos, a tendência principal é assistir a filmes com lentes conceituais emprestadas à filosofia, em vez de confrontá-los entre si. Se se reconhece no cinema, por um lado, a capacidade de suscitar problemas filosóficos, existe por outro lado o perigo de se empreender análises do filme sem problematizar o conceito filosófico. O cinema permanece, dessa forma, submisso ao olhar do filósofo ou do comentador especializado.

Nesse contexto, o filósofo argentino Julio Cabrera procurou uma alternativa: confrontar o cinema e a filosofia a partir de problemas, e mesmo de considerar a filosofia a partir de imagens, não simplesmente do texto escrito, que é a forma tradicional de exposição na filosofia. Para ele, a produção de conceitos não é um privilégio da atividade filosófica; o cinema também é capaz de criar conceitos – os conceitos-imagem, em contraposição aos conceitos-ideia da filosofia. É a partir do conceito-imagem que o cineasta pode convencer o espectador de alguma coisa, seja da alegria de viver ou da relação perversa entre o homem e a natureza. Em minha opinião, contudo, a contribuição de Cabrera ultrapassa de longe o escopo do cinema[2]. Aqui, desejo examinar as possibilidades do conceito-imagem nos estudos comparativos entre filosofia e gêneros audiovisuais diversos.

Imagem, razão e afeto

No primeiro capítulo de seu livro O cinema pensa: uma introdução à filosofia através dos filmes (CABRERA, 2006), Julio Cabrera esboça uma “crítica da razão logopática”. Durante boa parte de sua história, a filosofia tematizou a sensibilidade em termos da racionalidade, relegando a primeira ao segundo plano. A razão, a partir dos pensadores lógicos (ou “apáticos”, como os denomina Cabrera), pode certamente elaborar considerações acerca do afeto (pathos); contudo, foram os filósofos “páticos”, a partir do século XIX, que buscaram incluir o pathos dentro do logos (razão) “como um modo elemento essencial de acesso ao mundo” (CABRERA, 2006, p. 16; grifos do autor). Logopatia, o termo cunhado por Cabrera, indica razão e afeto entrelaçados no pensamento.

O conceito-imagem, por sua vez, segue essa linha de desenvolvimento conceitual, manifestando-se (como o próprio nome indica) através da imagem. Como mencionei acima, Cabrera põe em questão a tendência, já cristalizada na filosofia, de atrelar a produção de problemas e conceitos à forma escrita, sugerindo que a imagem cinematográfica (e outras imagens em geral[3]) é capaz de elaborar tais problemas de modo tão ou mais eficaz que o texto escrito. A imagem cinemática possui uma força persuasiva devido ao componente afetivo, e isso é verdadeiro mesmo em filmes ditos “cerebrais” e “gélidos”. Não se trata simplesmente de se emocionar com o filme, mas de encontrar nele um potencial cognitivo, de perceber que podemos aprender algo sobre o mundo a partir da tela do cinema. Além disso, o envolvimento emocional não implica aceitação da tese comunicada pelo filme; do mesmo modo como nem sempre concordamos com os argumentos de um filósofo, não necessariamente aceitaremos os argumentos de um cineasta (CABRERA, 2007, p. 27).

Passemos, então, à caracterização do conceito-imagem. Nela, Cabrera elenca oito pontos presentes (CABRERA, 2006, p. 21-36): 1) a necessidade de experimentá-lo para ser adequadamente compreendido – por melhor que resumamos um filme, precisamos assisti-lo para entender seu funcionamento conceitual de maneira acurada; 2) a partir do filme, o conceito-imagem provoca no espectador uma resposta emocional, sem a qual não pode ser apreendido plenamente; 3) a pretensão de verdade e universalidade, ainda que o filme parta de um exemplo particular; 4) pode ser encontrado em qualquer parte do filme ou no filme inteiro, mas sempre necessita de um desenvolvimento temporal para sua compreensão; 5) ocorre em nível abstrato ou literal, dependendo da interpretação que lhe for conferida; 6) não é uma categoria estética, isto é, não interessa se o filme é considerado bom ou ruim (pelo espectador ou pela crítica); 7) embora os conceitos-imagem não sejam exclusivos do cinema (Cabrera afirma que também ocorrem na literatura), são os dispositivos técnicos dessa linguagem artística que permitem aumentar o impacto e a persuasão deles sobre o espectador; 8 ) as soluções morais, lógicas e epistêmicas do conceito-imagem são abertas e problemáticas, mesmo em filmes de final feliz.

A articulação entre cinema e filosofia por meio do conceito-imagem merece alguns destaques. Enquanto a argumentação filosófica tradicional parte do universal em direção ao particular, a imagem cinematográfica (e audiovisual, como veremos mais adiante) vai na direção oposta, sendo uma “exceção com características universais” (CABRERA, 2006, p. 44). A definição do que seja o conceito-imagem também não é exaustiva; Cabrera pretende assim deixar abertas as possibilidades heurísticas propiciadas pelo conceito-imagem, limitando-se a apontar uma “determinada direção compreensiva” (CABRERA, 2006, p. 21).

Neste ponto, deixamos o cinema e partimos para uma esfera maior do audiovisual[4]. Ora, com o advento da televisão e o surgimento de gêneros outros que trabalham com a imagem e o som, foram expandidas as alternativas de experiência perceptiva e conceitual. Das características do conceito-imagem elencadas por Cabrera, as três primeiras seriam extraídas da filosofia (embora apenas a terceira, a pretensão de verdade e universalidade, seja herdada da filosofia tradicional), as demais dizendo respeito ao cinema. Mas mesmo estas não possuem contornos definidos, até porque se trata de uma caracterização com “propósitos filosóficos” (CABRERA, 2006, p. 19), sem entrar detalhadamente em questões técnicas. Desse modo, creio que é razoável supor que a experiência do espectador, diante da imagem audiovisual, não se restringe ao cinema, seja em salas de exibição específicas, por meio de aparelhos de DVD e videocassete ou em frente a um computador.

Sendo assim, proponho aqui uma epoché audiovisual: a partir da caracterização do conceito-imagem de Cabrera, não há maiores razões para restringir sua aplicação ao cinema (até mesmo porque o filósofo não o faz, pois menciona a possibilidade – ainda que de modo pontual – de abordá-lo a partir da literatura) do que expandi-la a objetos como videoclipes, animações, e – por que não? – teledramaturgias. Será que não poderíamos ter algum insight filosófico diante de um clipe de Lady Gaga ou um stop-motion no YouTube? Esse questionamento talvez seja ingênuo; mas a melhor maneira de considerar sua importância é desdobrá-lo. Contudo, tendo em vista o espaço textual, prefiro exemplificar de modo ostensivo. Ofereço, a seguir, um breve confronto, que diz respeito à filosofia e ao audiovisual.

Um experimento: O Salto e Camus

O confronto que proponho tem por base o videoclipe O Salto (Bruno Murtinho, 2004), com base na canção homônima da banda de rock O Rappa. Há uma narrativa simples, intercalada em alguns momentos com imagens dos integrantes da banda executando a canção. Uma das primeiras cenas é uma declaração em rede televisiva do ex-presidente Fernando Collor de Mello. Logo após, um síndico (o personagem central da narrativa) é demitido, e logo se inicia a busca por um novo emprego, já que possui uma criança de colo para cuidar (e, presumivelmente, é pai solteiro). Tendo pouco sucesso, no entanto, aos poucos ele se afunda no vício do álcool; em uma das últimas sequências, é expulso do hotel onde morava com o bebê. A seguir, sai pelas ruas sem destino, sem nem mesmo levar a mala atirada na rua. No final do videoclipe, a última sequência apresenta o suicídio do personagem (levando a criança consigo), com o fundo sonoro do scratch na faixa-título, o que lhe dá um ritmo mais vertiginoso.

Sabe-se que O Rappa empreende ativismo social por meio da música; suas canções são socialmente engajadas. Vários videoclipes baseados nelas, a exemplo de O Salto, ganharam prêmios variados, pela qualidade imagética e pela mensagem que passam. Consideremos, então, a última sequência de O Salto, na qual ocorre o suicídio. Depois de uma noite dormindo na rua e sendo agredido por outros moradores, há uma transição para uma cena na qual, de dia, se posta de frente a uma vitrine de produtos eletroeletrônicos e assiste a um pronunciamento de Fernando Collor. A criança está no braço direito, e a mão esquerda segura uma garrafa (provavelmente de aguardente). No momento em que decide dar cabo de sua própria vida, solta a garrafa, que se espatifa no chão, e a cidade inteira (o mundo?) paralisa. Ele sai correndo por entre as pessoas, entra em um edifício e sobe as escadas, chegando à cobertura. Um close-up, quando ele já se encontra à beira do prédio, decidido a se matar, mostra um rosto desenganado com a própria desgraça (o dele próprio) e o do bebê, chorando, sem entender plenamente o que seu pai pretende fazer, mas adivinhando a tragédia que se aproxima. Só então ele dá um passo adiante e se deixa cair; quando alcança a calçada da rua, surge uma onda (à maneira da explosão de uma bomba atômica) a se espalhar pela cidade inteira, a partir do local da queda. Finalmente, os aparelhos de TV exibindo o pronunciamento de Collor ficam fora do ar e as pessoas voltam a se mover.

O suicídio enquanto problema filosófico recebeu a atenção de pensadores variados. Albert Camus, em seu ensaio O mito de Sísifo (CAMUS, 2008), trata o problema a partir de uma perspectiva existencialista, confrontando o suicídio com o absurdo da existência. Para ele, a pergunta sobre o suicídio consiste em saber se vale a pena levar uma vida a partir do divórcio entre ator e mundo, isto é, a partir do momento em que o indivíduo se sente irremediavelmente exilado e desligado do mundo a sua volta. Sua resposta é negativa, pois a falta de esperança em uma nova vida é, paradoxalmente, o que motiva o homem absurdo a mergulhar intensamente nesta existência – mesmo porque o absurdo deixa de ser propriamente um tormento: “Ao contrário de Eurídice, o absurdo só morre quando viramos as costas para ele” (CAMUS, 2008, p. 65).

Temos, então, duas respostas diferentes a um mesmo problema. O conceito de absurdo em Camus implica uma exaltação da vida, uma espécie de “carpe diem” filosófico – mesmo que o homem absurdo experimente dissabores de modo frequente. No videoclipe, e a partir da sequência acima resumida, poderíamos extrair dela um conceito-imagem de “suicídio e protesto social”, explorando os limites da existência humana de outro modo. Camus, de um lado, poderia argumentar contra o suicídio com seu próprio exemplo, visto que participou da Resistência Francesa na Segunda Guerra Mundial através de um jornal (Combat) e, de alguma forma, esteve bastante próximo da morte em prol de uma causa social e política, sem necessariamente pensar em morrer. No videoclipe, de outro lado, encontramos uma situação de progressivo desalento; pouco a pouco o personagem cede ao vício do álcool e termina por se suicidar. Porém, as imagens mostram que esse suicídio está longe de ser uma tragédia particular; confrontando-o com o discurso de Fernando Collor (e com o cenário brasileiro de recessão social e econômica), podemos situá-lo em um contexto maior de desigualdade social.

Há uma tomada rápida que mostra uma frase no meio do videoclipe: “O fraco, não alcança sua meta” (sic). Diegeticamente, ela prenuncia a tragédia do protagonista desempregado; filosoficamente considerada, está na raiz do problema do suicídio (exceto em casos extremos como os homens-bomba, pois o suicídio não é, aparentemente, tratado por eles como sinal de fraqueza). Em Camus, a ausência de metas na vida de um indivíduo não é um empecilho para que ele desista de viver, mas antes o incita a explorar as possibilidades que a vida lhe apresenta – incluindo aquelas que ultrapassem impedimentos de ordem social e afetiva. Daí a imagem de Sísifo retomada por Camus, condenado eternamente a rolar uma pedra montanha acima, após desafiar e lograr os deuses, indicando a disposição em superar os limites que a vida oferece. A aparente fraqueza do homem absurdo é, portanto, sua força – como se ele respondesse: “E daí?”. Já a resposta do personagem no videoclipe é de outra ordem. Isso não quer dizer que ele concorde com aquela afirmação, embora estivesse, de fato, deprimido por não conseguir emprego. Contudo, em vez de relegar o suicídio a uma tragédia privada, a imagem explora outra possibilidade: e se o suicídio chamasse atenção para um problema maior?

Confrontemos, por exemplo, o suicídio com a greve de fome. Esta forma de protesto político é certamente chocante, pela visibilidade atraída aos propósitos daquele que a pratica. Ora, não terá acontecido o mesmo com o suicídio em O Saltoe de modo duplo, apontando não somente para as mazelas sociais do Brasil, como também para o próprio poder da imagem audiovisual em manipular e jogar com elas? Isso é verdadeiro tanto para os casos em que a pessoa que faz greve de fome obtém a vitória política que deseja como para aqueles nos quais a greve de fome fracassa (aparentemente), ocasionando a morte do indivíduo. Pode-se objetar que não se pode igualar o objetivo da greve de fome ao do suicídio, visto que este dificilmente possui motivações políticas. E, no entanto, alguns suicídios são politicamente motivados[5]. Ainda assim, mesmo que o videoclipe não dê indícios de que o suicídio teve motivação política, não é verdade que alude de modo direto à realidade política concreta do Brasil, entrelaçando-a ao destino particular do personagem?

Podemos agora voltar ao problema da justificação. Ultimamente tem havido notícias de fatos cada vez mais gratuitos, ou pelo menos inexplicáveis a partir de um ponto de vista causal. Com o suicídio, não é diferente. Seguramente, podemos pensar que há outros modos de protestar contra a realidade social brasileira como se encontra hoje. Entretanto, antes de adotar essa postura, devemos lembrar três argumentos de Cabrera acerca do conceito-imagem. Uma de suas características, conforme elenquei acima de maneira breve, é oferecer soluções lógica, epistêmica e moralmente abertas aos problemas tratados pelo cineasta. Ora, é exatamente isso que vemos em O Salto: o suicídio como forma de chamar a atenção para a miséria social nos choca, provocando ou não a solidariedade para com o personagem. A solidarização, a partir da experiência com o videoclipe, não necessariamente precisa se apoiar em fundamentos morais. Essa solidariedade e choque apontam para outra característica do conceito-imagem – a necessidade de impacto emocional no espectador, para que este compreenda o que o diretor defende em seu videoclipe. Se o espectador não se envolve com o videoclipe, achando-o enfadonho ou depressivo e parando de assistir, será impossível assimilar o conceito-imagem.

Finalmente, o terceiro argumento lembrado por Cabrera é que não precisamos concordar com a tese imagética veiculada pelo conceito-imagem. O impacto emocional do conceito-imagem, nesse sentido, não precisa persuadir o espectador, mas necessariamente deve promover a compreensão da tese imagética do videoclipe: o suicídio do homem e a morte de sua filha apontam para uma miséria social crônica e perversa no Brasil (e no mundo). O videoclipe condensa em pouco menos de sete minutos de duração o que muitos de nós sentimos diariamente: uma angústia existencial e política em um contexto de esgotamento social. Seu sucesso, portanto, não depende de convencer o espectador a tratar o suicídio (do personagem ou de outros indivíduos) de modo condescendente, mas de mostrar o alcance da miséria social na vida pessoal – mesmo que o espectador, à semelhança de Camus, persista em preferir uma existência precária (ou melhor, absurda) a existência nenhuma.

O que pode o audiovisual?

Ao longo do texto, talvez o leitor tenha se perguntado: qual é o lugar do audiovisual na história da filosofia? Em seus livros sobre cinema e filosofia, Cabrera não se demora nessa questão. Embora afirme a possibilidade de o cinema (e, como pretendi demonstrar, o audiovisual de modo mais amplo) fazer com imagens o que a filosofia tradicional faz por meio da escrita, ele não se demora em questões de ordem técnica e estética. De fato, não é necessário que um diretor seja especialista em filosofia para persuadir o espectador, do mesmo modo como um filósofo se ampare em obras audiovisuais para argumentar. Entretanto, parece que há uma dificuldade com o conceito-imagem. Como mencionei acima, o conceito-imagem precisa de um desenvolvimento temporal para ser apreendido. O que suscita a seguinte pergunta: que espécie de “desenvolvimento temporal” é essa? Estariam excluídos filmes que não estejam submetidos a uma ordem narrativa linear? Não exatamente. Para Cabrera, tal desenvolvimento temporal se apresenta em forma de situações, que são

no cinema [e, a fortiori, no audiovisual – L. B.] algo semelhante às proposições para a filosofia escrita: um lugar onde os conceitos interagem e se desdobram. As situações congregam todo tipo de elementos (todos os que cabem em minha noção ampla de “imagem”), objetos, pessoas, espaços, ruídos e silêncios, e todos eles são elementos conceituais. Nesse sentido, sustento que as situações afirmam algo, como as proposições, só que por meio de outro tipo de dispositivo (CABRERA, 2007, p. 19-20; grifo do autor).

No entanto, mesmo a situação, tal como entendida por Cabrera, pode ser posta em dúvida. Rodrigo Cássio Oliveira, por exemplo, cita exemplos de cineastas que radicalizam a necessidade de desenvolvimento temporal nos filmes, desde Stan Brakhage até Andy Warhol (e Dziga Vertov). “Esses cineastas, avessos à idéia de que o cinema é a prática de contar histórias, não proporcionam narrativas com personagens imersas em situações, no sentido usado por Cabrera” (OLIVEIRA, 2008; grifos do autor). Ele questiona também se a logopatia depende do conceito-imagem, e se não haveria espaço para a elaboração de conceitos particulares correspondentes a formas particulares de fazer cinema (e o audiovisual), tal como fez Deleuze; não haveria aí resquícios dos racionalismo do qual Cabrera gostaria de se desvencilhar?

Assim como as proposições, no texto escrito, não são tratadas do mesmo modo pelos filósofos, também as situações não são organizadas da mesma maneira pelos cineastas. Isso parece truísmo, mas pensemos na comparação entre as filosofias analítica e continental, com a predileção anglo-saxã em escrever de modo claro como a água, enquanto no continente há a tendência em empregar um estilo mais tortuoso, chegando mesmo ao obscurantismo (como na Fenomenologia do Espírito de Hegel). Isso, aliás, está na raiz de polêmicas filosóficas acirradas, a exemplo daquela que houve entre Jacques Derrida e John Searle acerca da teoria dos atos de fala de John Austin. Com os cineastas, não se passa de modo diferente: comparemos a escola da montagem soviética à Nouvelle Vague. Diferentes tratamentos são motivados por diferentes pontos de vista, pressupostos teóricos e técnicos. Dessa forma, sentimos falta de uma argumentação detalhada por parte de Cabrera, pois, dada essas diferenças, talvez haja a impressão de que os conceitos-imagem sejam diferentes entre si (não necessariamente ao modo de Deleuze, que enfatizou a distinção entre o cinema clássico e o cinema moderno). Ficamos curiosos por saber como se dá a instauração de conceitos-imagem em filmes que se afastam do modelo narrativo clássico, pois Cabrera utiliza largamente exemplos de filmes narrativos em sua argumentação (OLIVEIRA, 2008). É claro que filmes como O homem com a câmera na mão (Dziga Vertov, 1929) podem prender a atenção de um espectador, e que este se deixe levar pela velocidade vertiginosa das imagens; porém, Cabrera empreendeu poucos experimentos teóricos com filmes que se distanciam do modelo narrativo clássico (o que, certamente, abre portas para investigações conceituais de filmes não-narrativos).

Quanto à questão sobre se a logopatia depende do conceito-imagem, há um equívoco na pergunta acima. O conceito-imagem, tal como proposto por Cabrera, é logopático; contudo, a logopatia não necessariamente se manifesta através dos conceitos-imagem ou os utiliza como ponto de partida. Logopatia e conceito-imagem são ideias relacionadas, mas distintas. Enquanto a primeira diz respeito à união entre os elementos lógico e afetivo (pático) no pensamento, a segunda trata da experiência logopática através de imagens. O cinema, por assim dizer, já nasceu logopático – mas a logopatia filosófica no pensamento ocidental é algo recente, além de se encontrar relegada a nichos específicos, seja pelo pouco número de pensadores páticos, seja pela diversidade de áreas nas quais se manifesta.

Quaisquer que sejam as controvérsias em torno do conceito-imagem, uma coisa é certa: a contribuição de Cabrera para os estudos da filosofia e do audiovisual é salutar. Sua aparente fraqueza – a ausência de contornos precisos, dando margem inclusive a mal-entendidos – é ao mesmo tempo seu maior recurso; dado o escopo metodológico que nos oferece, há uma vastidão de imagens audiovisuais que podem ser objeto de atenção nos interlúdios com a filosofia. Há quem diga que a filosofia não é assunto restrito a especialistas; este mesmo espírito se encontra presente ao longo do livro de Cabrera. Se há algum limite em torno da abordagem do audiovisual a partir do conceito-imagem, é necessário empreender investigações mais detalhadas.

* Lázaro Barbosa é bacharel em filosofia pela UFRN, com experiência nas áreas de filosofia contemporânea, literatura comparada e cinema. Contato: lazaras.ufrn@gmail.com

Referências bibliográficas

ALVES, J. O som e o audiovisual. Forum Media, Viseu, n. 6, 2006. Disponível em: <http://www.ipv.pt/forumedia/3/3_fi6.htm> Acesso: 27 jul 2011.

BARBOSA JUNIOR, A. L. V. As angústias do ser humano na contemporaneidade: entre Freud, Marcuse e Evangelion. 2010. 48 f. Monografia (graduação), Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2010.

BENJAMIN, W. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: ____________. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 165-196.

CABRERA, J. O cinema pensa: uma introdução à filosofia através dos filmes. Trad. Rita Vynagre. Rio de Janeiro: Rocco, 2006.

____________. De Hitchcock a Greenaway pela história da filosofia: novas reflexões sobre cinema e filosofia. São Paulo: Nankin, 2007.

CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Trad. Paulina Watch e Ari Roitman. Rio de Janeiro: Record, 2008.

DELEUZE, G. Cinema 1: a imagem-movimento. Trad. Stella Senra. São Paulo: Brasiliense, 1985.

KELLNER, D. A cultura da mídia – estudos culturais: identidade e política entre o moderno e o pós-moderno. Trad. Ivone Castilho Benedetti. Bauru: EDUSC, 2001.

O SALTO. Direção: Bruno Murtinho e Sérgio Schmid. Produção: Twister Studio. Rio de Janeiro, 2004, 6min54s. Disponível em: <http://www.myspace.com/brunomurtinho/videos/video/5778396> Acesso: 27 jul 2011.

O HOMEM COM A CÂMERA NA MÃO. Direção: Dziga Vertov. Produção: VUFKU. Image Entertainment, 1929, 68 min

OLIVEIRA, R. C. Os diferentes olhares da filosofia sobre o cinema. Revista Universitária do Audiovisual, São Carlos, v. 1, n. 7. Disponível em: <http://www.rua.ufscar.br/site/?p=1286> Acesso: 01 ago 2011.

OS IMPERDOÁVEIS. Direção: Clint Eastwood. Produção: Warner Bros. e Malpaso Production. Warner Bros., 1992, 131 min.

ŽIŽEK, S. Bem-vindo ao deserto do real! Trad. Paulo Cezar Castanheira. São Paulo: Boitempo, 2003.

ŽIŽEK, S (org.). Everything you always wanted to know about Lacan (but were afraid to ask Hitchcock). Londres: Verso, 1992.


[1] Por “instituição cinematográfica” quero dizer que o cinema se compõe de três elementos essenciais: produção, exibição e distribuição. Há espaços especiais para a exibição de filmes, a distribuição de filmes em circuitos econômicos mais ou menos definidos e a produção a partir de um aparato técnico-teórico peculiar.

[2] Em minha monografia, procurei confrontar Herbert Marcuse, o psicanalista Sigmund Freud e a série de desenho animado Neon Genesis Evangelion, de Hideaki Anno (BARBOSA JUNIOR, 2010).

[3] Mas Cabrera observa que: “Não se trata de qualquer imagem – é preciso que elas também estejam carregadas de afeto” (CABRERA, 2007, p. 16).

[4] Jorge Alves comenta que o termo audiovisual possui dupla acepção: de modo amplo, pode se referir à justaposição de som e imagem sem estabelecer conexão entre ambos, e de modo estrito, quando som e imagem são vinculados de modo a criar um terceiro item (ALVES, 2006).

[5] Durante a Guerra do Vietnã (1955-1975), Thích Quảng Đức (1897-1963), monge budista, imolou a si mesmo na cidade de Saigon (atual Cidade de Ho Chi Minh) em 1963, protestando contra o favorecimento dado ao catolicismo pelo governo do Vietnã do Sul. Dois anos depois, o pacifista quaker Norman Morrison (1933-1965) repetiu o gesto do monge, ateando fogo ao próprio corpo nas proximidades do Pentágono, em protesto contra a intervenção dos Estados Unidos no conflito.

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Este post tem um comentário

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    Rodcassio

    Caro Lázaro, 
    Que bom ver no seu artigo um aproveitamento do texto que eu havia publicado aqui mesmo na RUA, em 2008. Aproveito a passagem e a leitura para pontuar melhor um aspecto que talvez tenha ficado apenas implícito, naquela ocasião, quando comentei a teoria do Cabrera. Ao perguntar se não haveria algum resquício de racionalismo no conceito-imagem, pensei no sentido restrito que particulariza o cinema como um meio privilegiado – conforme diz o próprio Cabrera – para a realização da chamada filosofia logopática. Logo, a pergunta sobre a necessidade dos conceitos-imagens (ou, sendo menos radical, a necessidade de que eles sejam como descreve o Cabrera no livro) tem a ver com a mesma leitura que me levou a concluir que elementos específicos do cinema acabam por demais generalizados ali (ideias como a da ocorrência de um “impacto emocional”, ou a de que os conceitos precisam de certo “tempo” para se apresentarem, sem que a temporalidade cinematográfica propriamente dita esteja no foco da reflexão etc.). São duas questões que se implicam mutuamente: por um lado, a suspeita de que é preciso uma aproximação maior ao cinema, para que os próprios filmes tomem parte na “conceituação”; e, por outro, a hipótese de que, se não procedermos assim, corremos o risco de projetar sobre os filmes (que são “experiências” de ordem emocional) um tipo de racionalidade ainda muito tributária do racionalismo (basicamente a pretensão de universalizar a multiplicidade da experiência emocional). Cabrera e eu chegamos a conversar muito produtivamente, por escrito, sobre isso. Se te interessar, tenho aqui material a esse respeito. 
    Saudações e um abraço,
    Rodrigo Cássio

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