CRÍTICA | Marte Um (2022), Gabriel Martins

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Por: Gustavo Ramos Ribeiro
Redação RUA


O filme começa com a proposta de contar uma história simples, de uma família negra vivendo na periferia de Contagem (MG), com dramas familiares e pessoais que afetam o desenvolvimento de si mesmos e das suas pessoas amadas, com expectativas, autossuficiência e o mais importante, mostrando o quanto o amor conquista tudo e é a chave para a conexão e o entendimento.
Essa família formada pelo pai Wellington, porteiro de um prédio burguês e torcedor assíduo do cruzeiro, sendo um homem determinado, “certinho” e cabeça dura, o que por mais que o acabe tornando confiável, visto em seu emprego e na informação de que faz parte dos Alcoólicos Anônimos e está sóbrio a quatro anos, mas acaba sendo bem complicado de discordar, assim como demonstra sua filha Eunice, uma jovem adulta, estudante de direito, igualmente determinada e amável, possuindo vontades de morar sozinha que vão contra o ideal superprotetor do pai, além de se apaixonar pela colega da faculdade Joana, que assumem um relacionamento e passam a morar juntas, ela é a pessoa que mais sabe o que quer e demonstra com coragem para sua família, e tenta incentivar seu irmão Deivinho, a fazer o mesmo, um menino tímido e muito inteligente, muito carinhoso com a irmã e bom de bola, com seu pai querendo fazer de tudo para que se torne um jogador profissional, mas em seu coração prevalecendo o sonho de estudar astrofísica e participar de uma missão de colonização espacial que dá nome ao filme “Marte Um”, e sua mãe Tércia, uma diarista, que sempre procura novas formas de adquirir mais renda para a família, engraçada, esforçada e amorosa com todos, porém sofrendo com problemas de autoestima e autovalorização ao decorrer do filme, achando que está amaldiçoada devido a uma pegadinha televisiva da qual foi vítima, e ao final do filme gerando o que pra mim foi a cena mais arrepiante dessa obra.
As trajetórias desses personagens começam do jeito mais casual possível, demonstrando-se mais como crônicas isoladas que ficariam em seus respectivos núcleos, servindo apenas para mostrar um pequeno desenvolvimento de personagem e finalizando com lições de moral óbvias e resolvendo todos os problemas apresentados. Mas o filme subverte isso tornando todos os núcleos extremamente conectados e importantes para todos os membros da família, já que a vida de um afeta diretamente os outros, e por uma história mais realista, nem todos os problemas são resolvidos no final.
A família Martins em “Marte Um” tem diversos problemas e falhas de comunicação, o que não é inesperado vindo de uma família comum, que no pensamento de achar que todos pensam o mesmo, os pais acabam não se preparando para opiniões ou ideias diferentes vindas de seus filhos Eunice e Deivinho, mas mostrando em que mesmo nas situações mais desesperadoras e desconfortáveis o amor entre eles prevalece e supera a tudo, garantindo seu espaço nas famílias mais bem escritas e verdadeiras do cinema.
Esse amor se põe a prova em duas situações essenciais para a trama, o desejo de Eunice de sair de casa e morar junto com a namorada Joana, o que já é um choque para seus pais em ambas as formas, durante a cena em que Eunice convida Joana para conhecer os pais e o momento em que os pais descobrem o relacionamento entre a filha e a suposta amiga, é durante em um jogo do Atlético X Cruzeiro, as meninas seguram e acariciam a mão uma da outra, seguida de uma panorâmica direto para a reação de Tércia e Wellington, sem uma única palavra, a surpresa dos pais é demonstrada mas sem raiva ou homofobia, gerando risos e suspiros devido a ótima direção de cena e performance dos atores, e todo o conflito sobre Eunice se mudar é finalizado numa cena emocionante de despedida da família inteira, onde cada despedida é feita separadamente e de maneira única, com destaque para a despedida de Wellington e Eunice, que durante o abraço final e o presente da cadeira se mostra capaz de fazer lágrimas caírem..
Eunice se mostra como a personagem mais madura do filme, incentivando Deivinho a seguir seu desejo de se inteirar mais no estudo de astrofísica quando junto com a namorada compra um ingresso para a palestra com Neil deGrasse Tyson para o menino, que acaba colidindo no mesmo dia em que o pai conseguiu para o menino uma peneira para participar na base do Cruzeiro, com o jogador Juan Pablo Sorín, que passou a morar no mesmo prédio em que Wellington trabalha, e o menino, sobrecarregado pelo nervosismo de perder a palestra e por não querer jogar nessa peneira, desce uma ladeira de bicicleta e quebra a perna na véspera do grande dia, o que preocupa a família inteira, mas faz Wellington descarregar a raiva pela perda do emprego e da esperança na carreira de futebolista para o filho, em Deivinho e Eunice, que o confronta e tomado pelo arrependimento, sai de casa, rasga sua medalha de quatro anos sóbrio e volta embriagado para casa, nem parando em pé, sendo acudido pela esposa.
Tércia por seu lado, auxiliando a filha na mudança e sempre falando com Deivinho e Wellington em conversas fofas e profundas, passa por uma “maré de azar” que se dá início quando sofre de uma pegadinha idiota de televisão, onde um cara ameaça explodir a lanchonete em que a mulher está, apenas para revelar uma dinamite de brinquedo que causa uma pequena mas agonizante explosão, que a causa angústia e estresse frequentes, além de sensibilidade a estouros e barulhos altos, em seus dias a seguir, começa a achar que está com alguma maldição e em uma sequência de eventos em que se consulta com uma médica, e faz uma sessão de limpeza espiritual, resolve ficar por fora da cidade no dia da peneira,onde encontra o mesmo ator da pegadinha anterior, onde vai confrontá-lo e pela raiva chega a quebrar a câmera do programa de pegadinhas e desiste de pegar o ônibus mais barato para uma cidade vizinha, visto que nesse ponto da história, a família está passando por apertos financeiros.
Em suas cenas finais, alguns conflitos se resolvem, outros não, onde o emprego de Wellington, que foi perdido pois o novato em seu trabalho Flávio, furtou o apartamento da síndica do prédio, que, sem nem lembrar de quem era Flávio, despejou a culpa do incidente injustamente em Wellington, continua perdido, e Tércia não conseguirá nenhuma retribuição do programa de pegadinhas para os problemas que esse programa a causou, o que funciona muito bem para entendermos as frustrações dos personagens, que os maiores dos problemas que caem em seus ombros, são de origem totalmente a parte e só são redirecionados a eles, sem nada que possam fazer para efetivamente resolver, o que trabalha muito bem com a frustração do espectador, que quer os personagens bem, sente raiva das situações que ocorreram, pois a família Martins foi a vítima em cada um, e são o tipo de vítima que nunca vai conseguir o que precisa.
Entretanto, o filme termina em sequências lindas que finaliza o desenvolvimento de cada um dos personagens com arcos abertos até o fim, com Wellington indo novamente a uma reunião dos Alcoólicos Anônimos no dia seguinte de ter se embriagado com sua esposa e filha, que o incentivam a falar e tentar outra vez, Tércia em outra cena ao ouvir a notícia que o ônibus em que teria pegado no dia anterior caso não se encontrasse com o programa causador de seus problemas sofreu um acidente e não deixou sobreviventes, exclama de forma arrepiante para si mesma “eu tô viva”, percebendo que não está amaldiçoada e o conflito com o programa no dia anterior, revelou uma consequência boa em seu trajeto, que a deixou voltar pra casa segura e continuar vivendo, e por fim Deivinho mostrando seu conhecimento e talento com Astronomia e Astrofísica, chegando a construir um telescópio de material reciclável e antigo, e expressando para sua família seu desejo de participar de Marte Um e o que quer para sua carreira, numa última sequência linda marcada pelo diálogo entre todos os personagens, expressando o amor que sentem uns pelos outros e que “a gente dá um jeito” dito por Wellington, após saber das dificuldades de realizar o sonho do seu filho, mas que a família Martins não irá desistir até que aconteça.
Nessa trama, marcada pelo amor familiar e pelos conflitos envolvidos, mostra todos esses temas tocados de forma sensível e bonita, onde todo personagem da família é tridimensional e completamente compreensível em sua perspectiva, o espectador se sente frustrado e enraivecido pelas situações que se encontram e pelas brigas que ocorrem, mas toda essa raiva é colocada de contrapeso para o amor incondicional que os personagens mostram, como em nenhum momento esse amor esteve em questionamento e sempre presente, o espectador entende os motivos de cada personagem e suas frustrações, ao mesmo tempo que presencia o amor que recusa a julgar, assim como não houve julgamentos ou ódio quando Eunice assume o relacionamento com Joana e Deivinho expressa seu sonho, leva um tempo para os pais se acostumarem mas o amor termina sendo a força motriz que leva cada um dos membros a seguir em frente.
E de último adendo, um elogio ao filme que soube usar as participações especiais do ex-jogador Juan Pablo Sorín e do influencer Tokinho, com papeis relativamente pequenos mas divertidos de assistir, e cenas interessantes, que realmente agregam ao plot do filme ao invés de serem apenas para chamar atenção superficialmente.

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