Crítica | O Corcunda de Notre Dame (1996), de Gary Trousdale e Kirk Wise

Durante a década de 1980, a Walt Disney Animation Studios se viu à beira da falência. Após longas-metragens como O Cão e a Raposa (1981) e O Caldeirão Mágico (1985) resultarem em grandes perdas monetárias para o estúdio, o fim da companhia parecia iminente, e cada vez mais, planos de fragmentar a empresa em pequenos lotes pareciam ser uma estratégia viável. Felizmente, a troca de Ron Miller por Roy E. Disney como o novo CEO da empresa foi uma ótima decisão corporativa, já que, nos anos seguintes, se iniciou a Era da Renascença Disney, marcada por grandes sucessos de crítica e bilheteria que viriam a salvar o estúdio de animação de sua ruína. Entre os exemplares mais notáveis dessa nova fase de grandes sucessos, podemos citar A Pequena Sereia (1989), A Bela e a Fera (1991), Aladdin (1992), O Rei Leão (1994) e O Corcunda de Notre Dame (1996) – animação discutivelmente subestimada à qual esta resenha dedica um maior aprofundamento.

Baseado no romance “Notre-Dame de Paris”, escrito por Victor Hugo, O Corcunda de Notre Dame nos apresenta a história de Quasímodo, um jovem corcunda que vive no campanário da Catedral de Notre-Dame de Paris, e que após conhecer a encantadora cigana Esmeralda decide mudar os rumos de sua vida, tendo de confrontar o poderoso juiz Claude Frollo para conquistar sua almejada liberdade.

Logo em sua cena de abertura, a animação estabelece seu tom austero, introduzindo a canção “Os Sons de Notre Dame”, onde o cigano Clopin se propõe a contar a vida do sineiro de Notre Dame a partir de sua trágica infância, quando este foi agressivamente separado de seus pais. Ao longo da canção, há a presença de um coro cantando em latim, bradando termos de procedência católica, tais como Dies Iræ (“Dia da Ira”) e Kyrie Eleison (“Senhor, tende piedade”), além de motivos musicais que remetem ao canto gregoriano medieval (período histórico em que o filme é ambientado). Tais fatores se assemelham à dramaticidade teatral de caráter gótico perceptível em obras como os célebres musicais Les Misérables e O Fantasma da Ópera, um mérito da dupla de compositores Alan Menken e Stephen Schwartz – que futuramente tiveram seu trabalho reconhecido com uma indicação ao Oscar de 1997.

Ainda na sequência inicial do longa, questões densas como o preconceito, a rejeição a grupos sociais e o infanticídio são abordadas e, surpreendentemente, não há qualquer tentativa de suavização dessas temáticas, visto que a perseguição do juiz Frollo a um grupo de ciganos é encenada e conduzida de modo frenético e impiedoso, com os acontecimentos se sucedendo de maneira trágica, e com essa tragicidade também sendo traduzida visualmente. Da paleta de cores sombria e repleta de tons azulados à escolha de apresentar o vilão da obra por meio de ângulos baixos, exaltando a grandiosidade deste, os diretores Gary Trousdale e Kirk Wise demonstram maestria na condução da animação. Além disso, os cineastas têm a interessante escolha criativa de não mostrar graficamente o rosto de Quasímodo quando bebê, limitando o público a imaginar essa figura a partir das descrições dadas por Frollo (que se refere à criança com palavras rudes como “monstro” e “demônio”), bem como por suas expressões faciais de extrema aversão e desprezo.

Posteriormente, quando Quasímodo tem sua aparência finalmente revelada, seu visual atípico e deformado não é abordado de modo a causar horror ou estranhamento, fugindo de abordagens arquetípicas para optar pela escolha de uma perspectiva humanizada, de um rapaz altruísta que cuida de um frágil filhote de pássaro e o incentiva a voar com outras aves – deixando implícita a frustração do personagem por não poder fazer o mesmo que o pássaro. O jovem corcunda que dá título ao longa-metragem é extremamente gentil e bondoso, e é uma tarefa quase impossível não se afeiçoar a ele, visto que este tem uma vida solitária e é tratado com desdém por seu “mestre”, sendo diariamente ridicularizado e menosprezado, e tendo seus sonhos e objetivos depreciados.

“Quem é o monstro, e o homem quem é?” é uma frase que se faz presente em momentos-chave da produção, e tem um reflexo imediato no contraste entre as personalidades de Quasímodo e de Claude Frollo: enquanto o primeiro age de maneira benevolente e reprimida, o segundo é a personificação da acerbidade e da hipocrisia. Frollo é um juiz cristão, e faz questão de se vangloriar por sua fé e seus ideais de justiça, contudo, na prática, este é um fanático religioso que condena as atitudes de todos ao seu redor, age diversas vezes em benefício próprio e não consegue disfarçar sua intolerância. O antagonista é inegavelmente um dos vilões mais complexos das animações da Disney – movido pela luxúria e forte atração sexual que sente por Esmeralda, o juiz se ancora em sua posição de alto poder e decide condenar a cigana à morte por meio de suposições sem fundamentos (acreditando piamente que ela o enfeitiçou) e negociando desfazer a sentença da mulher se ela aceitar a paixão que o juiz sente por ela. Por fim, é curioso notar que as atitudes primitivas e animalescas de Frollo também são percebidas no design do personagem – assim como na natureza os animais predadores têm seus olhos na parte frontal de seus crânios, o personagem apresenta esta mesma característica, com seus olhos demasiadamente centralizados.

Os olhos excessivamente centralizados de Frollo se opõem aos de Quasímodo, que possuem um maior espaçamento entre si.

Embora as outras personagens do filme não tenham o mesmo destaque dado a Quasímodo e Frollo, estas se destacam por suas particularidades. Esmeralda inicialmente é mostrada como uma cigana arguta e buliçosa ao se livrar de modo engenhoso dos guardas que tentam capturá-la, mas prontamente tomamos conhecimento de suas angústias (algo expresso com primor no desenrolar da canção “Salve os Proscritos”), e Phoebus é um capitão que se destaca por questionar seus serviços à cidade de Paris, se opondo a diversas ordens controversas dadas por Frollo, e tendo significativa importância nos arcos narrativos dos protagonistas.

Assim como seus personagens se tornaram memoráveis por suas imperfeições, podemos notar no longa animado defeitos que, vale destacar, são em grande parte ofuscados por suas qualidades. O cigano Clopin e o bode de estimação Djali são essencialmente os alívios cômicos da animação, tendo sua espontaneidade e imprevisibilidade realçadas ao longo da trama. Dito isso, as gárgulas Victor, Hugo e Laverne são completamente dispensáveis em seu teor humorístico, ficando totalmente alheias ao tom soturno da produção, que apesar de abordar com profundidade temas de teor adulto como a luxúria e o genocídio, opta por utilizar o trio de gárgulas para cativar o público infantil por meio de piadas acessíveis e pouco elaboradas.

Em suma, O Corcunda de Notre Dame conta com uma trilha sonora musical repleta de temas memoráveis, personagens multifacetados e uma equipe criativa virtuosa, se provando como uma das animações mais sóbrias dos estúdios Disney. Agora, nos resta torcer para que os próximos filmes a serem lançados sob o selo dos maiores estúdios de animação atuais deixem de lado a preocupação exclusivamente monetária, e se permitam ousar mais em sua narrativa e linguagem cinematográfica.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS E FILMOGRÁFICAS

ACORDANDO a bela adormecida. Direção: Don Hahn. Estados Unidos: Stone Circle Pictures, 2009. 1 DVD (86 min.).

BORBA, A.; LESNOVSKI, A. Quando a Disney quase faliu. 2020. 1 vídeo (7m27s). Publicado pelo canal Meteoro Brasil. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=dyd6d3hNvBM. Acesso em: 11 jan. 2021.

O CORCUNDA de Notre Dame. Direção: Gary Trousdale, Kirk Wise. Estados Unidos: Walt Disney Pictures, 1996. 1 DVD (91 min.).

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