Crítica | Pinóquio (1940), de Ben Sharpsteen e Hamilton Luske

Em 1937, durante a produção de Branca de Neve e os Sete Anões (Snow White and the Seven Dwarfs, 1937), o animador estadunidense Norman Ferguson trouxe para Walt Disney uma versão traduzida em inglês do romance italiano de Carlo Collodi, “As Aventuras de Pinóquio”, de 1883. Apesar de anteriormente a história ter sido sugerida para o próprio Disney em outras ocasiões, foi apenas quando Ferguson apresentou o livro que o dono e fundador da Walt Disney Company compreendeu o potencial da história do livro para as telas animadas. Conforme Ferguson afirmou mais tarde, “Walt estava arrebentando o estômago com seu entusiasmo”.  Rapidamente, Disney contratou Bianca Majolie para desenhar os storyboards de Pinóquio (Pinocchio, 1940), aquele que viria a ser um dos filmes mais célebres, importantes e aclamados de toda a história do cinema. 

Pinóquio, dirigido por Hamilton Luske e Ben Sharpsteen, narra a história do humilde e velho carpinteiro Gepeto, o qual constrói uma marionete de madeira e a batiza de Pinóquio. Após um desejo quase desacreditado de Gepeto, a Fada Azul trás o boneco à vida. Contudo, Pinóquio ainda era feito de madeira e para que ele se tornasse realmente um menino humano de verdade, ele teria que se provar obediente, leal e bravo para com seu pai. Para isso, a fada elege um grilo falante como a consciência de Pinóquio, o tornando responsável por auxiliá-lo em sua jornada. Entretanto, durante sua história, Pinóquio esbarra em diversos personagens mal intencionados que tiram proveito da sua inocência, o colocando em prova de ser ou não merecedor de se tornar um garoto de verdade. 

O principal problema que a produção enfrentou durante a criação do filme foi o processo de adaptação do livro de Collodi. Além do romance ser longo e escrito em forma de série, os personagens e eventos da história eram cruéis demais para serem mostrados visualmente para as crianças. Em um momento, por exemplo, Pinóquio prende o rabo do gato Figaro em um torno. Logo, dessa forma, o filme acabou sofrendo diversas alterações em sua história, porém, isso não significa que ela seja mais fraca que a original, pelo contrário. Sem dúvidas, a versão final apresentada no filme é completa de todas as formas, conseguindo passar sua moral inicial, porém de uma forma agradável, ignorando o uso de violência e crueldade que estava presente no livro, resultando em um filme mágico, bonito, divertido e engraçado que não carece de um significado e lição primária. 

Claro que não poderíamos falar sobre Pinóquio e não citar a palavra “mentira”. Durante grande parte da narrativa, o boneco não sabia que toda vez que ele mentisse, seu nariz de madeira iria crescer até certo ponto de poder abrigar ninhos de pássaros. Ele só descobre isso quando a Fada Azul o salva da gaiola que Stromboli o prendeu e ele começa a mentir sobre como havia ido parar ali. Em uma das cenas mais memoráveis do cinema, o nariz dele cresce a cada mentira falada. Até os dias de hoje, esse acontecimento é lembrado e é a primeira coisa que associamos com o filme — mesmo que isso tenha acontecido apenas uma vez durante os quase 90 minutos de duração. O impacto foi tão grande que frequentemente pessoas tendem a chamar mentirosos de “Pinóquio”.

Para muitos, a história e narrativa de Pinóquio pode ser vista apenas como uma lição de moral para crianças: “respeite seus pais, vá para a escola e não se meta em confusão”. De certa forma, o filme é sobre isso, mas isso não significa que ele se limite ao discurso moralizante. Em um nível mais profundo, o boneco carrega o desejo de qualquer criança: ser real, se tornar alguém e amadurecer. Para isso, a Fada Azul, Gepeto e o Grilo Falante são os grandes catalisadores para esse desejo, fornecendo grande partes dos objetivos da jornada do boneco: seu arco principal é proposto pela Fada Azul e um dos caminhos para o final desse arco é o salvamento de Gepeto. O mais incrível, talvez, é como Pinóquio passa grande parte de sua jornada sozinho, sendo obrigado, na maioria das vezes, a aprender a diferença entre o certo e o errado por consequência de suas escolhas.   

Contudo, a profundidade de Pinóquio não se mantém apenas em sua narrativa, mas também no elemento principal dela: os personagens. O ponto que mais me chama atenção é Gepeto que, apesar de ser praticamente um personagem secundário, acaba sendo o mais intrigante. Nos primeiros minutos, vemos a vida dele: ele é um velho e humilde carpinteiro que vive de produção própria; ele mora com seu gato e peixe em sua própria loja. Rapidamente, acostumados com os padrões das animações, estranhamos algo: Gepeto é velho, não tem filhos e nem esposa. Por mais que isso possa ser uma escolha e você consiga ver a felicidade dele em momentos insignificantes — como quando ele constrói a marionete — você ainda pode se perguntar: “Será que ele está construindo esse boneco para preencher algum vazio em seu peito?”. Essa pergunta nunca será respondida.  

Além disso, Pinóquio é um dos únicos filmes que não apresenta o romance clássico que se tornaria muito comum nos filmes do estúdio — de certa forma, Disney é associada instantaneamente aos seus filmes de princesas e histórias de amor. O longa, contudo, prioriza a relação de amadurecimento, conhecimento próprio, lealdade e coragem, o que, sem dúvidas, deveria ser influenciado muito mais do que uma idealização romântica repleta de estereótipos e clichês. Além disso, vale citar outros pequenos momentos onde o filme acaba por quebrar com o próprio padrão Disney, como quando o Grilo Falante quebra a quarta parede e conversa com o público. 

Logo, é totalmente plausível dizer que Pinóquio é um filme revolucionário para sua época e uma peça única dentro de todos os projetos que a Disney já produziu. Em seu tempo, ele foi responsável por uma grande revolução em técnicas de animação e efeitos especiais, principalmente em relação a veículos — os quais ganharam movimentos mais realistas graças a uma integração do stop motion com animação 2D — e representação de chuva, raios e sombras. Além dessas técnicas que trouxeram um visual muito mais realista para o longa, o uso da Câmera Multiplano, uma técnica desenvolvida pelo próprio Disney, faz, em diversos momentos, o filme deixar de parecer uma animação 2D. Em um plano aéreo da vila, por exemplo, a câmera performa um zoom e todos os elementos mantêm suas proporções — quase como se aqueles fossem elementos que estivessem no mundo real. Depois, ainda, a câmera passa por um arco e entra em uma região que não era visível no quadro inicial. Em palavras mais ousadas, é um plano sequência feito em animação há 80 anos que conseguiu captar elementos e características das filmagens feitas em live action de hoje em dia

Em conjunto a isso, vale ressaltar os outros aspectos técnicos do filme, os quais são muito bem feitos. Em primeiro lugar podemos citar o uso de Mickey Mousing que em comparação com o anterior, Branca de Neve e os Sete Anões, e sucessor, Bambi, de Pinóquio, parecem ser bem mais refinados, agindo de forma quase imperceptível em alguns momentos. Grande parte da boa execução dessa prática vem da ótima sincronia entre imagem e som, ambos fatores que por si só também são ricos em detalhes e realmente mostram terem recebido uma grande atenção durante o processo de produção. Enquanto em cena vemos que o jantar do peixe Cléo fica pendurado por uma isca que boia na água, em outra podemos ouvir o barulho assustador da chuva e raios. Essas características já são incríveis, porém, quando se considera há quantos anos elas foram feitas, elas ficam ainda mais impressionantes.  

Contudo, não podemos atribuir a palavra perfeição à Pinóquio visto que o filme carrega alguns defeitos. O maior deles, talvez, se localiza no final do longa, quando o boneco, após fugir da Ilha do Prazer, encontra a casa de seu pai vazia e descobre, por meio de uma carta enviada pela Fada Azul, que ele havia sido engolido por uma baleia durante sua procura pelo filho. Rapidamente, o boneco é consumido por coragem e vai atrás da baleia que engoliu seu pai e, posteriormente, por inteligência ao pensar no plano para sair do mamífero. O que realmente incomoda é o fato dessa transição pontual das duas fases do boneco ser mal feita e quase omitida. Além disso, um dos elementos principais em todas as animações é a trilha sonora e, apesar da de Pinóquio ser bem feita, grande parte das canções acaba sendo relativamente esquecível.

Para concluir, para muitos Pinóquio ainda é apenas uma história básica e clássica sobre um menino travesso que tem se provar digno da realidade humana. Porém, como visto aqui, o filme vai muito além disso. A narrativa que foi adaptada de um livro cheio de violência e crueldade chega como uma fábula moral bonita, engraçada, divertida e fluida. Os detalhes de cada cenário e quadro são surpreendentes, enquanto toda a sonoplastia ressoa rica e atemporal — a cena do fundo do mar e toda a densidade sonora da água pode te deixar sem ar. Nos anos 1970, Stanley Kubrick comprou os direitos autorais do livro “Superbrinquedos duram o verão todo” e durante os anos 1990, o adaptou para se tornar uma versão moderna de Pinóquio, gerando o filme A.I. – Inteligência Artificial (A.I. Artificial Intelligence, 2001), dirigido por Spielberg. 60 anos antes, Pinóquio foi feito com a intenção de que ele fosse um ótimo filme para aqueles dias, seria sorte se sua grandiosidade durasse. Bom, ela durou.