Crítica | Pinóquio (2022), de Guillermo del Toro

Os minutos finais da nova versão da história de Pinóquio são um dos momentos em que a releitura de Del Toro mais diverge da clássica adaptação da Disney. Enquanto o longa lançado há cerca de 80 anos finaliza seu enredo com o boneco de madeira, finalmente, tornando-se um garoto de verdade, esbanjando felicidade para todos aqueles ao seu redor, esse novo filme do diretor apresenta uma abordagem voltada para o terror: diferente dos horrores e estranhamentos visuais dos outros trabalhos do mexicano, Pinóquio (2022) trabalha com a morte, ao decorrer do tempo, de seus personagens. Dessa forma, o longa é mais sombrio por explicitar que, com a vinda de uma “vida e corpo de verdade”, o garoto consequentemente estaria abraçando sua morte. Ou seja, se ele passou sua vida inteira correndo e desejando por uma vida que ele tinha como “vida de verdade”, no final, ele também estaria caminhando em direção ao fim dela.

Por mais que comparações com a obra cinematográfica dos anos 1940 seja inevitável, em essência, Del Toro bebeu da fonte original para sua versão de Pinóquio. O romance surgiu na Itália e foi criação de Carlo Collodi, por volta de 1880. Embora essa seja a versão verdadeira do conto, ela foi usada poucas vezes ao longo dos vários e vários filmes que tentaram criar sua própria visão da história — senão me engano, essa é a primeira desde que Spielberg adotou uma abordagem futurista para ela em A.I: Inteligência Artificial, em 2001. Trabalhando ao lado de Mark Gustafson, um especialista na técnica e arte da animação, mas que só faz sua estreia na direção com esse longa, Del Toro edifica uma obra-prima da animação que, ainda que estabeleça breves diálogos com o clássico encomendado por Walt Disney, pleiteia e enfrenta todas as outras versões da história do menino da madeira, apresentando-se como a mais original até hoje.

Ainda que Del Toro tenha optado por se inspirar no romance original — e da mesma forma que Disney, deixou passagens sombrias de tortura presentes no livro para trás —, isso não o impediu de expandir seu universo perante sua imaginação. Enquanto ele acrescenta personagens e novos círculos narrativos, ele também descarta outros e dá novos significados para aqueles já existentes. Logo de cara, o chamariz principal é a transposição do contexto histórico. Se no livro e filme de 1940, o ambiente era relativamente neutro e opaco, referente à Itália do momento de seus lançamentos e sem grandes informações, Pinóquio (2022) remonta o país durante o regime fascista de Mussolini, com esse tendo um forte papel no desenvolvimento do filme. Os dois melhores exemplos disso se traduzem em como um bombardeio durante a Primeira Guerra é responsável por matar o filho de Gepeto, Carlo, e quando bombardeios a uma escola militar para crianças substitui o parque de diversão onde o menino de madeira fumaria e beberia e seria transformado em burro antes de correr para salvar Gepeto em alto mar — vê-se Pinóquio (1940). Todavia, essas remodelações não substituem, propriamente, os momentos clássicos, mas sim trazem uma nova roupagem que enriquece com mais gradações narrativas, ainda que algumas só serão totalmente aproveitadas por jovens ou adultos.

Captura de tela de Pinóquio (2022) (Fonte: Netflix)

Para além do contexto social-político, outra instância chamativa é a introdução da religião. Gepeto é um devoto cristão, que dorme com uma cruz em cima de sua cama. Bem como, ele trabalha para a Igreja da pequena cidade em que mora, a qual frequenta constantemente. Todavia, depois da morte de seu filho, ele se torna descrente, questionando sua própria fé. Consequentemente, essa esfera é responsável pelas cenas mais intensas, ainda que inocentes, da narrativa. Em primeiro, o momento em que Carlo é morto por bombas dentro da Igreja, logo após trocar olhares com o crucifixo que ele e seu pai estavam construindo. Mais tarde, Pinóquio, depois de já ter sido humilhado pela população, olha para a cruz, agora finalizada por Gepeto, e pergunta o porquê de odiarem ele e amarem Jesus se ambos são feitos da madeira. Por fim, outro ponto é quando Pinóquio é crucificado por Mangiafuoco, onde as referências são totalmente inegáveis.

Porém, os esquemas religiosos vão muito além do que apenas uma introdução e contexto de fundo, mas carregam, novamente, um peso no andar do enredo. Diferente de apenas usar uma fada mágica para explicar todas as mudanças, Del Toro estendeu todos os aspectos metafísicos, dando um passo além, não se baseando inteiramente em uma religião, mas criando uma própria para seu universo. Como mencionado no começo do texto, a morte é uma temática muito presente, mas no sentido de que Pinóquio, por não ser “verdadeiro”, não pode morrer e apenas passa alguns instantes numa espécie de purgatório governado pela irmã da Fada Madrinha — uma cena bem balanceada entre um cativo infantil e um potencial estranhamento. Também, vale citar como a fada que dá vida para Pinóquio está mais próxima do mitológico do que humano — diferente das outras edições —, e a presença de espíritos que, embora não tenham tido algo muito bem desenvolvido, ainda assim servem como elementos para tapar os pequenos buracos que acabam funcionando numa escala maior.

Captura de tela de Pinóquio (2022) (Fonte: Netflix)

Com relação à manutenção, os personagens são ouro. Embora Gepeto, através das décadas, sempre tenha sido uma personagem secundária, ele é um dos personagens mais intrigantes da história. Na versão dos anos 1940, o curioso sobre esse personagem era como o desconhecimento sobre suas motivações geravam sentimentos esfingéticos do que propriamente passavam uma sensação de lacunas presentes — por que ele estava, em primeiro lugar, fazendo uma marionete?. Del Toro, por sua vez, responde essas perguntas de uma forma a manter todo viés esquemático do personagem, apenas transfigurando sua complexidade para outra área: se antes ele era hermético por falta de conhecimento, agora ele se torna um emaranhado de camadas que se completam. Nessa versão, Gepeto se transforma em um bêbado viciado que faz com que ele questione suas próprias crenças, como já dito. Ele fabrica Pinóquio na busca de recriar Carlo e, posteriormente, se estressa quando percebe que o menino de madeira não poderia ser seu filho morto. De forma geral, é mais fácil de colocar Gepeto como alvo de empatia pelas suas perdas, mas também mais fácil de detestá-lo por seu luto que respinga em outros injustamente.

Apesar disso, o destaque ainda acaba sendo Pinóquio. Por mais que eu não tenha assistido todas as adaptações de Pinóquio, o garoto desse novo filme parece ser o mais ácido e menos comportado, mas sem propriamente atingir um ponto que demonstra uma certa malcriação, mas sim uma carência do que é propriamente educado. É justamente nesse ponto que sinto outra comparação com o romance de Collodi, visto que no livro o menino tinha práticas ofensivas e violentas, como prender o rabo de um gato em um torno. Del Toro, no entanto, dá uma suavização nisso, mantendo Pinóquio em um arquétipo de criança que faz e fala coisas sem pensar, advindo de uma inocência, do que propriamente uma consciência maldosa internalizada. Isso fica claro quando observamos também suas ações nobres, como, por exemplo, quando ele concorda em trabalhar para Mangiafuoco acreditando estar ajudando Gepeto a pagar uma dívida sem saber que receberia uma quantia miserável por seus serviços. Ou ainda, no final, quando ele aceita ser mortal — gostei mais do uso dos termos “mortal” e “imortal” do que “menino de verdade” e “menino de mentira” — para salvar seu pai a tempo.

Captura de tela de Pinóquio (2022) (Fonte: Netflix)

Por último, vale ressaltar todo trabalho visual. Segundo o diretor, demorou de treze a catorze anos para desenvolver o filme por completo. Grande parte desse trabalho fica com o fato dele utilizar da técnica de stopmotion. O resultado compensa o trabalho, com o incrível número de detalhes e texturas, fundidos as clássicas distorções de personagens sendo amassados e sofrendo com efeitos de sanfona, resultando em um filme que, visualmente, é de tirar o fôlego. Em complemento, as músicas e toda parte de design tiveram uma atenção maior e cautelosa. Destaque principalmente para o nariz de Pinóquio que, ao invés de apenas ser uma pedaço de vareta de madeira que se torna mais longa, realmente evolui de um galho para uma pequena árvore — são esses detalhes que valem a pena.

Em suma, Pinóquio, de Guillermo Del Toro, é a versão mais singular da história, mas também é a mais universal. Esse vai muito além de questionamentos morais e relações de inocência, mas expande o universo: amizades em slowburn em momentos e por motivos errados, conflitos entre pais e filhos, problemas de identidade e questões que nem sempre precisam de respostas agora também fazem parte desse mundo. Há aproximadamente um ano, escrevi uma crítica para a versão da Disney de Pinóquio e lembro de ter escrito que: “Pinóquio foi feito com a intenção de que ele fosse um ótimo filme para aqueles dias, seria sorte se sua grandiosidade durasse. Bom, ela durou.” Para esse, no máximo, eu posso falar que desejo que dure.

Referências:

A. I. – INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL. Steven Spielberg. Amblin Entertainment, Stanley Kubrick Productions. Estados Unidos: DreamWorks Pictures, Warner Bros. Pictures, 2001.(146 min.).

COLLODI, Carlo. As Aventuras de Pinóquio. 1ª Ed. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2002.

PINÓQUIO. Direção: Hamilton Luske, Ben Sharpsteen. Produtoras: Walt Disney Productions. Estados Unidos: RKO Radio Pictures, 1940. Mídia digital (88 min.).

PINÓQUIO de Guillermo del Toro. Direção: Guillermo Del Toro. Produtoras: Netflix Animation e Double Dare You! Productions. Estados Unidos: Netflix, 2022. (120 min).