Blonde: a reconstrução erótica de Marilyn Monroe que finge ser crítica

Por: Eduardo Barbosa

Blonde deixa claro desde as primeiras cenas o objeto principal em torno do qual o enredo irá girar para contar uma história fictícia de Marilyn Monroe: o pai ausente. A relação conflituosa entre mãe e filha que o enredo delineia logo neste início do filme tem como causa principal esse pai. A cena na qual a mãe apresenta à filha pela primeira vez o retrato desse homem delineia bem a relação entre elas. Quando a menina tenta tocar o retrato é repreendida. Ela não pode tocá-lo, pois seus dedos o sujarão. A cena representa a visão da mãe sobre essa menina que é resultado de um relacionamento amoroso não convencional no qual a gravidez era indesejada. Norma Jean é a sujeira que arruinou um romance. Todo o enredo circulará, a partir desse ponto, em torno de uma busca desesperada de Norma/Marylin pelo pai.

A narrativa ganha ares de filme de terror quando a mãe acorda Norma no meio da noite para transportá-la para o meio de um incêndio. A mulher, que parece perturbada e confusa, está tentando alcançar o antigo companheiro em uma casa fora da cidade. Só passando pelo crepitar das chamas, pela fumaça densa, pelas fagulhas dançantes no céu, para encontrá-lo. Uma pista para o espectador vislumbrar onde, possivelmente, o pai está: em meio ao fogo. A menina questiona sua presença no mesmo lugar em que ela habita desde o nascimento e pergunta por que nunca a visitou e a mãe responde com uma surra. A reação é o ódio da mãe pela substituição. Se ela não existisse, o relacionamento ainda existiria. O flerte com o gênero de terror que permeia estas cenas não é por acaso. É uma metáfora para toda a trajetória de vida de Norma que o filme já anuncia nos primeiros minutos. Sua vida será como um conto de terror, esta é a tônica do roteiro.

Mais adiante o espectador é conduzido a observar o sentimento de amor e repulsa da mãe quando ela tenta afogar a filha em uma banheira. A morte da filha provocaria o retorno desse pai que desejou o aborto ao nascimento. A volta do homem é uma fantasia da mãe. Tanto o espectador quanto a menina não sabem se o pai está vivo ou morto. Mas a trilha sonora deixa pistas. A mãe conta sobre seu relacionamento amoroso proibido. A menina pergunta sobre o paradeiro do pai: “mas onde ele está?”. A resposta é o rosto abatido da mãe em um enquadramento em primeiro plano, acompanhado do som de uma mosca zunindo que não entra no quadro. É a pista para uma possível morte.

Grande parte do filme é apresentada em uma tela de aspecto 4:3, em formato de janela, como era comum no cinema sonoro dos anos 1950. Era o formato da tela na época de glória da atriz, tal como as antigas televisões. O formato serve tanto para mostrar como era a aparência do cinema clássico quanto para indicar a claustrofobia na qual vivia a personagem. Ela está presa à mãe, à figura do pai, à uma indústria de cinema machista e abusiva, como se estivesse dentro de uma caixa, sem muito espaço para agir fora de suas fronteiras. São muito simbólicos os momentos nos quais a tela quadrada se abre para uma tela cheia. Por exemplo, quando ela vai se encontrar com o pai e quando encontra os homens pelos quais se apaixona a tela se expande. A ideia transmitida nesses momentos é a de que o encontro com esses homens a libertará, essa possibilidade expande os horizontes da personagem.

A tela logo volta a se contrair quando as relações de amor se transformam em relações de violência. Norma está sempre em busca de aceitação. Parece buscar o pai em tudo e em todos. Inclusive chama seus maridos de “papai”, uma solução fácil do roteiro para conferir significado às suas relações amorosas desastrosas que teria como causa a figura do pai ausente. Ela quer ser a filha perfeita, mas nunca consegue. A única que consegue a perfeição é Marilyn, uma construção midiática erotizada, sempre sorridente, atraente e extremamente popular. Norma é aquela que chora e sofre e corre atrás do fantasma paterno. Marilyn é aquela que seduz e brilha nas telas e no tapete vermelho, uma máscara mantida em funcionamento com medicamentos injetados na veia e pinceladas de maquiagem. Há uma cena de camarim na qual Norma, em agonia, implora pela chegada de Marilyn enquanto seu maquiador a prepara. É um dos instantes mais espetaculares do trabalho de atuação de Ana de Armas que evidencia a artificialidade dessa criação midiática utilizada pela indústria para alimentar um público sedento pelo espetáculo de Monroe.

No entanto, se Andrew Dominik pretendia fazer uma crítica sobre a erotização extrema de Marilyn Monroe, sua intenção se perde pelo caminho. O filme mostra cenas e mais cenas de abusos sexuais que poderiam ser tomadas por denúncias ao machismo e à violência da indústria cinematográfica contra as mulheres, mas investe mais de dois minutos em uma cena repulsiva de sexo oral entre Marilyn e o presidente dos Estados Unidos, John Kennedy. O tempo longo demais da cena é pura reexploração da construção midiática de Marilyn, um flerte com o erótico que dessa vez utiliza o corpo de uma atriz latino-americana para provocar deleite.

Outro ponto que merece discussão em relação às violências que o filme explora de forma equivocada é a violência doméstica. Dominik opta por exibir uma cena em que o marido, um boxeador, agride Norma, seminua, com uma bofetada – tudo é mostrado em detalhes. Ele aproveita para utilizar ângulos de câmera nos quais ressalta a posição submissa da mulher e a posição de dominador do marido. Há certa erotização da relação violenta pela forma como se dá o desfecho da cena. Contudo, em outra cena mais extrema e mais violenta, não vemos as ações dos personagens, apenas escutamos as suas vozes, o barulho das agressões, e vemos um lustre que balança no teto. É como se essa escolha reiterasse que a violência doméstica é de âmbito particular dos envolvidos. Tudo bem mostrar um tapa, uma surra não. O que acontece no quarto do casal tem que ficar no quarto do casal. Este é um pensamento que vai na direção contrária às políticas de combate ao feminicídio. Em questão de violência doméstica contra as mulheres o quarto é político, não pode ser considerado privado pois é nele que a violência masculina se efetiva por ser considerado um lugar a salvo de olhares públicos. Por que explorar exaustivamente a erotização e os abusos sexuais sofridos por Marilyn e não explorar a violência doméstica sofrida pelas mãos do marido? Parece que o diretor está mais interessado em erotizar o sofrimento e não em denunciá-lo.

Há outros pontos negativos no filme, para além da reificação do corpo erótico de Marilyn. Um deles evidencia uma visão conservadora da maternidade e do corpo da mulher. Marilyn engravida, surgem imagens de um feto na tela. Ela decide não seguir com a gravidez e a interrompe. A imagem do feto continua aparecendo em cenas subsequentes por diversas vezes, até ganhar voz e interagir com a protagonista. Ele quer saber se ela o abortará novamente. A conversa está na cabeça de Norma, isso o espectador entende muito bem. Mas o que está nas entrelinhas é a visão de que um feto de poucas semanas já é um ser humano dotado de consciência e com capacidade de compreensão dos atos da mãe, por isso a interrupção da gravidez angustia tanto Norma. Trata-se de um posicionamento político contra o aborto. Isso fica gritante quando Marilyn sofre um outro aborto em um momento no qual estava decidida a levar a gestação até o fim. Ou seja, pagou o pecado da morte de um novo ser humano perdendo uma gravidez que ela tanto desejava. Vale lembrar que a Suprema Corte dos Estados Unidos revogou em 2022 o direito ao aborto que havia sido garantido por meio de uma jurisprudência. Essa reversão só foi possível devido ao posicionamento conservador de integrantes da Suprema Corte que representam setores conservadores da sociedade civil. O filme parece dialogar diretamente com estes setores conservadores do país que panfletam contra um procedimento que garante às mulheres a gerência de sua saúde e do próprio corpo.

Blonde exagera na quantidade de cenas de abusos sexuais sofridos por Marilyn. Seria compreensível este tom exagerado se fosse utilizado para criticar a construção midiática da atriz, ao invés de reiterá-lo. Mas o filme se interessa muito mais pelo corpo de Marilyn. Não é à toa que em uma das primeiras cenas do filme, que apresenta Norma já adulta, o enquadramento registra o movimento de seus quadris, de costas, enquanto caminha para uma mesa. A título de comparação, a quantidade de corpos masculinos nus em cena é mínima, já Ana de Armas está exposta o tempo todo, explorada milimetricamente ao ponto de ter uma câmera que emula uma filmagem do interior de seu corpo, no útero. Ou seja, a nudez da mulher ainda é o produto principal em determinados trabalhos dirigidos e escritos por homens. De modo geral, o filme que poderia ser uma crítica à estrutura machista violenta da indústria de cinema de Hollywood acaba por se tornar mais um modo de explorar a imagem de uma atriz erotizada mesmo após a sua morte.