Crítica | Tár: um ensaio dos mecanismos de poder sociais

Por: Nycolle Barbosa

Lydia Tár é uma grande maestrina. Mais do que isso, o filme a mostra como uma das maiores artistas da contemporaneidade, apontada em seu começo pela entrevista ao The New Yorker, ganhadora do seletíssimo grupo dos EGOTs (sigla que reúne os quatro principais prêmios do entretenimento dos Estados Unidos: E para Emmy, G para Grammy, O de Oscar e T para o Tony, respectivamente das áreas de televisão, música, cinema e teatro). 

Tal grandiosidade é tanta que o espectador pode ficar curioso com a cena anterior, na qual um telefone celular é posto em tela por um sujeito enigmático. Sendo visível apenas a sua troca de textos sarcásticos, é sugerido que Tár teve, ou ainda tem, uma conduta moral duvidosa que poderia minar a sua autoridade, logo obstruída pela construção de seu pedestal pelo entrevistador.

Além do EGOT, ainda na mesma cena, entramos mais em seu pano de fundo histórico de grandiosidade. Lydia foi uma pianista prodígio, levou os estudos para o campo da música indígena e, apesar de ser mulher e lésbica em um campo notoriamente masculino, o qual é o da música erudita, ela insiste que tais fatores não a impediram de alcançar o sucesso profissional, atualmente ocupando o posto de primeira regente mulher da mítica Filarmônica de Berlim. 

Entretanto, com tantas luzes postas sobre si o tempo todo, quando Tár chega em sua casa, ela literalmente mexe em seus interruptores, apagando-as. Esse elemento, sendo ou não coincidência para a semiótica narrativa, versa de uma característica psicologizante e, assim como os trabalhos anteriores de direção de Todd Field (In The Bedroom e Little Children), o drama psicológico vira seu assunto mais uma vez. 

No decorrer do filme, observamos a vida perfeita de Tár desmoronando enquanto ela se prepara para o lançamento de seu livro autobiográfico, Tár on Tár, e a tão esperada regência ao vivo da difícil Sinfonia nº 5 de Gustav Mahler. Similar a outros filmes do gênero, como o famoso A Professora de Piano (2001) de Michael Haneke, Tár (2022) focaliza na arte musical clássica, prolífico reino cinematográfico onde habitam os músicos com suas realidades obscuras e imperfeitas. 

No entanto, se o filme de Haneke foca de maneira mais escrachada na psicologia e castração materna acometida pela personagem principal interpretada por Isabelle Huppert em seus desejos sexuais reprimidos, o de Field parece propor um ensaio psicológico que dá mais questões do que respostas. Afinal, nunca temos uma resposta concreta e bem respondida dos abusos cometidos pela maestrina, apenas indicações, principalmente propostas pela cinematografia de Florian Hoffmeister. O uso do enquadramento, a posição das personagens em foco, assim como na cena em que Tár sobrepõe seu pé ao de Olga em cima dos discos de vinis, expressam dominação e sua relação com hierarquia e dinâmicas de poder. Fatores estes que evidenciam, apesar do fraco identitarismo em lutas de gênero e sexualidade, através de uma pessoa minoritária: porém, com tanto poder quanto Lydia Tár, o abuso em uma posição de poder é facilmente utilizado.

Dessa forma, Todd Field e Cate Blanchett deixam ao espectador um aspecto ambíguo entre a vida pessoal do artista e sua arte. Se a vida pessoal do artista afeta sua arte devido às suas experiências vividas, podemos ignorar suas atrocidades se a música for realmente boa ou temos que jogar no lixo tudo que foi produzido? Talvez toda a identidade de Tár  seja necessária para ocupar a posição de assediadora, majoritariamente ocupada por homens, em um ambiente profissional dominado por eles, para escrachar e satirizar as dinâmicas de poder tão comuns das narrativas sociais, e gerar a dúvida de sua demonização.

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