Crítica | tick, tick… BOOM! (2021), de Lin-Manuel Miranda

Por Laura Penalva

Lin-Manuel Miranda é amplamente conhecido por seus papéis no cinema e na Broadway, com foco para Hamilton (2016), e na composição de trilhas musicais. Ganhador do Emmy, Grammy e Tony Awards, desta vez Miranda se aventura pelo mundo da direção com tick, tick… BOOM!, lançado em 2021, no qual também faz uma participação especial como cozinheiro. O longa é uma adaptação cinematográfica da inovadora peça teatral de mesmo título (em princípio, foi denominada “Boho Days”), escrita por Jonathan Larson, compositor que alcançou um estrelato póstumo com RENT (1996).

No filme, Jonathan Larson (Andrew Garfield) é garçom do Moondance Diner e trabalha há oito anos na escrita de Superbia, um musical autoral. Ao mesmo tempo em que passa por um bloqueio criativo na composição da canção final, lida também com conflitos em seu relacionamento com Susan (Alexandra Shipp), sua namorada, a qual recebe uma oportunidade de emprego em um local distante; Michael (Robin de Jesús), seu melhor amigo; e com ele mesmo, o “artista não compreendido”. Possuidor de uma criatividade fora dos padrões, o protagonista sofre uma desilusão com a não produção de seu musical e decide investir em um próximo trabalho, que veio a ser tick, tick… BOOM!.

Ambientado na Nova York de 1990, ano do 30° aniversário de Larson, o longa entrega uma mistura entre o espetáculo teatral e o cinema musical, o relato dos acontecimentos e os acontecimentos em si, imagens de arquivo ficcionais e verdadeiras, desespero e paixão, biografia e ficção. Essas escolhas surgem como uma forma de manifestar visualmente a aflição do protagonista em relação ao tempo e suas decisões, além da sua grande capacidade criativa. O formato pode causar certo estranhamento no início, pois a montagem combina esses elementos abruptamente, mas com poucos minutos nos acostumamos ao seu dinamismo.

A cena inicial apresenta Jonathan em frames com proporção 1.33 : 1, remetendo às câmeras da época, em combinação com trechos de arquivo do prestígio recebido pelo dramaturgo após sua morte. Uma voz feminina afirma que o que estamos prestes a ver é verdade, exceto pelas partes inventadas por Jon, como é frequentemente chamado. Considerando que o espetáculo foi escrito por ele, não podemos distinguir, como meros espectadores, o fato e a ficção, e, consequentemente,  somos levados a assisti-lo sem julgá-lo por esse aspecto — o simples fato de ser um musical o isenta disso em certo sentido. Larson escreve sobre um tema de seu domínio, como é sugerido ao fim, e, por isso, a obra torna-se tão pessoal, apesar da ficção que a envolve.

Um tique de relógio — o qual ressurge em diversos momentos da trama — acompanha a abertura de modo a justificar e explicar seu título. Larson se preocupa excessivamente com o fato de estar prestes a completar 30 anos e não ter terminado seu musical, Superbia. A partir disso, o ruído é ouvido também em momentos de ansiedade e tensão, nos quais o protagonista não é produtivo (durante a escrita da canção final); quando “perde seu tempo” com assuntos que não lhe interessam (o trabalho de criação de jingles) ou em referências à morte (a descoberta de que Michael é soropositivo). O tempo atordoa Larson com frequência, pois existe uma urgência imposta por ele mesmo em fazer sucesso e ganhar a vida como escritor. Curiosamente, ele morre aos 35 anos devido a um aneurisma aórtico no dia da estréia de RENT, pelo qual é premiado postumamente.

Segue-se, então, a primeira performance musical, “30/90”, na qual enfatiza-se a preocupação de Larson em relação ao envelhecimento. Em oito dias, será seu trigésimo aniversário, e sua vida não é financeiramente ou profissionalmente estável — diversas personalidades famosas e até seus pais haviam alcançado grandes conquistas antes dessa idade. Trinta anos terão se passado, e nenhum grande objetivo alcançado. A partir de planos do seu cotidiano intercalados com os do número musical, reafirma-se sua ansiedade para o workshop de Superbia, o qual é enxergado como sua porta de entrada para o mundo dos musicais, e apresentam-se os demais personagens da trama, além da linha narrativa principal, referente à carreira de Jonathan como escritor. Em alguns momentos, apenas o instrumental permanece, enquanto em outros, transporta-se a canção em todos os seus aspectos, demonstrando o valor dessa manifestação artística na vida de Larson. Contudo, a inevitabilidade do envelhecimento e a impotência frente a isso deixam-no à mercê de um “Parabéns pra você” — não é possível ter controle sobre tudo à nossa volta e, às vezes, nos resta apenas lidar com as consequências.

Em outro momento, após uma apresentação de dança de Susan, há uma festa no apartamento de Larson, palco de mais uma performance — “Boho Days”. A canção salienta a habilidade de improvisação de Larson, que canta sobre as condições precárias de seu apartamento e as pessoas com as quais o dividiu; em uma posterior conversa com Ira Weitzman (Jonathan Marc), diretor de musicais, Larson admite praticar compondo canções sobre variados assuntos, a exemplo da sua composição sobre açúcar. Novamente, sua ansiedade em relação à passagem de tempo surge ao lembrar suas expectativas para com sua vida — até o momento, não possuía “esposa, filhos, nem um cachorro” —; mesmo assim, essa é uma das pouquíssimas performances que não faz uso da montagem para alternar entre espaços: ela se desenvolve por completo no apartamento de Larson. Assim, a permanência na comodidade do lar caracteriza este como um momento de descontração e bem-estar, sem a pressão da vida de escritor (mas, mesmo assim, por intermédio dela) e a preocupação com a passagem de tempo.

Um presente para os apreciadores de teatro é a presença de figuras de sucesso em dois momentos do longa: no workshop de escrita dramática e na performance de “Sunday”. Primeiro, compositores e dramaturgos como Alex Lacamoire, que havia trabalhado com Lin-Manuel Miranda em Hamilton (2016), Steven Levenson, Eisa Davis, Chad Beguelin, entre diversos outros, assistem à apresentação das composições iniciais de Larson. Depois, estrelas como Phillipa Soo e Renée Elise Goldsberry — as quais atuaram com Miranda em Hamilton —, Chita Rivera (West Side Story, 1957; Chicago, 1997), André De Shields (Hadestown, 2017), entre outros artistas, cantam no Moondance Diner com o protagonista. Apesar da ótima performance, a estética deixa a desejar devido ao efeito antidiegético causado pela computação gráfica: assim que a parede da lanchonete cai, vemos um cenário não convincente, o qual se destaca pelo contraste com as personagens. O mesmo acontece em “Come to Your Senses”, nos momentos em que Susan canta no terraço do apartamento de John — apesar da bela voz, o cenário acaba nos desligando da experiência do filme.

Outro desacerto é a relação de Freddy (Ben Levi Ross) com o enredo no geral — o conflito relacionado à sua condição de saúde não emociona, ou sequer nos preocupa. Com o chegar da próxima cena, esquecemos desse problema e focamos no relacionamento do protagonista com Michael, Susan ou sua carreira. Mesmo com sua personalidade amigável e boa performance como coadjuvante, o conflito do personagem é pouco desenvolvido.

Por outro lado, Roger (Joshua Henry) e Karessa (Vanessa Hudgens), apesar da breve participação nos acontecimentos da trama, são de extrema importância para as performances e entregam lindas atuações. Trabalhando como vocais em quase todas as canções, agregam força às letras de Larson a partir da sustentação de notas longas e da potência de suas vozes. Em “Therapy”, por exemplo, temos uma canção sobre o “romance moderno”, recheado de conflitos, e uma performance que se divide entre a apresentação teatral e a discussão entre Jonathan e Susan sobre o relacionamento deles. No início, a câmera permanece distante e se aproxima lentamente dos cantores, à medida que a discussão fica cada vez mais profunda, e o ritmo, acelerado, sinalizando um desabafo, a revelação dos sentimentos antes escondidos. Os sorrisos forçados de Jonathan e Karessa, em contraponto à letra e aos planos no apartamento, surgem, então, como uma denúncia às aparências: parecer feliz não é o mesmo que estar ou ser feliz. A montagem alterna as situações e evidencia a indecisão do protagonista em relação às suas prioridades. O que vale mais a pena: investir na carreira ou no relacionamento amoroso? Desse modo, a letra revela a complexidade das relações interpessoais — é preciso parar e ouvir atentamente para compreender o que é dito, caso contrário, ela não fará sentido, e o mesmo vale para qualquer relacionamento. É necessário diálogo e atenção.

Para fechar com chave de ouro, a canção final “Louder than Words” configura a performance mais impetuosa de Larson. Por meio de perguntas reflexivas, ele explora diversos assuntos que concernem ao cidadão comum e demonstra sua indignação para com eles. Finalmente, temos a possibilidade de ver a grandiosidade do teatro onde se apresenta e aqueles que o prestigiam: seus amigos, familiares e todos que tiveram certa importância em sua carreira, incluindo Susan, a qual não faz parte da platéia, mas assiste a ele despercebidamente. A iluminação toma conta do espetáculo e enfatiza a realização de seu sonho, sua satisfação em fazer o que gosta. Os múltiplos sorrisos do protagonista culminam em uma versão instrumental de “Parabéns pra você”, retomando a primeira canção. A montagem alterna entre planos de Jon compondo, celebrando com os amigos e cantando no palco, além de mostrar brevemente uma fotografia do elenco de RENT, de modo a trabalhar a complexidade da criação artística, a persistência de Larson e a importância dos amigos em sua vida. 

Da mesma maneira que somos levados a conectar essas informações de caráter distinto — performances no teatro, cenas do cotidiano, “imagens de arquivo” feitas para o filme, voice-over, realidade e ficção — com a finalidade de criar algo coeso, o protagonista escreve a partir de pistas do dia a dia — cartazes, sua discussão com Susan, a piscina —, juntando-as e transformando-as em algo único, dotado de sentido. Nesse âmbito, a montagem exerce um papel de destaque, pois é a partir dela que relacionamos as informações e somos apresentados à mente e à criatividade do compositor. Garfield representa brilhantemente seu papel e torna fácil a identificação com Jonathan, pois os problemas, as aflições, os sentimentos, a impotência, os sonhos, os sorrisos e as lágrimas representados, se fazem presentes na vida da maioria dos espectadores. Por fim, eu pergunto:

“Por que ficamos com amores que, no fundo, reconhecemos não serem ideais?
Por que preferimos nos submeter a um inferno a dormir sozinhos à noite?
Por que seguimos líderes que nunca se prestam a liderar?
Se somos livres, por que é preciso uma catástrofe para uma revolução se iniciar?” 
(tradução livre)

“Why do we stay with lovers who we know down deep just aren’t right?
Why would we rather put ourselves through hell than sleep alone at night?
Why do we follow leaders who never lead?
Why does it take a catastrophe to start a revolution if we’re so free?”
(original)

BIBLIOGRAFIA

SAVAGE, Mark. Lin-Manuel Miranda on the ‘dirty secret’ hidden in Tick, Tick… Boom!. BBC, 21 nov. 2021. Disponível em: https://www.bbc.com/news/entertainment-arts-59323479. Acesso em: 5 jan. 2022.

tick, tick… BOOM!. IMDb. Disponível em: https://www.imdb.com/title/tt8721424/?ref_=nv_sr_srsg_0. Acesso em: 5 jan. 2022. 

Este post tem um comentário

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    jerlanesena@hotmail.com

    Amei

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