Irreversível (Gaspar Noé, 2002)

Irreversível é um filme que ganhou fama e destaque pelo mundo por sua famosa cena interminável de estupro (com quase 15 minutos de duração) da bela Mônica Bellucci. Logo de cara, podemos experimentar através dos créditos finais (aqui iniciais) as primeiras sensações de incômodo e enjôo as quais o filme irá explorar impiedosamente. Com letras invertidas, música pesada, piscadas rápidas e um texto que vai se inclinando aos poucos, os créditos iniciam o filme prenunciando a sua temática (o desequilíbrio, a angústia e o incômodo) e sua forma narrativa contada por uma ordem cronológica inversa.

Em seguida somos introduzidos a uma movimentação de câmera frenética, que vai explorando os espaços de um prédio sem que se permita ao espectador se espacializar naquele ambiente. Em meio a uma conversa confusa de um idoso nu com um adulto vestido, juntamente com a câmera que não para e a trilha sonora ruidosa, vamos sendo gradativamente imersos num clima de grande tensão.

Por se tratar de uma narrativa de ordem cronológica inversa, o filme consegue nos transpor logo nos primeiros minutos a um estado de tensão compatível com o clímax de sua narrativa. Mesmo sem conhecer os personagens e seus conflitos, Noé cria com grande habilidade uma perseguição desesperadora em que Marcus (Vicent Cassel) procura Tênia (Jo Prestia), o responsável pelo estupro, em uma boate gay. Usando uma trilha que se assemelha ao som de uma sirene, somada a atuação vigorosa de Cassel que dá ao personagem uma imagem quase animalesca além da já citada movimentação de câmera que nos impede de enxergar exatamente o que está acontecendo naquele ambiente obscuro repleto de cenas que nos chocam (sadomasoquismo, linguagem obscena e pornografia), o filme completa a seqüência ininterrupta com um plano, desta vez fixo, de um rosto sendo brutalmente desfigurado por golpes com um extintor de incêndio.

Utilizando-se de cortes praticamente imperceptíveis o filme retrocede um pouco no tempo para nos explicar como os personagens chegaram até ali. Sem nos dar espaço para que nos recuperemos das pesadas cenas de violência, o filme nos mostra sem ocultar nenhum detalhe todos os momentos antecedentes das cenas iniciais.

Nos deparamos então com a cena crucial do longa. A câmera acompanha os passos de Alex (Mônica Bellucci) que se encontra muito bem arrumada e bonita, até um corredor deserto de um metrô mal iluminado por fracas luzes vermelhas. Alex então é abordada por um homem estranho e mal encarado (Tênia) que a ameaça com uma faca e então a domina. A câmera acompanha lentamente toda a ação, até ficar num plano fixo quando Alex é posta no chão e é barbaramente estuprada. Na cena não nos é poupado nada. Ficamos por intermináveis dez minutos próximos ao rosto de Alex enquanto observamos Tênia violentando-a até ele chegar ao orgasmo.

Quando acreditamos ter superado a pior parte do filme, inicia-se então a segunda parte da cena do estupro: o momento em que antes de ir embora, Tênia espanca e desfigura o rosto de Alex, numa ação em que novamente a câmera se posiciona em plano fixo num close do rosto de Alex.

Nas sequências posteriores prevalece um tom mais brando. Os movimentos de câmera se amenizam, e nós passamos a conhecer um pouco mais do universo das personagens e os seus relacionamentos entre si. É justamente neste momento em que o filme acaba sendo ainda mais cruel, não pelo uso de violência explícita, mas pelo forte uso da ironia dramática. Na sequência em que o casal está na festa, assistimos a um comportamento infantil de Marcus, que se entope de drogas e acaba destratando Alex, enquanto nós sabemos, e sofremos por saber que ele está desperdiçando os últimos momentos antes da tragédia. Em seguida, o filme não economiza em cenas belas, poéticas e singelas como, por exemplo, na longa sequência em que o casal acorda, troca carícias, dança uma música que está tocando no rádio, até que Alex vai tomar banho, e ao sair do chuveiro faz um teste de gravidez, que dá positivo. Novamente a ironia dramática é implacável, e o filme se encerra com mais uma imagem belíssima de Alex lendo um livro num parque cheio de vida, em que crianças brincam nas proximidades com o regador de grama. Somos então nocauteados por toda a beleza que somente nós, espectadores, sabemos que não irá durar muito tempo. E não dura. A imagem do parque logo começa a rodar cada vez mais rápido até que uma imagem branca toma conta da tela e começa a piscar rapidamente. O filme termina retomando a fatídica frase do início do filme: o tempo destrói tudo.

Não é por menos que o filme se tornou mundialmente famoso por seu excesso de violência. Considerado por muitos como apelativo e gratuitamente violento, o filme também contou com críticas entusiastas a seu respeito em que o uso da violência fora tomada como um grande mérito do filme.

De fato parece sempre muito fácil fazer uso da violência explícita para emocionar e comover o espectador, que imediatamente se compadece do sofrimento alheio. Entretanto não se pode negar que a violência exposta com o intuito de causar choque, faz com que o espectador saia de sua passividade sádica diante da violência (presente, mas nem sempre notada na grande maioria dos filmes) e passe a tomar uma postura mais consciente diante do que está sendo colocado na obra.

Em todo o caso é importante lembrar que o filme é bem mais do que as polêmicas cenas de violência explícita. Sua violência se faz quando não nos deixar ver entre sua movimentação caótica, o filme violenta também quando nos deixa ver mais do que desejamos, o filme violenta quando opta por mostrar o lado belo da vida em contraste com toda a feiúra da crueldade humana. O filme violenta porque nos faz testemunhar que o tempo destrói tudo, que o tempo é irreversível.

Raoni Reis Novo é graduando em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)

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