Devaneios estilísticos sobre o curta Fantasmas (André Novais, 2010)

João Paulo Hergesel[1]

 

É notável o uso de recursos expressivos na cultura audiovisual contemporânea. Com a expansão do acesso às novas mídias e a popularização de artefatos técnicos relacionados ao meio cinematográfico, tornou-se necessário reinventar a linguagem, explorando as camadas comunicacionais passíveis de suscetibilidade. Conforme menciona Ismail Xavier, surgiu há poucas décadas um novo estilo de fazer cinema – e para compreender as características que demarcam esse estilo, é aconselhável recorrer à Estilística.

Considerada por Charles Bally como a disciplina responsável por revelar os aspectos implícitos na relação entre linguagem e afetividade, a Estilística vem timidamente ganhando seu espaço como metodologia para análise de produtos midiáticos, principalmente em objetos pertencentes ao ramo da Comunicação. Vista por Pierre Guiraud como uma “ciência”, uma atualização da Retórica e da Poética aristotélicas, a Estilística deixou de tratar unicamente da literatura e já pode ser indicada para estudo e compreensão em todas as esferas de linguagem.

O audiovisual é uma forma de manifestação cultural na qual a Estilística pode interferir positivamente. As figuras de linguagem – metáforas, metonímias, antíteses, dentre tantas outras – são o maior modo de justificar a sua presença em um texto capaz de unir as estratégias de expressão sonora e visual. A aplicação desses elementos responsáveis por reforçar o nível de sensibilidade comunicacional – e consequentemente elevar o padrão de poeticidade de uma obra, demarcar pontos característicos de um determinado autor e fortalecer o vínculo afetivo com o espectador – pode ser notada, portanto, em produtos cinematográficos.

O curta-metragem Fantasmas (André Novais, 2010) é uma amostra do que se defende: a relevância dos aspectos estilísticos na cultura audiovisual contemporânea. Vê-se isso, inclusive, na sinopse do filme: ao optar por utilizar uma única frase nominal (“O fantasma da ex”) para sintetizar a obra, o autor, além de lançar uma gama de possibilidades para interpretação, ainda fortalece o caráter contemporâneo do filme. Para Walter Benjamin, por exemplo, a brevidade chegaria às narrativas (o que já se nota, em se tratando de audiovisual, em webséries, movisódios, videominutos, vines); ao caracterizar o filme com uma única frase, o autor corroborou o conceito de brevidade na narrativa e ainda criou uma espécie de metalinguagem com o produto em questão (sinopse curta para um curta-metragem).

A metalinguagem, no entanto, não se limita a esse fenômeno inicial; o filme como um todo é metalinguístico. Ao retratar, no filme, um indivíduo gravando um filme, além de fazer uso de uma câmera subjetiva – a qual, neste caso, pode ser considerada um artifício capaz de mesclar ficção e realidade, alcançando os padrões de verossimilhança, conforme menciona Tzvetan Todorov –, ainda se estabelece um processo de metalinguagem, extrapolando os limites da comunicação poética e mostrando que, para uma produção artística, a linguagem não tem barreiras.

Ainda com foco na câmera, é possível referendar três pontos de vista. O primeiro é a referência feita pelo filme à popularização dos produtos relacionados ao cinema: o que antes era característico de profissionais e empresas com altas condições financeiras agora é acessível a boa parte da população mundial; os preços de câmeras e microfones sofreram queda, e, além disso, esses acessórios já se encontram embutidos em aparatos tecnológicos, como celulares, smartphones e tablets.

Outro fenômeno visível é a chamada “lei do desperdício zero”, conforme menciona Guto Aeraphe. Na impossibilidade de aplicar recursos financeiros, o diretor do vídeo é obrigado a trabalhar com a verba que lhe cabe no momento, sem gastos desnecessários ou produções exorbitantes. Destinando a análise para uma linha mais marxista de interpretação de fenômenos midiáticos, ainda seria possível levantar um questionamento: a presença constante do posto de combustível, com foco na “bandeira” (a marca da empresa), seria uma crítica ao capitalismo consumista? Quiçá funcione como um desabafo: as artes, no Brasil, como o cinema, não são privilegiadas e a maior parte do dinheiro da Nação se concentra nas grandes empresas.

Por fim, estabelece-se também uma metáfora da vida contemporânea: ao demonstrar que um dos amigos conversava sem saber da gravação do áudio – e consequentemente, de todo o diálogo –, cria-se a ideia da inexistência do privado: o avanço da tecnologia acaba tornando público aquilo que não deveria o ser.

Permanecendo na ideia de metáfora do cotidiano, há toques de celular interrompendo o diálogo, ou seja, a interferência de um artefato tecnológico em um momento que deveria ser íntimo e corriqueiro. Os carros e os ônibus passando na rua e a liberdade linguística criada no diálogo (uso de gírias e plebeísmos, como em uma conversa coloquial, sem compromisso com a formalidade, tal qual o cotidiano) consolidam o que Beatriz Bretas denomina transformação do teatro prosaico da realidade diária em nuances de signos poéticos.

O ponto mais impactante para uma análise estilística, contudo, ocorre na parte final do filme. Ao aparecer o automóvel e Camila ser identificada como motorista, é possível, a princípio, interpretar o uso da cor e compreender a escolha do título e da sinopse. O preto (cor do carro) é comumente relacionado com a morte, atribuído ao luto, a elementos fúnebres; já a função de motorista é guiar, ser responsável pela direção, atuar como elemento fundamental para uma viagem. Nessa linha de raciocínio, portanto, Camila seria o foco de um episódio envolvendo uma morte, o fim de algo – ou o inacabado, o interrompido, a desconexão abrupta.

As repetições no desfecho, por sua vez, correspondem ao que a Estilística nomeia epizeuxe. A epizeuxe é uma figura de linguagem que serve, sobretudo, para criar ênfases, intensificar um pensamento. É perceptível, porém, que esse recurso não atua sozinho. Existe, em evidência, uma antítese na passagem: tão logo o rapaz garante que vai se esquecer de Camila (“Vou esquecer!”), a cena é repetida várias vezes, gerando uma oposição de ideias – e podendo ser, inclusive, interpretada como mais uma metáfora do cotidiano, da vida formada muitas vezes por ideias contraditórias.

Análises estilísticas são inesgotáveis. Seria possível escrever várias páginas sobre o estilo impresso em – e expresso por – Fantasmas que isso permitiria, futuramente, a produção de outro ensaio acerca desse assunto. Por isso, vê-se viável encerrar por aqui esta leitura comentada, lançando a outros pesquisadores, críticos ou simplesmente cinéfilos, a função de desvencilhar ainda mais a obra.

 

Ficha técnica do filme:

Disponível em: < http://www.filmesdeplastico.com.br/fantasmas/>. Acesso em: 13 mar. 2015.

 

Fantasmas

(HDV, 11min, 2010)

 

Roteiro e Direção: André Novais Oliveira

Elenco: Gabriel Martins; Maurílio Martins e Gabriela Monteiro

Câmera: Gabriel Martins

Som: André Novais Oliveira

Montagem: Gabriel Martins

Assistência de Direção: Mariana Souto

Assistência de Produção: Alessandra Veloso, Matheus Antunes e Thiago Taves

 

Prêmios:

  • Melhor Filme no 3º MIAU–Mostra Independente do Audiovisual Universitário. (GO)
  • Menção Honrosa na 9º Mostra do Filme Livre. (RJ)
  • Melhor Filme no VII PUTZ – Festival de Cinema Universitário de Curitiba. (PR)
  • Melhor Filme no VI Panorama Internacional Coisa de Cinema. (BA)
  • Prêmio Pesquisa de Linguagem no 15º Festival Brasileiro de Cinema Universitário. (RJ).
  • Prêmio Cachaça Cinema Clube – Melhor Filme Extra Campo – 15º Festival Brasileiro de Cinema Universitário. (RJ)
  • Prêmio especial do Júri no 4º Perro Loco. (GO)
  • Melhor Experimentação de Linguagem no 4º Perro Loco. (GO)
  • Prêmio Aquisição Porta Curtas – CURTA CINEMA. (RJ)
  • Melhor Filme Experimental – CURTA CINEMA. (RJ)
  • Menção Honrosa do Júri Jovem – CURTA CINEMA. (RJ)
  • Prêmio de Melhor Imagem – III Janela Internacional de Cinema de Recife. (PE)
  • Melhor Filme – Júri ABD-APCI – III Janela Internacional de Cinema de Recife. (PE)
  • Melhor Filme – Júri Janela Crítica – III Janela Internacional de Cinema de Recife. (PE)
  • Prêmio de Melhor Montagem – NÓIA – Mostra de Cinema Universitário do Ceará. (CE)

 

[1] Doutorando em Comunicação pela Universidade Anhembi Morumbi (UAM). Mestre em Comunicação e Cultura e licenciado em Letras pela Universidade de Sorocaba (Uniso). Membro do Grupo de Pesquisa em Narrativas Midiáticas (Uniso/CNPq). Contato: j.hergesel@edu.uniso.br.

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