A grande beleza

*por Luiz Fernando Coutinho

“Cada vez me sinto mais na periferia da vida, procurando entrada numa outra esfera que talvez não exista. Mas, ao Hipopotamus e ao Gallery eu ainda prefiro o – e me divirto muito mais com – meu infinito tédio”

“Divagar e sempre”

– Millôr Fernandes

Quando Sorrentino mostra em contracampo a vetusta Irmã Maria volver-se de forma dramática a Jep Gambardella, o protagonista de La Grande Bellezza, para anunciar, do alto de seus 105 anos, como le radici sono importanti (“as raízes são importantes”), existe quase um pretexto para que esta frase – a qual no contexto do filme adquire uma arrogância grotesca – seja correlacionada com a filmografia do cineasta italiano, que ganhou renome internacional quando dirigiu, há quase dez anos, o catártico Le Conseguenze Dell’Amore, filme que demarcou sua pompa técnica.

É com frequência que, em seus filmes, Sorrentino perpassa sua câmera com uma grandiloquência nababesca, buscando nos travellings flutuantes e na fotografia faustosa a expressão mais refinada do modo de vida burguês italiano – This Must be the Place pode não ser sobre a classe alta italiana, mas também não abdica do décor sorrentiano. Para o bem ou para o mal, é em La Grande Bellezza em que se sintetiza todo seu arsenal de ideias.

Se, em Le Conseguenze Dell’Amore, Sorrentino mostra um homem fechado não só no espaço físico – preso em um quarto de hotel pela máfia italiana – como também na tragicidade de sua vida solitária e alavancada pelo seu vício em heroína, e na cinebiografia Il Divo o espaço fílmico dá lugar a um político conservador ocluso na sua frieza calculista e no seu sonho pela glória, em La Grande Bellezza o que se vê é um jornalista prisioneiro de sua própria memória. Aliás, não seria estranho se este novo filme de Sorrentino se chamasse justamente Le Conseguenze Dell’Amore, uma vez que Jep Gambardella, interpretado burlescamente por Toni Servillo, não passa de um escritor sequelado pela experiência do amor na juventude.

A figura de Jep, jornalista que há 40 anos não publica um livro sequer, define a insegurança do retorno à memória, a fraqueza concomitante às reminiscências, a vida tornada refém do passado. Em determinado momento do filme, afirma que deixou de escrever porque é algo que exige concentração e calma, sob o pretexto de que isso não se conquista na sua condição de “rei da mundanidade”. A concentração, por dar vazão à lembrança de seu primeiro amor, Elise, não é bem-vinda, então a ideia de refúgio deixa de habitar a arte (mais precisamente a escrita) para ir de encontro ao mundo concreto, ao reino das festas, do prazer, do hedonismo.

Mundanismo este que, mesmo por baixo dos acordes eletrônicos da house music de Bob Sinclair, ou do minimalismo erudita de Arvo Pärt, do conceitualismo de David Lang e ainda do romantismo de Bizet, compactua com um exercício moderno sobre a prática barroquista italiana: aqui, a estética dos contrastes e dos movimentos e o fabulário de luzes e sombras se unem à temática agonizante do sofrimento (o plongée da Irmã Maria depois de subir de joelhos os degraus da escada santa de San Giovanni; o rosto contorcido de Gambardella ao descobrir que Elise está morta). O barroco, por sua vez, é escoltado por uma técnica suntuosa que não esconde – e pelo contrário, evidencia – a vacuidade moral, derrisória, internalizada no pseudointelectualismo de Jep, do ideário combalido de Sorrentino.

 “Não sei olhar as coisas com distanciamento (…) devo estar no meio das coisas (…) conhecer tudo de todos, fazer amor com tudo que está à minha volta.”, diria Fellini. E é por esta exata declaração que não se deve tributar à La Grande Bellezza a qualidade de exercício essencialmente felliniano: neste não se explora a figura do outrem, o outro lado, sacro, intocável, fechado em sua própria filosofia niilista, exaustiva e prolixa, que tergiversa, dá voltas sobre o próprio eixo como um jogo de espirobol. Sim, Irmã Maria, as raízes são importantes: elas servem para que imagens flutuantes não percam seu propósito de ser, para que encontrem um alicerce sobre o qual possam (e devam, sob o intermédio do espectador) existir.

A sequência final, compêndio derradeiro e inusitado do barroco berniniano, a qual nas palavras de Cortázar seria como a “lembrança fugida de sua corda do tempo (…), um presente mas em outra dimensão, uma potência atuando de outro ângulo de mira”: Apolo retorna à Dafne sob o lusco-fusco da memória, enquanto paralelamente se testemunha aquilo que Bernini definiria como o êxtase da santa (não de Teresa, entretanto, mas de Maria). “In fondo, è solo un trucco”, conclui Jep Gambardella, enquanto a imagem da jovem Elise, resguardada em silêncio nas profundezas de sua memória, lhe evoca a grande beleza que o escritor, enquanto artista, sempre procurou.

*Luiz Fernando Coutinho é graduando do curso de Imagem e Som e editor da RUA

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