Os Sonhadores (Bernardo Bertolucci, 2003)

Por Gabriel Dominato*

Os Sonhadores é um dos mais emblemáticos filmes sobre as revoluções de Maio de 68. Sim, porque foram várias: política, sexual, artística e cultural, e ao que tange ao Cinema foi de fundamental importância, pois deu ensejo a uma verdadeira revisão da indústria ao redor de todo o mundo: na França, com sua Nouvelle Vague, desenvolvidas pelas mãos de Jean-Luc Godard e François Truffaut, que iria invariavelmente inspirar e despertar movimentos semelhantes no mundo todo, como no Brasil, com o Cinema Novo explorado por Glauber Rocha e Rogério Sganzerla, no Japão com o experimentalismo de diretores como Nagisa Ôshima e Toshio Matsumoto, e na República Tcheca onde o experimentalismo chegaria ao máximo, dentre os países citados, pelas mãos dos filhos da FAMU (a tradicional faculdade de cinema de Praga), em especial por Vera Chytilová e Milos Forman, além de em boa parte do mundo.

De forma mais ou menos incisiva, todos estes fatores podem ser vislumbrados nesta obra – que a meu ver é a grande obra de Bertolucci. Alguns estão mais explícitos, como é o caso da sexualidade. Outros, embora não tão aparentes, também permeiam todo o filme, como a política, que no ano de 1968 sofria reviravoltas colossais, quando a juventude universitária de Paris tomou a universidade de Nanterre em protesto, no dia 2 de maio, como sua base revolucionária. Em pouco tempo, com o apoio da classe trabalhadora parisiense e em seguida de toda a França, conseguiram uma nova reeleição que tensionava tirar o então presidente Charles de Gaulle do poder, mas infelizmente o mesmo foi reeleito. É nesse período que o filme se passa, uma França, e principalmente Paris, de uma enorme ebulição cultural e politíca, um pedido de renovação pela juventude. Embora tais fatos não sejam plenamente apresentados ao espectador, não são um pressuposto para que ele se situe na trama, porém isto certamente ajudaria a aprofundar-se na trama, pois, basta saber, eram os anos 60, contexto de repressão politíca e o medo pairava, com os movimentos pacifistas contra a Guerra Fria, os Panteras Negras com suas brigadas armadas defendendo o direito civil da população negra norte-americana, os Beatles, a contracultura, o movimento hippie e uma infinidade de contestações da norma vigente, contra o american way of life e o Sonho Americano. É nesse contexto que ocorre Os Sonhadores.

Bertolucci buscou no livro Gibert Adair “The Holly Innocents” (Os Santos Inocentes em tradução livre, sem tradução para o português) a espinha dorsal de seu filme. Este é um livro que trata do triângulo amoroso entre dois irmãos franceses e um estudante americano que vai morar com estes após breve encontro na Cinemateca Francesa. O romance era, em vários sentidos, mais ousado que o filme, levando o aspecto da sexualidade a um passo além, porém refreando a profundidade que este abarca o Cinema.

Ao ser analisado nestes termos, Os Sonhadores tende a chamar maior atenção pelo fator sexual, onde são exibidos nus frontais despudorizados – um salve a isto – e totalmente amorais – e frise-se que amoral na melhor acepção de ausência de moralismo, que não se confunda com o inverso de moral, não havendo espaço aqui para isso, embora seja visto desta forma por espectadores mais recatados ou pudicos. Porém, em minha percepção, assistir à película por este ângulo é a forma errada de se desfrutar da obra. Lembremo-nos de que, em primeiro lugar, os sonhadores são cinéfilos e é aí que se encontra o cerne de todas as questões que o filme abarca.

Mais do que todos os demais aspectos, é no artístico que estas personagens habitam, em especial no território da sétima arte. Tudo que se expressa deles vem implícita ou explicitamente do Cinema, os diálogos e ações transbordam referências a filmes e seus realizadores. A arte imita a vida e eles imitam a arte.

Quando indagado sobre a sexualidade contida em Os Sonhadores, Bertolucci responde: “Sexo era revolucionário. Sexo era estar junto, em sincronia com a política, a música, o cinema, tudo era conjugado junto. Foi um grande privilégio poder viver nesse momento [referência ao Maio de 68]”¹. E tal qual o diretor se refere à época, da mesma maneira ocorre na progressão do filme: os sonhadores, que se conhecem na célebre manifestação de Henri Langlois em frente à Cinemateca Francesa, que estava prestes a ser fechada e seu curador despedido, se conectam pela paixão em comum: o cinema. Mas é o protesto, o inconformismo politíco que os leva a uma amizade e mais, a uma relação sui generis, regrada somente pela ausência de regras que a ideologia dos anos 60 tinha como molde, ou melhor, a ausência destas de uma maneira convencional. E é desta forma se dá seu relacionamento, sem seguir qualquer das convenções comumente estabelecidas para tais relações. (https://daveseminara.com/) Talvez aí resida a grande beleza e atração que a espécie de triângulo amoroso deles contenha.

Mais que uma homenagem aos belos tempos de revolução, creio ainda que Os Sonhadores é um elogio ao Cinema, e um dos mais belos já realizados, ao contrário do que Godard faz em O Desprezo – o qual também era uma espécie de declaração ao Cinema, mas com uma enorme falta de esperança para o futuro do mesmo. Bertolucci se foca tão somente no mais belo desta arte. É maravilhoso ver aquelas figuras – que homenageiam o Cinema, e em decorrência disto tornam-se figuras também homenageadas pela nova geração de espectadores – desenvolver um nível quase patológico de cinefilia. Creio que poucos possam entender o que é devotar uma vida inteira, ou grande parte dela, ao Cinema, mas aqueles incuráveis cinéfilos estão condenados a se idenficar com o trio, ao menos à parte que tange o vício que eles partilham.

A forma como Bertolucci se utiliza de imagens de arquivos e de filmes para recriar cenas merece destaque. Como a perfeitamente sincronizada versão de Theo, Isabelle e Matthew correndo pelo Louvre, que se intercala com os movimentos do filme de Godard de forma quase idêntica, reproduzindo os movimentos de Odile, Franz e Arthur, o triangulo amoroso de Bande à Part.

Sequência original da corrida no Louvre de Bande à Part de Jean-Luc Godard
Reprodução da corrida ao Louvre por Bertolucci

Ainda que o espectador não tenha interesse em política, sexualidade, música ou revoluções políticas/culturais, se o Cinema tem um papel efetivo em sua vida, seja como formação, ou como entretenimento, é impossível sair ileso desta declaração de amor à sétima arte, que completará 117 de anos existência e, que alguns já a consideram morta, como declararam alguns diretores no Quarto 666 de Wim Wenders, enquanto outros ainda acham que é uma arte que precisa se reinventar, tal como Godard tentou fazer por toda sua vida. De toda forma, Os Sonhadores homenageia tudo que o cinema representou para as gerações passadas, e as apresenta às presentes e futuras, como um registro de uma época, de um Cinema.
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¹ Black Film http://www.blackfilm.com/20040130/features/bertolucci.shtml

*Gabriel Dominato é graduando em Direito no Centro Universitário de Maringá e é redator do blog Avant, Cinema!

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