A Troca (Clint Eastwood, 2008)

Os valores da América profunda

« Uma história real ». Esta é a pequena frase que se insere logo após o título, sem qualquer concessão: nada de “baseado em fatos reais”, “inspirado numa história real”; para Clint Eastwood, seu material é a própria realidade. Se questionável por razões ontológicas (teríamos realidade no cinema, ou apenas impressão de realidade? A realidade não seria o autêntico se produzindo diante das câmeras?), ao menos percebemos a seriedade e o peso atribuídos ao projeto.

Seriedade esta quase sepulcral que já atesta o início preparatório: cenas rápidas de amor materno seguidos da mãe forçada a se ausentar da casa por uma tarde e deixar o filho sozinho. Uma imagem subjetiva nos mostra esta mulher se afastando, o filho que observa tristonho pela janela, como uma sombra que demora longos segundos a desaparecer de tela. Compreende-se, mesmo sem conhecer antecipadamente a história, que algo acontecerá ao garoto.

A Troca se desenvolve com um peso imenso conferido a cada imagem. Peso da premonição do roteiro (cada fase dita ao filho voltará no fim, reinvestida de sentido), peso de amor materno (ela olha fotos, passa a mão na cama vazia do filho…), peso da ausência devidamente fotografada (tons sombrios, protagonista sozinha em uma casa grande), peso de se trabalhar a partir de uma história real. Mas um peso, acima de tudo, de se trabalhar com a dualidade maior, entre o Bem e o Mal.

Como sempre nos filmes de Eastwood, o mundo não se pretende realista, e sim simbólico. Enquanto bom moralista, o diretor divide seus personagens entre, de uma lado, os brutos e maus; do outro, os puros e bem-intencionados. Os malvados deste filmes são muitos, com destaque para um policial cínico que, símbolo da preocupação das instituições com a própria imagem, reflete o problema da aparência em si mesmo: tipo charmoso, cabelos arrumados e dentes brancos, ele tenta resolver todos os problemas com um sorriso.

Outra figura é ainda mais interessante. Trata-se da encarnação do Mal em forma humana, um tipo que mata criancinhas à machadadas e, o melhor de tudo, sem motivo algum. Se ora parece louco, ora ele é dotado de perfeita racionalidade. Esse monstro (no sentido fantástico e não moral do termo) é provavelmente a melhor materialização do medo infantil da criatura que devora criancinhas. No folclore infantil no filme, a existência desse ser se justifica pela intenção didática que se porta em relação à criança/público.

Mas existe o lado de Christine Collins, a mãe cujo filho desaparece e que é obrigada a se contentar com o garoto errado, pois a polícia convence este último de atuar como o filho desaparecido na intenção de resgatar seu prestígio público. Nada mais injusto, nada mais errado do que apontar em uma mãe a incapacidade de reconhecer seu filho. Ela encarna o Bem, mas acima de tudo, ela encarna a figura de exceção, o que faz de sua história única, extrema, “digna de virar cinema”. Ela se bate contra tudo e contra todos, sofre as piores injustiças do mundo. A verdade é dividida unicamente com o público que, à frente dos personagens, estabelece uma conexão de compaixão com a protagonista.

Existe outra pessoa que a ajuda a lutar pelos seus direitos. No caso, trata-se de um padre que fala pouco de Deus e muito de justiça social. Enquanto a polícia, os médicos e todas as instituições são corrompidas, Eastwood atribui à Igreja, ainda pura e confiável, todas essas funções. Assim o tal padre fará as vezes de detetive, advogado e líder partidário. Em A Troca, a sociedade é corrompida, mas a razão permanece intacta e encontra seu representante no campo da religião.

Neste longo épico justiceiro, extremamente arquetípico em sua visão de mundo, o cinema é uma prova admirável e ostentatória de know-how, de beleza e excelência técnicas. Fotografia de grande efeito (cenas de assassinato confessas numa sala à meia luz, com o reflexo da chuva batendo no rosto), montagem rápida que privilegia as ações à contemplação e uma direção sempre curiosamente fluida, que evita tanto os planos completamente fixos como os grandes movimentos de câmera, situando-se num steady-cam que flutua durante as cenas, em especial em zoom in rumo ao rosto lacrimoso de Angelina Jolie.

A Troca é de uma beleza notável, mas não única: trata-se de uma beleza normal às grandes produções de estúdio norte-americana, beleza de um grande orçamento, beleza de uma boa técnica, beleza que se acredita necessária ao “épico clássico”, como vimos recentemente em Sangue Negro (2007), por exemplo, que também apostava no scope suntuoso, na trilha poderosa e nas figuras de exceção.

Nesta trajetória de purificação, a heroína se sacrifica não só por ela, mas por todas as outras mães e todas as outras pessoas que já foram injustiçadas e não ousaram procurar reparação. Christine Collins representa o Bem, a justiça, a mulher independente e o americano forte. De “real”, neste contexto, temos o fato histórico que deu origem ao filme, mas, acima de tudo, a crença real de Eastwood num mundo maniqueísta, nos valores tradicionais, no poder da família e no cinema como elegante veículo de conteúdo moral.

Bruno Carmelo é graduado em Cinema pela Faap e mestrando em Teoria e Crítica de Cinema na Universidade francesa Sorbonne Nouvelle

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Este post tem 2 comentários

  1. Author Image
    Teresa Vuilhora

    Boa tatde!

    filme maravilhoso, fotografia, perfeito!!!!

    só ficou no ar o destino do menino que contou sobre os assassinatos, o que aconteceu com ele.

    De todos, ele é a pessoa que mais senti dó!!!! e quem mais precisava de amor e cuidados!!!!

    grata

  2. Author Image
    vanilda

    Parabéns, Bruno Carmelo!
    Sabe, de uma impressão do que se desejava exatamente ler a respeito deste filme? foi assim que apreendi no seu texto. Para mim, perfeito.
    Quanto ao filme propriamente dito, concordo com o vácuo que Teresa Vuilhora apontou; o que me pareceu, é que, apesar do medo que esta criança-testemunha possa ter sentido, mereceu em seu personagem, ser incentivado os valores éticos para o ser humano, embora convenhamos – tremenda cobrança para sua idade – mesmo sob o temor do que lhe advinha, marcou sua preferência pela não omissão pois que, o breve tempo em que esteve com o(os) coleguinha(s), deve ter se estabelecido um grande elo de amizade em que lhe pesou mais “a justiça” não por rebeldia: sua expressão facial denotava angústia do peso que lhe estava sendo conferido – presumo que ficou sob a guarda de autoridades tutelares idôneas, ele tenha tomado o seu rumo com as devidas preservações para sua identidade. Vez que, punição ele não precisava!!! bastou ser instrumento de um psicopata, para o qual ele não tinha força alguma, a bestialidade ele já havia presenciado e obrigado a fazer parte. Mas, sim… esta falta foi sentida. Escritores, roteiristas, diretores, tal qual poetas se permitem deixar estes vazios, embora estranhemos – às vezes trata-se de fato, perder-se na história – posso estar equivocada, pareceu-me digamos algo semelhante a “uma licença poética” .

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