Wanderson Lima*
As narrativas fílmicas do iraniano Majid Majidi se situam em algum ponto intermediário entre a fábula e a parábola religiosa. Mas esta atmosfera de moralidade, simplicidade e poesia que a fábula e a parábola trazem em si, não fazem com que Majidi situe suas histórias num espaço indefinido e universal e num tempo, por assim dizer, fora do tempo, mágico. Não, as narrativas de Majidi acontecem no Irã dos dias de hoje, com todos os conflitos que lhe são próprios. Assim, a tensão básica de seus filmes se dá entre o desejo de transcendência, isto é, a fome de espiritualidade e a ausência desta na condição histórica do Irã atual. Como o herói problemático descrito por G. Lukács em A teoria do romance, os personagens de Majidi estão em busca de valores autênticos num mundo inautêntico, reificado. Porém, essa busca de valores autênticos não se dá numa perspectiva reflexiva, pois se trata de personagens simples, do povo, e não de intelectuais. Majidi arma um conjunto de vicissitudes que vai empurrando suas criaturas rumo à redenção: elas aprendem na prática, levando porradas no dia-a-dia.
Essa estrutura fabular dos filmes de Majid Majidi é uma faca de dois gumes, pois a simplificação que ela promove na estruturação dos conflitos, seu moralismo indisfarçável e a ausência de profundidade psicológica dos personagens, pode facilmente levar o filme ao fracasso estético. Os filmes de Majidi, assim, estão sempre resvalando em pólos opostos: simplicidade e simplismo; autêntica visão de mundo religiosa e auto-ajuda com seu otimismo de boutique. Quando a simplicidade e a perspectiva religiosa (Majid se afina com a postura Sufi, a vertente mística do islamismo) vencem, surgem bons filmes, como Filhos do Paraíso (1997), Baran (2001) e este mais recente A canção dos pardais (2008).
Toda vez que Majidi triunfa, o triunfo é da simplicidade. A canção dos pardais tem como um de seus mais notáveis méritos o de evitar certos abusos de artifícios que tiraram parte do brilho do incrivelmente bem filmado A cor do Paraíso (1999): o artificialismo das imagens de extração poética, com seus “acasos” rigorosamente premeditados e às vezes por demais didáticos; o registro de imagens belas mas ocas de sentidos; o abuso da câmera lenta e o apelo melodramático. Por estes fatores, um crítico brasileiro de muito respeito, disse, em tom de ironia, que para se descobrir se um filme é de Majid basta constatar se há câmera lenta e criança chorando. Sim, em A canção dos pardais também há câmera lenta e crianças chorando, mas agora as crianças choram na hora certa e a câmera lenta é esteticamente eficaz.
A canção dos pardais conta-nos a história de Karim, um zeloso trabalhador de uma fazenda de avestruzes que, tendo perdido o emprego, devido um de seus ajudantes ter deixado fugir um avestruz, torna-se moto-taxista na metropolitana Teerã. Porém, a mudança de ares, da pacata fazenda para a caótica Teerã, pouco a pouco começa corromper o caráter de Karim, que vai se tornando irascível e materialista. O fundo moral do filme, portanto, mescla Rousseau e o Sufismo, isto é, a condenação da urbe como antro de corrupção e condenação do acúmulo de bem materiais como afastamento do homem à essência divina. Alguém poderia argumentar que estes topoi são bastante conhecidos e já foram encenados diversas vezes. É verdade, mas para os narradores – romancistas ou cineastas – que optam por uma estrutura fabular isso não importa, pois eles sabem que estão lidando com a sabedoria do povo, com o senso comum. A grandeza, para eles, não consiste em gestar uma idéia original, mas em ilustrar competentemente, por meio de uma narrativa que prenda a atenção, um saber de domínio geral. Isto, não se deve ter dúvida, Majid Majidi fez bem em A canção dos pardais. O enredo é bem articulado e cheio de símbolos e duplos, ainda que às vezes óbvios; o registro de câmera tem uma dinâmica e uma fluência pouco vistas no cinema iraniano. Se compararmos, por exemplo, a câmera de Majidi com a de Abbas Kiarostami e Jafar Panahi, iremos observar a diferença entre um cinema que pede uma adesão intelectual e uma postura de distanciamento (Kiarostami e Panahi) e outro que nos convida a viver a emoção dos personagens (Majidi).
Essa forma “ocidentalizada” de Majid Majidi filmar, chamando nossa participação emotiva na história, não visa, porém, eclipsar nossa faculdade de julgamento e diluir nossa percepção em pura experiência sinestésica, como se vê em parte dos filmes de extração hollywoodiana. Não, Majidi, bom moralista, simpatizante da doutrina Sufi, quer nos chamar a atenção para a “prisão da matéria”. Majidi nos cola ao protagonista para que a catarse que o personagem realiza ao longo do enredo seja nossa também. Falei “enredo”, mas num cineasta como Majid os elementos da catarse estão funcionalmente distribuídos nos elementos sonoros e visuais do filme. No caso específico de A canção dos pardais, o filme contém vários pares antagônicos – campo versus cidade; avestruz versus pardal; pai versus filho; indivíduo versus comunidade – a partir dos quais se desenrolam os conflitos de éticos Karim e sua via crucis purgativa. Destes pares, aquele composto pelas aves exerce um papel preponderante. No plano sonoro, por exemplo, vale observar o sentido símbolo do canto das aves ao longo do filme, que funciona como comentário do estado psicológico do protagonista. Da mesma forma, é a visão dos avestruzes, num ponto essencial do filme, que leva Karim a mudar de reflexão. Noutro ponto, quando ele liberta um pardal preso em uma sala ele realiza sua própria libertação. E no desfecho muito eficiente, é o avestruz que, por assim dizer, ritualiza o sentimento de Karim.
A canção dos pardais louva a vida em comunidade, o diálogo na família e a prevalência do espiritual sobre o material. Coisas antigas e caretas, mas que doam um sentido fundamental à vida de muitas pessoas. Trata-se de uma canção, essa de Majidi, contra o esvaziamento espiritual que se apossa do self-made man e faz com que a vida dele seja um tormento sem repouso. Neste sentido, Karim, o protagonista, é o antípoda do personagem de Will Smith em À procura da felicidade (2006). Deve haver, afinal, muitas moradas no reino da Felicidade, e encontrar um bom emprego não deve ser o único transporte para se chegar até lá.
Wanderson Lima é poeta e ensaísta. Professor de literatura da Universidade Estadual do Piauí – UESPI e doutorando em Literatura Comparada pela UFRN. É co-editor da revista dEsenrEdoS (http://www.desenredos.com.br/) e mantém o blog O Fazedor (http://blogdowandersonlima.blogspot.com/
Os filmes de Majid são sempre carregados de uma profunda mensagm humanística. Parabéns ao redator e à revista por esta esclha. Só gostaria de acrescentar duas informações: o ator-protgonista deste ganhou com muita justiça o prèmio de melhor aor no festival d Berlim; Majid va filmar agora uma trilogia sobre a vida de Maomé. Vamos torcer para que o filme ajude a quebrar alguns estereótipos negativos sobre o Islamismo.
Parabéns ao redator da crítica, que tão bem analisou o filme e o cinema virtuoso deste prodigioso diretor Majid. Não passamos indiferentes às interpretações deste diretor sobre a matéria maravilhosa que é o ser humano. Mas não o vejo como diretor de engajamentos políticos, mas inpirado talvez no cinema de David Lean, que sempre triunfou na simples ótica do oprimido. A sua insistência com crianças é por que os sonhos e sentimentos delas são crus: ainda não estão corrompidos pela miserável disputa do “pão de cada dia”. Fiquei muito comovido com a beleza da cena em que o pai surpreende-se com o êxito do filho e seus colegas recuperando o reservatório de água. Assim também na sequência em que, impotente com a doença, vê emocionado sua família cuidando deles. Deixemos os pré-conceitos! Já ouvi um comentário totalmente equivocado de um Sr. Jabor sobre “Os Filhos do Paraíso” e também “A Vida é Bela”, dizendo que eram “mais uns filmes de criancinha”, só por que aquele ganhou o Oscar concorrendo com um filme filme brasileiro não menos belo e também “de criancinha”: Central do Brasil.
Gostaria de ver este filme com legendas em português. Como consigo? Rosangela.
Belo filme, realismo e poesia misturados numa busca do sentido da existencia!
MUITO BOM O FLME DE MAJID MAJIDI;A CRÍTICA É QUE ME PARECE PRECONCEITUOSA! JÁ É UM MILAGRE FAZER FILMES NUM PAÍS DEMONIZADO PELO OCIDENTE COMO O CASO DO IRAN!PRA QUEM PRODUZ NOVELÕES COMO NO BRASIL,É EXIGÊNCIA DEMAIS:VÁ PEGAR NO PÉ DA GLOBO
!CONHEÇO MUITO BEM O@uol:disqus