Um Beijo Roubado (Wong Kar-Wai, 2007)

Um Beijo Roubado: um road movie tão instável quanto uma viagem pode ser

Por Diego Y. Anami*

“Os filmes vêm da vida. Mas filmes não são a minha vida”, afirma o diretor chinês Wong Kar-Wai no documentário Buenos Aires Zero Degree (1999). Talvez este seja o grande mérito demonstrado por Kar-Wai ao longo de sua carreira, a capacidade de transpor fragmentos da vida para as telas com o máximo de sentimento, mesmo que sua forma cinematográfica não se aproxime tanto do neo-realismo italiano ou do cinema documental, ela se aproxima da vida na medida em que sua câmera não funciona como um olho, mas como um pedaço da mente: a memória. Os recortes, os filtros, as luzes, os enquadramentos, as mudanças na velocidade, as músicas, os silêncios, as palavras e as expressões formam filmes que são como lembranças visuais. É praticamente impossível sair do cinema após assistir a um filme dele sem reflexões em mente acerca das perdas, da efemeridade, da dor, do amor e do tempo.


Desde seu primeiro longa-metragem em 1988, Conflito mortal, o diretor já mostrava seu potencial e um princípio das marcas autorais que viriam a consagrá-lo. Seus filmes seguintes, Dias selvagens (1991), Amores Expressos (1994), Ashes of time (1994) e Anjos Caídos (1995), são muito bons e demonstram um diretor-roteirista ousado que não se incomoda em transgredir regras do cinema clássico. Nos três filmes seguintes Wong Kar-Wai continua em ascensão, Felizes juntos (1997), o qual lhe rendeu o prêmio de melhor diretor no Festival de Cannes em 1997, Amor à flor da pele (2000) e 2046 (2004) são filmes que têm grandes chances de serem lembrados ainda daqui a décadas como obras-primas da virada do milênio, o diretor já está maduro, seu cinema está mais sólido e a ousadia já é marca registrada. Em seguida, em Eros (2004) – longa em três capítulos, um dirigido por Steven Soderbergh, um por Antonioni e um pelo chinês – Kar-Wai mostrou não dever nada a nomes mais conhecidos e consagrados. Portanto, Um Beijo Roubado junta a estréia em língua inglesa do talentoso diretor, estrelas hollywoodianas e Norah Jones. Porém, o que se vê não poderia ser mais decepcionante. O filme é instável, a história em alguns momentos não envolve, a fotografia é razoável e a ousadia wongiana está limitada.

Pode-se dizer que o filme conta três histórias, todas envolvendo a personagem principal Elizabeth (Norah Jones). O primeiro segmento narrativo desenvolve a relação entre a protagonista e Jeremy (Jude Law), que se conhecem por acaso na lanchonete deste, tornam-se confidentes, partilham suas frustrações amorosas e um romance em potencial surge à tela. Mas Elizabeth sai em uma viagem pelos Estados Unidos e a história de ambos passa a se desenvolver paralelamente até o desfecho. Esta é a história que nomeia o filme, tanto no título original quanto em português. Mas as coisas parecem se passar muito rapidamente, a construção da personalidade de Jeremy e de Elizabeth, bem como do romance entre eles ocorre com uma sucessão de cenas pouco envolventes, as quais não passam uma dose de sensações suficiente para se entrar na história. Toda a fase do relacionamento do casal desde quando eles se conhecem até se apaixonarem é resumida nos vinte minutos iniciais do filme com várias cenas curtas e vários saltos temporais. Sendo que poderia ser mais funcional menos cenas contando mais, com contemplação de imagens e um ritmo capaz de criar uma tensão e passar o sentimento no ar, como já foi feito pelo diretor coreano em Amor à flor da pele, por exemplo.

No segundo segmento narrativo, Elizabeth em meio à sua viagem depara-se com o casal Sue Lynne (Rachel Weisz) e Arnie (David Strathairn) que após o fracasso de seu casamento vive um momento de ódio, dor e tristeza. Este é o ponto alto do filme, diversos elementos conspiram a formar uma diegese que incita o espectador a sentir junto com os personagens: as luzes e filtros, o bar com jukebox (que lembra cenas de Anjos Caídos), alguma dose de violência, a trilha sonora, os planos de rosto que ressaltam as expressões (recorrente nos filmes anteriores de Kar-Wai) e as cenas em slow motion (efeito já utilizado muito bem, por exemplo, em Amor à flor da pele).

Nesta seqüência o filme assume um ritmo mais brando, as falas de Arnie embriagado no balcão do bar e de Sue Lynne na sarjeta, falando a Elizabeth sobre como conheceu o ex-marido, mostram que cenas mais lentas contando mais podem ser mais eficientes que uma sucessão de cenas com várias ações como no início do filme. As personagens muito bem interpretadas por Rachel Weisz e David Strathairn são muito humanas em suas passagens do ódio à dor, afinal somos mesmo instáveis, principalmente quando o assunto é amor.

Uma das cenas melhores cenas do filme é com certeza a aparição de Sue Lynne. A montagem e a fotografia atuam mostrando Rachel Weisz andando de forma a quase brilhar na tela enquanto Otis Redding canta Try A Little Tenderness: “Oh she may be weary/ And them young girls they do get weary/ Wearing that same old shaggy dress” (Oh ela pode estar cansada/ e elas jovens garotas elas ficam sim cansadas/ Vestindo aquele mesmo velho e felpudo vestido), alguns planos mostram Arnie no balcão com um copo na mão e uma cara de derrotado, os enquadramentos formam molduras naturais, as luzes do bar dão um tom meio avermelhado ao ambiente, um rápido plano mostra Elizabeth com o reflexo de um relógio ao fundo, o que talvez simbolize a tônica da cena: o tempo passa, a vida passa… E a música continua: “Try a little tenderness” (Tente um pouco ternamente). E ela se vai.

Rachel Weisz como Sue Lynne

A terceira história do filme conta a relação da protagonista com Leslie (Natalie Portman) uma jogadora de pôquer que tem problemas de relacionamento com o pai e encara a vida como um jogo (neste aspecto, com certeza, assemelha-se à jogadora de 2046 que decide seu futuro com o protagonista através das cartas). Kar-Wai volta a falar de laços familiares (como fez muito bem em Dias Selvagens, por exemplo), mas nesta história os diálogos estão fracos e nem um pouco originais. Os problemas de Leslie não se tornam interessantes, um dos motivos pode ser que a relação dela com a protagonista é mal trabalhada, elas se conhecem e se tornam próximas muito rapidamente (assim como ocorre na relação de Elizabeth com Jeremy), outro motivo pode ser o fato de que Leslie não é uma personagem muito simpática, ela é imatura e mentirosa, e os seus atos também não fazem com que se crie muita empatia com os espectadores.

Um Beijo Roubado é um filme instável e razoável, muito longe do que se poderia esperar do talentoso diretor chinês. Um dos motivos com certeza é a ausência do diretor de fotografia Cristopher Doyle, que normalmente trabalha com Kar-Wai. Outra razão está na falta de ousadia. Para um cineasta que afirmou: “O Acossado deu-me o gosto da liberdade. Percebi que era possível transgredir algumas regras da narração e da filmagem”, e que já fez filmes abusando de recortes e de improvisação, com certeza My Blueberry Nights demonstra uma contenção na transgressão de regras. É um filme conservador perto dos anteriores, faltam os recortes na montagem, mais enquadramentos ousados, mudança na velocidade das cenas, mais planos dedicados à contemplação visual e originalidade nos diálogos.

O filme é um road movie tão instável quanto uma viagem pode ser. Espero que não venha a servir como uma metáfora da trajetória de Wong Kar-Wai nos Estados Unidos, a qual começou por baixo e pode vir a ter altos… E muitos baixos, segundo o que se mostra por este filme.

*Diego Y. Anami é graduando em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).

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