A Tragédia Contemporânea
Por Suzana Altero*
Cassandra´s Dream é o mais recente filme do diretor Woody Allen, que parece ter escolhido trilhar por gêneros mais sérios, ao invés da comédia, há algum tempo. O filme denuncia valores familiares superficiais e enfoca os lados menos admiráveis dos seres humanos. Ao trabalhar essa realidade, o diretor usa a mitologia e tragédia grega. Elas estão presentes no estilo de trama, além de, por meio de suas histórias e personagens, enfatizarem a mensagem do filme.
A história do filme gira em torno de dois irmãos, aparentemente não só de sangue, mas de unha e carne. Eles são apresentados e muito bem caracterizados pela situação e pelo diálogo já na primeira cena do filme: a compra de um veleiro que carregará o nome de uma aposta vencida por Terry, Cassandra´s Dream.
Terry é um mecânico com variados vícios como remédios, bebida e apostas. Ian, um homem mulherengo, ajuda o pai a contragosto no restaurante familiar enquanto sonha investir no ramo de Hotéis na Califórnia… Já é possível prever o ponto que faz deslanchar a trama: Terry, depois de uma onda de sorte, encontra o desespero nas mãos de agiotas por causa de uma dívida de 90.000 libras. Para a sorte da trama, há um tio rico na família trabalhadora. Assim, quando os irmãos já se vêem quase sem saída, o tio reaparece. No entanto, o parente não se dispõe a ajudar gratuitamente a família como anteriormente. E, em troca dessa pequena fortuna que salvaria Terry dos agiotas e Ian de sua carreira indesejada, o tio pede aos sobrinhos que se transformem em assassinos para livrá-lo de um fatal processo.
O filme, explorando as relações familiares e o que estas carregam como a suposta fidelidade, lealdade e companheirismo (“blood is blood“), busca de fato é o desmascaramento das personagens, que poderiam, talvez, ser estendidas aos seres humanos. O caráter dos irmãos é questionável já antes mesmo da proposta indecente do familiar, assim como os das outras personagens presentes na tela. Ian usa deliberadamente os carros que o irmão trabalha na oficina para formar uma imagem que não condiz com quem é. Além disso, chega a roubar o pai para ajudar o irmão em maus lençóis. Já Terry não precisa agir muito para questionarmos seu caráter ou, ao menos, sua personalidade, visto que seus vícios gritam à tela.
Assim, a honestidade e bondade “flutuante” dos irmãos é posta em cheque com a aceitação da proposta. Terry hesita muito mais que Ian e tem, visivelmente, extrema dificuldade em aceitar a proposta, bem como executá-la. Ian convence a si mesmo mais facilmente – é pelo irmão. É claro para o espectador o interesse próprio, o egoísmo da personagem. Ele pensa no irmão, mas também nos seus investimentos, na sua carreira e em bancar a namorada cara, uma atriz que se mostra ambiciosa e sem muitos limites morais para subir na carreira durante o filme.
Deparamo-nos, pois, com um retrato familiar nada agradável ao imaginário burguês. Há os fatores externos à trama principal como, por exemplo, a pressão paterna sobre Ian para que ajude a família a custo de uma carreira que realmente deseja… Mas o que realmente salta aos nossos olhos é o fato de os irmãos chegarem a executar a proposta, e é ainda pior quando percebemos o quanto tudo verdadeiramente gira em torno do egoísmo – é o tio que coloca os sobrinhos em perigo, é o assassinato e o desfecho…
A trama faz paralelos com as peças encenadas pela namorada de Ian e faz algumas referências, como já mencionado, às tragédias gregas. Há um momento em que se cita explicitamente a tragédia de Medéia. Nessa história, uma mulher revoltada contra o mundo que a cerca mata os filhos para vingar-se do marido. Assim, o que temos aí não condiz com o que é constantemente martelado pelas personagens do filme (“o sangue está acima de tudo”), mas condiz com o que a história passa: no final, o que se sobrepõe a tais relações são os interesses pessoais.
Além disso, o próprio nome Cassandra tem seu espaço na mitologia grega. Cassandra é uma profetisa amaldiçoada por Apolo: ao tentar informar seus presságios à população, foi vista como louca. Por ninguém crer na vidente, Tróia foi destruída. É claro, pois, que os maus presságios são anunciados a partir do nome do veleiro. Não é à toa também que ali é o palco do grand finale, o qual, aliás, também soa como tragédia grega. Ainda como uma conexão menos evidente temos o fato de Terry lembrar Cassandra quando, em depressão profunda após o assassinato, apesar de falar a verdade à mulher sobre o caso, ser visto como louco… Terry ainda reforça sua ligação quando suspira o quanto tudo se assemelha a um sonho…
O filme não parece atingir o espectador profundamente. Há acontecimentos previsíveis e reviravoltas que não chegam a surpreender muito. No entanto, o que parece realmente importar é o retrato desta instituição burguesa que decai na nossa frente (o pessimismo de Allen – ou realismo, para uns – não poderia faltar). E, particularmente, acredito que o fato de não sermos tão emocionados por tal tragédia tanto pode ser um índice de o filme não ser um dos mais brilhantes de Allen, como pode ser reflexo do fato de já termos digerido parcialmente as feridas nos valores dessa instituição.
*Suzana Altero é graduanda em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).
