Eu, um negro (Jean Rouch, 1959)

Jean Rouch: uma fissura no cinema

Por Leonardo Barbosa Rossato*

Quando os irmãos Lumière inventaram o cinematógrafo, a impressão de imagens tinha uma função científica, tecnológica. O documentário e a ficção não eram gêneros separados, como se procuraram fixar ao longo da história do cinema. Por isso que os filmes que fizeram evoluir a linguagem cinematográfica sempre tenderam à dissolução dos gêneros e das linguagens. Um filme é sempre um documentário de seu estado histórico, de seu tempo-espaço.

Com o advento do Som, em 1929, o cinema sofreu uma das suas grandes viradas tecnológicas. Como arte tecnológica que é, o cinema sempre passou por essas transformações, e, a partir disso, pôde evoluir sua linguagem, seus conceitos. Até então, o cinema, mesmo sonoro, não possuía sincronismo entre a imagem e o som. Os filmes eram apenas dublados e os documentários não possuíam entrevistas o que para muitos cineastas era limitador.

Não para Jean Rouch, cineasta e antropólogo francês, que fez vários filmes na África desde que foi pela primeira vez como engenheiro. Começou a conhecer profundamente o povo africano e procurou, junto a esse povo, criar filmes que pudessem identificar sua cultura, religiões, linguagens. Em 1959, na antiga Costa do Marfim, hoje Gana, Rouch propôs a um grupo de jovens um filme. Eles vinham do Níger, procurando emprego, e Rouch os acompanharia durante um ano para fazer um documentário. Eles perguntaram a Rouch: “Por que não fazemos um filme de verdade?”. “O que é um filme de verdade?”, respondeu Rouch. “Um filme como os filmes americanos”. Nasce aí, um dos filmes mais importantes do cinema. Um filme que libertou outros todos, pois mostrou que da possível não-relação entre a Imagem e o Som, pode nascer um discurso. O cinema não é teatro filmado.

Eu, um negro (1959), portanto, explodiu as fronteiras do documentário e da ficção. E para a área da Antropologia, incutiu o conceito de Rouch, de antropologia compartilhada.

Como a imagem e o som não eram sincronizados, Rouch filmou seqüências dos jovens. A partir daí, eles improvisaram os diálogos sobre as imagens e reinventaram suas performances a partir da dublagem. Eles se chamavam como astros do boxe e do cinema americano. O principal, Edward G. Robinson, chamou-se do nome de um dos maiores atores de filmes de gângsteres do cinema americano. A influência do imaginário do cinema americano transparece. Apesar disso, vemos e ouvimos, toda uma visão de mundo: sua relação com a vida, com o dinheiro, com as mulheres, com os amigos, com o trabalho. Rouch compartilha e respeita, dentro do filme, essa visão. A politização da experiência do personagem principal é evidenciada na sua fala. A sua fala é o filme, enquanto a poesia das imagens ajuda a criar essa relação.

Quando o som irrompeu na história do cinema, inúmeros cineastas e teóricos temiam a morte do cinema. Desde seu nascimento, criou-se todo um conceito de se contar histórias a partir e unicamente das imagens; tanto que alguns cineastas, como Murnau e Eisenstein, refletiram e criaram a partir disso. Eisenstein pensava que o som nunca poderia ser complementar à imagem, porque esta perderia sua potência. Escrevia que o som apenas poderia ser contraponto, pois, a partir daí, uma imagem e um som, não condizentes entre si, esse choque, poderia causar sentidos. Rouch, em outra chave, buscou isso.

Inclassificável, Eu, um negro nos mostra, então, a afirmação de um ser humano em seu estado histórico-social sob um mundo violentado por um sistema político-colonizador. Não é à toa que o país mais poderoso do mundo faz com que vivamos com seus filmes, séries de tevê, costumes, linguagens e ideologias. Este filme é uma luta contra o pressuposto, óbvio, que, neste mundo, colonizar é impor Imagens.

*Leonardo Barbosa Rossato é graduado e mestrando em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).

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