A Idade da Terra (Glauber Rocha, 1980)

A Idade da Terra, contemplação e estranhamento

Por Matheus Chiaratti*

É o último filme de Glauber Rocha, o mais polêmico, o mais tentador, o mais eloqüente, o pouco lúcido, o mais instintivo, mas, de fato e de imagem: uma obra-prima ímpar para o cinema mundial. Depois de ser incompreendido e causar furor no Festival de Veneza quando lançado em 1980 – com Glauber à luta contra o que chamou de injustiça do resultado da premiação, que fez passeata e agrediu verbalmente jurados e vencedores – o filme foi lançado em DVD, após longa espera pelos fãs glauberianos, que vêem nessa sua obra um retorno à experimentação e à abolição de qualquer narratividade. É Glauber pura e simplesmente como um experimentador, um ousado incompreendido, um artista que espera do espectador “olhos abertos e ouvidos purificados” para a imersão (não direi compreensão) naquele que é seu filme-testamento, e talvez o mais autoral, um Glauber na diegese em falas, ou como diretor; ou ainda, em outros momentos, como pensador político, contra o colonialismo e defensor dos povos do terceiro mundo.

Através de uma câmera pouco digestiva e muito subversiva, Glauber retrata de forma ritualística e sensorialmente imagética Cristos denunciadores da exploração capitalista, estrangeira contra o povo subdesenvolvido: o Cristo-Negro, o Cristo-Pescador, o Cristo-Guerreiro Ogum de Lampião e o Cristo-Conquistador Português, segundo Glauber, “os quatro Cavaleiros do Apocalipse que ressuscitam o Cristo no Terceiro Mundo”. Da própria voz de Glauber, que discorre sobre o próprio filme: “um Cristo que não está morto, mas está vivo espalhando amor e… criatividade”. Em oposição, Brahms, Johan Brahms, loiro, estrangeiro, é visivelmente a tentação de Cristo, o diabo speaks English, mistura espanhol, fala francês e italiano, o diabo é a exploração e a colonização na África e na Latino-América.

Com atuações viscerais de Tarcísio Meira, Maurício do Valle, Antônio Pitanga, Jece Valadão, Geraldo Del Rey, entre outros atores, a película totalmente anti-naturalista e de tom eloqüente trava com o espectador uma relação bilateral e incisiva, lasciva e hermética: a mensagem de Glauber passada através de imagens-incógnitas, imagens-alucinantes associadas a uma banda sonora espetacularmente potente age direto e incisivo no espectador até levá-lo a um transe que dura quase que o filme todo: imagens carnavalescas, luzes coloridas, um canto indígena, uma celebração de candomblé, freiras dançando, frases-chave que se repetem, locações paradisíacas, composições de enquadramento muito bem trabalhadas, desfoques, planos ora tão próximos, ora tão distantes, gritos, sussurros, enfim, todo o extremo num só filme: esbórnia e desajuste totais presentes. O estranhamento começa desde o menu: você assiste à montagem sugerida, mas podendo intercambiar seu olhar ao ver nova e outra possibilidade de montagem, um susto, qual é o certo? Aqui, o certo é não ter certo. E Glauber Rocha nos presenteia com a desordem, uma estranha forma de se sentir cinema, não qualquer cinema, mas aquele cinema que incomoda e que perdura.

Tudo então começa a nos a fazer sentido. O filme ininteligível para a maioria tem seu sentido na carreira do diretor: não haveria forma melhor para terminá-la, um filme-testamento que prenuncia um Glauber sempre vivo, sempre recorrente ao cinema, em discussões, inspirações, apreciações, contemplações e estranhamentos. Entender Glauber é matar Glauber. Apreciar Glauber é deixar sempre vivo o sabor do cinema-arte, o cinema que instiga e provoca. O fácil não está, definitivamente, em A Idade da Terra.

*Matheus Chiaratti é graduando em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).

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