Cinema brasileiro e indústria cultural: considerações sobre políticas estatais e mercado

[1]

 

Djair Brito Amorim[1]

Gustavo Souza[2]

 

Resumo: Tomando como eixo significativos momentos da história do cinema brasileiro, este trabalho sistematiza o posicionamento do Estado em relação à produção cinematográfica nacional, bem como sua relação com o mercado, a fim de perceber semelhanças e diferenças entre as políticas adotadas ontem[3] e hoje.

Palavras-chave: cinema brasileiro; indústria cultural; mercado.

Abstract: Taking as its start point significant moments in the history of Brazilian cinema, this paper systematizes the position of the state in relation to the national film production as well as its relation to the market in order to understand similarities and differences between yesterday[4] and today’s adopted politics.

Key words: brazilian cinema, cultural industry, market.

Introdução

Ainda na primeira metade do século XX, os demais produtos da indústria midiática, e, em particular, o cinema, transformaram-se nos principais itens dos ramos culturais envolvidos no processo de dominação econômica globalizada. Embora essa ação de domínio tenha se desenvolvido em ritmo industrial acelerado, a previsão pessimista sobre os rumos da arte, prognosticada por Theodor W. Adorno, nos meses finais da Segunda Guerra Mundial, não se concretizou. As ideias preconizadas por Adorno partiam do pressuposto de que a arte seria totalizada, perderia o sentido harmônico e a sua formalidade, pois a técnica se sobreporia à obra, delimitando assim seus caminhos por meio de fórmulas.

O tratamento dado aos produtos culturais contemporâneos, e sobretudo ao cinema, pelos setores econômicos transnacionais, comprova o não desencadeamento de um declínio cultural ideológico, como previam os teóricos da Escola de Frankfurt. Adorno sustenta que, ao inserir a cultura midiática em patamares mercadológicos novos e de grande aceitação mundial, os espectadores não teriam mais a possibilidade de fruição da arte fílmica. Ele afirma (1985, p.118-119):

Ultrapassando de longe o teatro de ilusões, o filme não deixa mais à fantasia e ao pensamento dos espectadores nenhuma dimensão na qual estes possam, sem perder o fim, passear e divagar no quadro da obra fílmica permanecendo, no entanto, livres do controle de seus dados exatos, e é assim precisamente que o filme adestra o espectador entregue a ele para se identificar imediatamente com a realidade (…). São feitos de tal forma que sua apreensão adequada exige, é verdade, presteza, dom de observação, conhecimentos específicos, mas também de tal sorte que proíbem a atividade intelectual do espectador, se ele não quiser perder os fatos que desfilam velozmente diante de seus olhos.

 

O fortalecimento da cultura midiática no bojo da nova forma de atuação econômica, após os anos 1960 principalmente, se tornou uma ação bem-sucedida nos países desenvolvidos, não só a partir de estratégias de atuação conjuntas entre o mercado e o Estado. Contudo, na atuação anterior a este cenário, o papel estatal era puramente intervencionista nos processos de gestões culturais, porque estabelecia as diretrizes e direcionava a estrutura da produção.

Neste momento, no Brasil, a ação estatal no setor de produção cinematográfica e audiovisual não é mais de intervenção, como já fora em épocas passadas. Ou seja, atualmente, o Estado procura adotar uma estratégia de parceria cultural com os produtores cinematográficos e audiovisuais, concedendo recursos financeiros e apoio, sem ingerir-se diretamente sobre os modos de produção e distribuição cinematográfica e audiovisual e seus significados.

Sobre o aspecto específico de interferência estatal na produção cinematográfica brasileira, Randal Johnson identifica que, a partir da década de 1930, há uma efetiva intervenção do Estado no incentivo à produção nacional, tendo em vista que, nesse período, o mercado exibidor já estava dominado por cinematografias estrangeiras. Tal política viria a ser reforçada a partir de 1964, com a implantação do regime militar. Segundo Johnson (1993, p. 35-36), a ação interventora do Estado se dava “principalmente através de seus vários programas de financiamento para a produção de filmes (empréstimos a juros baixos, adiantamentos sobre a distribuição e coprodução com companhias privadas)”.

O apoio financeiro direto estatal ao cinema brasileiro teve seu início em 1966, com a criação do Instituto Nacional do Cinema (INC). Esse órgão resultou de intensas negociações realizadas pelos vários setores da indústria cinematográfica. As parcerias de coprodução foram encerradas em 1969, com a criação da Empresa Brasileira de Filmes (Embrafilme), “que originalmente deveria promover a distribuição dos filmes brasileiros em mercados estrangeiros”, conforme Randal Johnson (1993, p. 36).

No momento atual, a inclusão mais firme de parceiros da iniciativa privada e de empresas estatais é o que move o aumento do volume da produção cinematográfica e audiovisual do país. A legislação de incentivo à produção, apoiada em um conjunto de procedimentos de renúncia fiscal, a qual atrai empresas privadas e estatais para o patrocínio de produções cinematográficas e audiovisuais, bem como o recente estágio econômico favorável do país, também foram outros elementos essenciais no incentivo aos realizadores.

Além disso, outras formas de ação também provocaram a estabilização desse novo conceito na criação de produtos da cultura de massa, como elaboração de políticas culturais alternativas, conscientização empresarial, modificações nas legislações e a aplicação de quantias significativas de recursos no setor produtivo cinematográfico e audiovisual. A partir da execução desse novo modelo de incentivo à produção, o cinema e o audiovisual, especialmente, expandiram-se e transformaram-se num dos principais pilares econômicos da produção cultural do país.

Os novos dispositivos tecnológicos surgidos a partir do final dos anos 1970 trouxeram mudanças fundamentais para a formatação dos modelos contemporâneos de produção. Câmeras leves e de fácil manuseio possibilitaram o surgimento de novos conceitos, formatos e diferentes estratégias audiovisuais. Somam-se a esse novo patamar de produção as câmeras digitais, que facilitam aos autores o barateamento dos custos da produção de seus filmes. Lançadas maciçamente no mercado principalmente a partir do começo do século XXI, elas proporcionam resultados e texturas de imagem próximas aos das películas cinematográficas.

A facilidade com que atualmente os produtos culturais de diferentes países são vistos em várias partes do mundo promove também um amplo entrelaçamento de conceitos e troca de informações audiovisuais nos meios de produção cinematográfica. Estas interações de diferentes visões culturais e estilísticas vêm sendo promovidas com mais intensidade a partir de uma série de inovações no campo do audiovisual. A ascensão da TV a cabo – implantada na maior parte dos países desenvolvidos e em desenvolvimento –, a criação de novas plataformas e a abertura recente de serviços e janelas de exibição, como o Netflix[5] na internet, são exemplos do momento atual.

A troca de experiências cinematográficas e audiovisuais intensifica, cada vez mais, a diversidade e a heterogeneidade nos centros mundiais de produção. Essa simbiose faz com que os padrões se tornem mais flexíveis em termos de trocas no âmbito da criação, bem como incentiva a mudança de relações, em grande escala, a integração e a inserção de inovações tecnológicas e estéticas audiovisuais no campo da produção.

Cinema novo e mercado

É fato que, desde as suas origens, a atividade da produção cinematográfica brasileira é feita em ciclos isolados, curtos e descontínuos, como Campinas, Cataguases, Recife e Porto Alegre. Além desses rápidos períodos distintos que contribuíram decisivamente para a descontinuidade produtiva do cinema brasileiro, uma série de iniciativas e projetos que tinham como modelos filmes produzidos em estúdios (Brasil Vita Filmes, Sono Filmes, Cinédia, Atlântida e Vera Cruz) também não se concretizaram como elementos propulsores para a formação de uma indústria cinematográfica. Vários fatores influenciaram essa questão: a falta de percepção empresarial, de projetos sólidos e de leis de incentivo caracterizaram e impediram a formação de uma efetiva indústria de cinema no país.

Nos anos 1960, percebendo a grave lacuna existente no mercado interno, os realizadores do Cinema Novo, decidiram que um dos melhores caminhos seria produzir filmes autorais, com baixo custo e independentes, utilizando locações e atores não profissionais. Com base nessa estratégica de criação, que se espelhava no cinema-verdade francês e no neorrealismo italiano, a nova forma de fazer filmes foi aclamada internacionalmente e contribuiu de maneira decisiva para o renascimento do cinema brasileiro naquele momento, embora não tivesse no país a receptividade de público alcançada pelo cinema de caráter mais popular, como as chanchadas, que dominaram a cadeia de exibição nos anos 1950.

A partir dessa premissa, o Cinema Novo renovou não apenas os modelos de filmes produzidos no país, mas também redefiniu o papel do próprio cinema no contexto social e político, influindo diretamente nas mudanças praticadas pelos novos conceitos da produção cinematográfica e participando delas. Os produtores desse novo movimento direcionaram suas ações propondo o cinema como elemento de intervenção na realidade explícita do país e não apenas como forma de entretenimento. Para a implantação desse pensamento, contaram com a adesão maciça dos meios intelectuais e de grande parte dos formadores de opinião, sempre prontos a valorizar o que lhes parecia digno de uma “cultura brasileira legítima”.

Foco de resistência sociocultural ao modo de se fazer cinema de entretenimento, o Cinema Novo também divergia do Cinema Marginal, com o qual discordava na forma estética de representação e nos modos de produção, principalmente, entre outros pontos. Contrária à ditadura militar então vigente no país, a geração cinemanovista contribuiu diretamente para a formação da Embrafilme, nos anos 1980. Ressaltadas todas essas evidências, este movimento cinematográfico também se transformou num ciclo e foi envolvido nas mesmas armadilhas mercadológicas dos seus antecessores. O Cinema Novo não resistiu às tensões políticas, sociais e econômicas da época e cedeu às pressões do mercado exibidor. Por isso, ganharam espaço as majors transnacionais, fornecedoras das grandes produções do cinema mundial, particularmente as de origem norte-americana e europeia.

Fernão Ramos (2004) destaca que ao contrário do Cinema Novo, o movimento Cinema Marginal – cujo filme–farol é O bandido da luz vermelha (1968), de Rogério Sganzerla – não tem uma coerência interna de pensamento, como também não se reconhece como grupo. No entanto, há pontos de identidade entre alguns cineastas em termos de estilo, com a utilização de uma rebeldia criativa autoral e própria da época em que sobreviveu de 1968 a 1973. Nas produções do Cinema Marginal dois elementos estruturais ocupam o espaço central dos filmes: a ideologia da contracultura e a intertextualidade lúdica com a narrativa clássica e o filme de gênero. Dentro deste movimento, o filme A margem (1967), de Ozualdo Candeias, é citado como precursor do movimento marginal, mas não há nele qualquer referência ou aproximação com citações intertextuais ou de cinema trash.[6]

Para Katia Maciel, o Cinema Novo não tinha em seu horizonte uma linha de pensamento que contemplava o “discurso econômico da lógica de mercado” (2000, p.18). Ela ressalta que, naquele momento, “a luta por recursos do governo e dos empresários talvez tenha apagado a luz da ousadia de um cinema do possível, do devir, do novo, que sempre foi a única possibilidade para os cinemas do terceiro mundo” (2000, p.18) O Cinema Novo buscava um país real, uma invenção efetiva do novo, de elementos subjetivos que se sobrepusessem às difíceis fases anteriores que o cinema brasileiro já tentara superar. O que conseguiu em parte.

A disposição com que se lançou na luta pela construção de um espaço cinematográfico diferenciado no país, com uma visão de dentro do Brasil, tornou possível ao cinema brasileiro moderno experimentar a criatividade de seus realizadores. Por meio de produções, às vezes quase artesanais, na busca por imprimir o máximo de originalidade artística em seus projetos alguns diretores produziram filmes marcantes, como Arraial do Cabo (1959), de Paulo Cesar Saraceni e Mario Carneiro, e Couro de Gato (1960), de Joaquim Pedro de Andrade.

Ao abordarem nos seus filmes temáticas próximas às aproveitadas pelo Cinema Novo, nos cenários de sertão, mar, cidade e favela, os cineastas e produtores do cinema brasileiro contemporâneo imprimem novos olhares e atualizações às temáticas exploradas anteriormente. A geração da atualidade tem como proposta uma estética que privilegia o excelente acabamento técnico oferecido pelas novas tecnologias, visando abrir espaços de exibição e negócios no mercado cinematográfico mundial.

A criação da Embrafilme abriu grandes espaços na cadeia exibidora do país, tendo como produto principal as pornochanchadas que, mesmo sem o apoio da crítica especializada, conseguiu atingir objetivos importantes: público e bom resultado de bilheteria. Durante toda a década de 1970, preponderou a atuação da Embrafilme e do INC, por meio da implantação de programas de coproduções com empresas independentes, da criação de uma distribuidora de grande porte – a maior da América Latina – e do financiamento da produção.

Mesmo com recepção favorável do público e excelente desempenho mercadológico, o cinema brasileiro dessa época não encontrou respaldo entre todos os realizadores cinematográficos, particularmente os que integravam o chamado Cinema Marginal. Eles mostraram-se insatisfeitos com a atuação da Embrafilme, porque, de acordo com os seus integrantes, a empresa estatal negligenciava os filmes produzidos com baixo orçamento.

Como todas as áreas de produção que utilizavam recursos tecnológicos de última geração, o cinema também começou a incorporar em suas produções as inovações tecnológicas criadas para o setor, favorecendo a diversidade de formas de atuação e estilos. Além disso, produzidos de maneira relativamente independente, alguns filmes, como Bye bye Brasil (1979), de Carlos Diegues; Pixote, a lei do mais fraco (1981), de Hector Babenco; Pra frente Brasil (1983), de Roberto Farias; e Gaijin – Caminhos da liberdade (1980), de Tizuka Yamasaki, fortaleceram o processo de ocupação do mercado, nos anos 1980, com expressivos resultados de bilheteria. Contudo, no início dos anos 1990, o encolhimento do mercado exibidor brasileiro torna-se claro e a participação dos filmes produzidos no país entra em declínio, tanto pela falta de público como devido às dificuldades financeiras do setor.

Crise financeira e declínio do mercado exibidor

Sem alternativas para sair da crise, o governo impõe rigorosas restrições à importação, o que atinge frontalmente os custos de produção dos filmes. Os altos custos de produção, restrição de mercado e preço dos ingressos controlado pelo governo são alguns dos elementos que fizeram com que as receitas fossem reduzidas pela indústria.

Para acirrar ainda mais a disputa pelo mercado exibidor, a situação tornou-se mais predatória: no início da década de 1990, a participação do cinema brasileiro no mercado exibidor do país era extremamente baixa. Em 1992, o índice de participação foi de apenas 0,05%. Historiadores e críticos apontam como causas do problema a convergência de duas políticas públicas específicas adotadas pelo governo Collor: a extinção das instituições que apoiavam a produção cinematográfica brasileira – Embrafilme, Conselho Nacional de Cinema (Concine) e a Fundação do Cinema Brasileiro (FCB) – e a abertura descontrolada do mercado. Decretada em 1990, a primeira política teve como resultado a desarticulação dos instrumentos de regularização e financiamento da atividade cinematográfica, o que desencadeou uma grave descontinuidade na produção de filmes. O último motivo evidenciou as enormes diferenças entre o produto brasileiro e o de países desenvolvidos, com repercussão negativa no padrão de competitividade.

Além de não poderem competir com as produções dos países desenvolvidos, os cineastas brasileiros tiveram que enfrentar mais desafios: renovar a temática dos filmes, incrementar uma nova dinâmica às mais recentes estratégias audiovisuais, adaptar-se às novas condições mercadológicas e enfrentar com criatividade os sucessos internacionais que chegavam às telas do país com as megaproduções. Para isso, contaram com as facilidades das leis de incentivo à cultura e ao audiovisual criadas em 1991 e 1993, respectivamente, pelo governo federal, para aperfeiçoar a captação de recursos e fornecer infraestrutura visando à realização das produções cinematográficas do país.

O resultado dessas políticas de fomento à produção cinematográfica e audiovisual trouxe mudanças positivas para o setor. Apesar de vários obstáculos da cadeia produtiva, a quantidade de produções aumentou de forma significativa a partir de 1995, com a colocação em prática das leis de incentivo fiscal, que facilitam a captação de recursos para produções de documentários, filmes de ficção e minisséries.

Desde 1995, com a chamada “retomada do cinema brasileiro”[7], quando houve um aumento no volume de produções cinematográficas, o Estado e também empresas do setor privado patrocinaram diretamente várias produções. Pesquisadores como Consuelo Lins e Cláudia Mesquita (2008, p. 10-11) afirmam que o embrião da “retomada do cinema brasileiro” começou com a produção do longa-metragem Carlota Joaquina – Princesa do Brazil (1995), de Carla Camurati. Os filmes desse período, em quase sua totalidade, colocaram em discussão questões nacionais e contradições do país, conforme assinala o crítico Luiz Zanin Oricchio  (2003, p. 32):

(…) boa parte do cinema produzido no Brasil durante esses anos levou em conta as condições do país. Bem ou mal, debruçou-se sobre temas como o abismo de classes que compõe o perfil da sociedade brasileira, tentou compreender a história do País e examinou os impasses da modernidade na estrutura das grandes cidades. Foi ao sertão e às favelas e reinterpretou esses espaços privilegiados de reflexão do cinema nacional, outrora cenário de obras como Vidas secas, Os fuzis, Deus e o diabo na terra do sol, Cinco vezes favela; Rio, 40 graus e Rio, Zona Norte.

O julgamento desfavorável de parte dos críticos brasileiros à estética de massa adotada pela grande maioria das produções do cinema brasileiro contemporâneo para avançar no mercado enquanto produto da indústria cultural ainda causa discussões. Essas polêmicas acontecem tanto na esfera pública como na acadêmica, principalmente, onde o filme Cidade de Deus (2002), de Fernando Meirelles, é um dos exemplos. Nesta produção o traço comum é a violência urbana e criminal, com a utilização de uma narrativa e linguagem que não contextualizam os cenários de representação da violência que apresentam, e nem buscam uma reflexão de valores. Estes pontos foram e continuam sendo alguns dos motivos pelos quais Cidade de Deus foi uma das obras mais discutidas nos meios intelectuais.

Em 1955, no começo do Cinema Novo principalmente, para a produção de filmes os diretores tinham que buscar recursos das mais diferentes formas, porque não havia muito interesse dos empresários em direcionar recursos para patrocínios de produções cinematográficas. Na época, o cinema brasileiro atuava em um cenário econômico conturbado, dificultando a obtenção de recursos financeiros. Um exemplo claro das dificuldades de captação de recursos é o caso de Nelson Pereira dos Santos, quando ele buscava obter dinheiro para a produção do filme Rio, 40 Graus (1954-1955), um dos filmes que originou o Cinema Novo. “Ninguém aceitava o meu argumento, nenhum produtor existente achava que aquilo era cinematográfico, aí eu inventei uma empresa para fazer o filme”, disse ele, em entrevista à revista Ele, de abril de 1977.

Helena Salem, autora do livro “Nelson Pereira dos Santos – o sonho possível do cinema brasileiro”, conta que para produzir o filme Rio, 40 Graus o diretor teve que formar uma cooperativa, com a venda de cotas, num esquema de produção independente:

Nelson deu sorte na questão da aquisição dos negativos; uma recente disposição legal autorizava a importação de filme virgem diretamente, sem despesas alfandegárias e impostos. Quanto aos salários da equipe e atores, se decidiu também que, em boa parte, seriam pagos em cotas – ou seja, se no futuro o filme desse lucro, todos receberiam proporcionalmente às suas parcelas como produtores (1996, p. 100-101).

Os anos 1960 foram revolucionários na maioria das metrópoles mundiais. Naquele momento, a efervescência político-ideológica dominava as universidades e os centros científicos, com a promoção de debates filosóficos e políticos que tinham a participação direta da juventude e dos meios intelectuais. Uma conjunção de ideias e valores sociais como nunca se vira antes na História contemporânea. Dessa forma, a postura da juventude de classe média da época amparava-se no questionamento aos valores da cultura dominante. O pensamento engajado dos jovens abria espaços para ideais revolucionários e legitimava as posturas estéticas e as ações defendidas pelos cineastas que formavam o grupo do Cinema Novo.

Os novos cinemas

O sucesso da indústria cinematográfica foi um fato vinculado aos grandes estúdios de Hollywood. Com o término da Segunda Guerra Mundial, vários polos cinematográficos surgiram em muitos países, como o neorrealismo italiano, no pós-guerra, e a nouvelle vague francesa, que abolia a linearidade da narrativa cinematográfica. O Cinema Novo brasileiro tinha em seus princípios a ideia de um cinema orgânico e esteticamente rebelde, que representasse não apenas o Brasil e a América Latina, mas todo um sentimento revolucionário terceiro-mundista.

O grupo de diretores e realizadores que formavam o Cinema Novo não tinha em sua essência a pretensão nítida de ganhar mercado, mas a de fazer um cinema que tratasse com afeição a realidade local, com novos artifícios estéticos, de forma revolucionária. Enfim, um cinema de autor. O cinema era um dos veículos privilegiados para refletir sobre e intervir na realidade brasileira. No entanto, ele entrou em crise e perdeu espaço num momento em que já se percebiam mudanças nas relações econômicas mundiais. Essas variações dariam um novo direcionamento aos setores estatais e privados na aplicação de recursos voltados à produção cinematográfica.

As contribuições do Cinema Novo na busca do desenvolvimento de uma indústria de cinema no país foram, sem dúvida, importantes, mas ainda não suficientes nesse sentido. Além de que os realizadores não conseguiram interagir com as camadas menos favorecidas da população, para formar um público consumidor que lhe desse respaldo na ânsia de fazer um cinema revolucionário e mais realisticamente brasileiro.

A esse respeito Paulo Emílio Salles Gomes diz que “o setor artístico jovem, inseparável do público intelectual igualmente jovem que suscitou, foi sem dúvida o que melhor refletiu o clima criativo e generoso então reinante” (1980, p. 95), destacando o papel que o cinema representava naquele momento.

No entanto, deve-se ressaltar sempre o expressivo significado que o Cinema Novo trouxe para o cenário cinematográfico brasileiro. Na opinião de Paulo Emílio, o Cinema Novo “refletiu e criou uma imagem visual e sonora, contínua e coerente, da maioria absoluta do povo brasileiro” e, em seu conjunto, “monta um universo uno e mítico integrado por sertão, favela, subúrbio, vilarejos do interior ou da praia, gafieira e estádio de futebol” (1980, p. 96).

Esse conjunto visual da vida do país era indicativo para a organização de um modelo de cinema que buscava uma realidade própria, visceral e essencialmente nacional. Todos esses desejos de afirmação artística, social e política foram dizimados pelo golpe de estado e pela ditadura militar instaurada no país a partir de 1964, o que contribuiu negativamente para que a utopia revolucionária dos realizadores fosse colocada em prática com toda sua plenitude. A respeito deste aspecto do romantismo aqui enfatizado, Ridenti (2014, p. 9-10) explica:

O romantismo das esquerdas não era uma simples volta ao passado, mas também modernizador. Ele buscava no passado elementos para a construção da utopia do futuro. Não era, pois, um romantismo no sentido da perspectiva anti-capitalista prisioneira do passado, geradora de uma utopia irrealizável na prática. Tratava-se de romantismo, sim, mas revolucionário. De fato, visava- se retomar um encantamento da vida, uma comunidade inspirada no homem do povo, cuja essência estaria no espírito do camponês e do migrante favelado a trabalhar nas cidades.

Se no plano político-ideológico o movimento Cinema Novo acertou, contribuindo para a formação de um cinema com feições marcadamente brasileiras, ele falhou no processo de criação de uma rede alternativa de exibição. Atualmente, o circuito exibidor do país atende a um público jovem, bem informado e consumidor habitual e àquele público que cultua o cinema como arte. O mercado que hoje existe não se vincula mais ao passado, os cinemas se modernizaram e buscam atender aos públicos por meio de uma cadeia tecnologicamente avançada, que supre as necessidades dos consumidores. Portanto, há uma reconfiguração do hábito de ir ao cinema, o qual, no contexto da mundialização da cultura, não se restringe apenas à experiência estética de assistir a uma narrativa em imagem e/ou som (AUTRAN, 2009). Contudo, como nos lembra Meleiro (2010), deve-se ressaltar que a evolução do fluxo e produção como um todo não acompanha a melhoria dos canais de distribuição, de forma igual, o que restringe o desempenho mercadológico do cinema brasileiro.

 

Referências bibliográficas

ADORNO, T. W. e HORKHEIMER, M. Dialética  do  esclarecimento:  fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.

AUTRAN, Arthur. O cinema brasileiro contemporâneo diante do seu público e do mercado exibidor. Significação – Revista de Cultura Audiovisual. São Paulo, n. 32, 2009.

BUTCHER, Pedro. Cinema brasileiro hoje. São Paulo: Publifolha, 2005.

GOMES, P. E. S. Cinema: trajetória no subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.

JOHNSON, Randal. Ascenção e queda do cinema brasileiro. Revista USP/Dossiê Cinema Brasileiro, n. 19, p. 32, set./out./nov., 1993.

LINS, Consuelo e MESQUITA, Claudia. Filmar o real: sobre o documentário brasileiro contemporâneo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.

MACIEL, Katia. Poeta, herói, idiota. O pensamento de cinema no Brasil. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2000.

MELEIRO, Alessandra. Cinema e Mercado. São Paulo: Escrituras, 2010.

ORICCHIO, Luiz Zanin.  Cinema de novo: balanço crítico da Retomada. São Paulo: Estação Liberdade, 2003.

RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro: artistas da revolução, do CPC à era da TV. São Paulo: Editora Unesp, 2014.

SALEM, Helena. Nelson Pereira dos Santos: o sonho possível do cinema brasileiro. Rio de Janeiro: Record, 1996.

[1] Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho Comunicação, Consumo e Institucionalidades, do 4º Encontro de GTs – Comunicon, realizado nos dias 8, 9 e 10 de outubro de 2014.

[1] Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Paulista-UNIP, com apoio da CAPES; mestre em Comunicação pela UNIP, com especialização em Roteiro Audiovisual pela PUCSP, graduação em Jornalismo pela Faculdade Cásper Líbero-SP e Publicidade e Propaganda pela Universidade de Mogi das Cruzes (UMC). email: djair.brito@uol.com.br

[2] Professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura Midiática da Universidade Paulista. Pós-doutor pela UFSCar. Doutor em Ciências da Comunicação pela ECA/USP. Email: gustavo03@uol.com.br

[3] Período entre os anos 1955 e 1995.

[4] Period between the years 1955 to 1995.

[5] A Netflix é uma empresa norte-americana que oferece serviço de TV por Internet, com mais de 44 milhões de assinantes em mais de 40 países assistindo a mais de um bilhão de horas de filmes, séries de TV e produções originais por mês. http://pt.wikipedia.org/wiki/Netflix. Acesso em 10 de Agosto de 2014.

[6] RAMOS, Fernão e MIRANDA, Luiz Felipe A. de. Enciclopédia do Cinema Brasileiro. São Paulo: Editora Senac, 2004, p. 141.

[7] Termo tão desgastado quanto manipulado, “retomada” é o nome dado ao “cinema brasileiro hoje” (2005). Ele designa o processo de recuperação da produção cinematográfica no Brasil depois de uma de suas mais graves crises, no começo dos anos 1990. O nome “retomada” guarda em si um sentido interessante. Ele não subentende um denominador comum ou qualquer forma de totalização estética ou política, nem procura forjar um bloco de pensamento onde ele não existe. É preciso entender a palavra “retomada” naquilo que ela diz em seu sentido literal: retomar algo que foi interrompido. O que é muito diferente de um renascimento, por exemplo. Não se retoma algo que morreu, mas sim algo que já tem uma história, ainda que inconstante e turbulenta. “Retomada” apenas denota um processo (BUTCHER, 2005, p. 14-15).

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