Kedma

Proposta:

Análise de impressões ao assistir o filme Kedma, de Amos Gitai, realizado em 2002. A análise não só mergulha em alguns aspectos da forma e da trama como também tem por base fundamental conceitos e idéias de Roland Barthes. Nestas relações explicitadas a seguir, há também referências às idéias de Phillippe Dubois, como a abstração da imagem, o ponto de vista e os movimentos aéreos  e  Arlindo Machado, como o consumo do produto audiovisual no espaço doméstico.

Análise :

É maio de 1948. O navio “Kedma” abarrotado de sobreviventes do Holocausto chega a uma praia com intuito de rumar à Terra Santa, e, conseqüentemente, ocuparem-na, constituindo, assim, um Estado. Logo no desembarque, o som de tiros – os britânicos, que, na verdade, em pouco tempo sairiam do território e retirariam seu status de Protetorado.

Kedma retrata uma peregrinação judaica que nunca chega. Os refugiados da tragédia, da Segunda Grande Guerra, têm as esperanças logo bombardeadas já no inicio do filme. E ainda, mais adiante: um conflito sangrento com árabes.        O filme ambiciona retratar este intervalo de tempo pequeno e significante, o instante anterior ao da formação do Estado de Israel, um fato histórico reconhecido mundialmente (quer aceitemos ou legitimamos tal ação ou não).

O filme de Gitai é uma forma de legitimação da história judaica, um retrato com base na história mundial e na particular de um povo. O fator histórico é um dos meios do filme relatar o “isso-foi“, mas também presentificá-o com o meio utilizado : o cinema.

Amos Gitai não faz um ensaio fotográfico, mas sim um filme: e aí está o tempo “presente”. Por termos a seqüência de fotogramas deslizando rapidamente, temos conferido aos personagens e às paisagens uma certa “alma”, uma certa “vida” e , enfim, o status de presente. O movimento confere atualidade às imagens.

Em um filme qualquer, ou mesmo na maioria deles, não temos a impressão de vestígio de algum fato que ocorreu, de algum instante real na história e sim, de “algo que acontece enquanto assisto”.  É visível tal impressão quando torcemos por alguma personagem, pelo seu destino. Em especial, nos filmes de ficção tal impressão de presente é mais forte, enquanto em documentários o fator “foi assim” é, vezes, ressaltado mesmo que de modo consciente… (É claro, que todo filme é um “texto audiovisual” e, portanto, não a Verdade, mas uma interpretação, seja ficção ou documentário…Vale lembrar.). De qualquer modo, o presente é o tempo do cinema. Mesmo o “foi assim” aparece presentificado, como um fantasma que paira para o espectador…

Juntamente ao sentir presente, a falta de impressão de “isso-foi” também pode advir da nossa cultura, do conhecimento sobre o funcionamento do  cinema: enxergamos atores, cenários, diálogos previamente escritos…Isso de forma consciente, porque no cinema somos envolvidos pela ilusão, em especial nos filmes Hollywoodianos. Conseguimos, mesmo assim, saber que se trata de uma encenação e não de algo que de fato ocorreu – a não ser as próprias filmagens. No entanto, não acredito que são esses dados que se sobressaem em Kedma. O que aparece em Kedma são as tentativas, mesmo que talvez inconscientes, de preencher o filme com uma aura de passado.

Temos o sentimento “presente” dado pelo cinema sim, mas este é constantemente rebatido pelo fator histórico, pela sobreposição da morte e por um “studium” em potencial, com licença à Roland Barthes.

A forma de filmar de Amos Gitai tem a atmosfera do “baseado em fatos reais” reforçada ainda também a própria autoridade do diretor – ele é um judeu já reconhecido no âmbito cinematográfico. A câmera de Gitai intensifica essa atmosfera: ela não é solta, não é abstrata. Os movimentos não tendem aos aéreos como muitos filmes dos tempos atuais – muito dos filmes de hoje sentimos um certo vazio recorrente devido ao fato de uma abstração grande em termos de ponto de vista, em termos de movimento de câmera . Mas, em Kedma, temos uma câmera terrena – aliás, uma câmera fixa no objeto de desejo dos povos em conflito, como não poderia deixar de ser. De qualquer modo, o realismo é maior através de movimentos de câmera terrenos e também dotados de um ponto de vista (alguém relata!) e não de uma  abstração. Portanto, se o realismo é mais intenso, o fator histórico torna-se mais crível, e a sensação de “isso-foi” é ressaltada. Além desses fatores, temos o recurso básico e usado freqüentemente por Amos Gitai: o plano-seqüência… ( É claro que até mesmo o termo “crível” indicado acima implica o cinema como uma representação e uma diversa da fotografia – na fotografia, o “isso-foi” é sua base, como é atestado por Barthes – no entanto, essa valorização da história é importante para designarmos mais a frente o quanto essa atmosfera cultivada “do fato que ocorreu” é reforçada com a referência à fotografia por meio da forma do filme. Essa referência acaba por elevar também o filme a um status de “isso-foi”, mesmo que ilusório ou de natureza diferente da Fotografia)

Juntamente a esses fatores de reforço da História e, conseqüentemente do passado, temos o sentimento de morte que paira no filme. Esse sentimento de morte é recorrente em diversas formas e, talvez, seja também uma tentativa de elevar o filme ao status da morte da fotografia – captar o instante que ocorreu e que jamais volta, o retrato da morte sempre dentro da imagem que nunca muda (a imobilidade tem papel fundamental aqui).

Obviamente, temos a morte dentro da diegése. A morte quando desembarcam, quando entram em conflito com ingleses e árabes. Há também a morte falada, a morte presente no medo da própria – através dos diálogos, dos depoimentos, do resquício do holocausto. Mas, a morte presente sutilmente é a morte existente na solidão, na perda de identidade (para existirmos precisamos do outro e de uma identidade) e até mesmo na própria referência Fotográfica, que falaremos adiante. A morte que mais se refere à morte fotográfica, além da própria referência a esta pela forma é a perda de identidade visto que essa se enlaça da imobilidade como característica judaica.

Temos um retrato da crise de identidade judaica – a diversidade não é aceita apesar do movimento para união de seu povo e os judeus não possuem (ou não são ativos) em sua história. Um exemplo de tal retrato está na cena em que Menahem canta para os outros refugiados e é calado – “aqui não é sinagoga”, “cante algo mais alegre“… Além disso, na milícia judaica trocam-se os nomes das pessoas “…eles mudam o nome de vocês…” Como é visível na cena em que o mesmo Menahem é atingido, talvez fatalmente.  E ainda, no final, a falta de identidade é retratada pela fala explosiva de Janustz. Ele denuncia os judeus como não agentes de sua própria história, são um povo imóvel e  como diz o personagem diz, nem mesmo têm História : “Os góis fizeram nossa história” (a qual, aliás, Gitai tenta legitimar pelo seu filme, uma possível tentativa de delineamento de uma identidade mesmo que pelo retrato de sua crise). A perda ou crise da identidade, assim, é também um retrato da morte do individuo, ou mesmo de um povo -“…acho que Israel não é mais um país judeu…”

A solidão não só claramente se liga a questão da falta de história e de identidade como também toma forma nas escolhas de plano de Gitai. O close enquanto o personagem fala é recorrente, apesar de não ser o recurso único, é claro. Deixar os personagens em primeiro plano conversando com outro não deixa de ser um  retrato da solidão. A conversa soa como depoimento e, ainda pior, não se tem em vista quem escuta – apesar dos espectadores também serem seu receptor, não é este que está em tela, não é este que o personagem chama à tela para partilhá-la. Temos o personagem sozinho, falando como se fosse depoimento e não vemos seu interlocutor – no ponto de vista imagético, ele não existe e a personagem está sozinha.

Por fim, temos o referente fotográfico. É na impressão de retrato que o filme carrega que temos a sensação de passado mais intensa.

Poder-se-ia apontar os closes como tentativa de aproximação de retrato assim como sua duração longa ou ainda a inatividade judaica simbolizada nas várias vezes que nos deparamos com personagens estáticas, que quase não se mexem em quadro. No entanto, as paisagens é que sobressaem em tal tópico.

Os planos de Gitai são lentos. Temos de forma recorrente no filme, planos de uma paisagem que é percorrida por um grupo – milícia judaica, refugiados, árabes, ingleses. Assim, num plano estático, temos a paisagem, o grupo saindo de um canto e chegando a outro e a paisagem novamente. Apenas o grupo se move. E, além disso, a paisagem é por vezes deixada por um tempo “não fílmico” em tela. Esse tempo é o tempo de digestão, de acionar o pensamento e da crítica, como o próprio Amos Gitai diz em uma entrevista sobre Kedma, transcrita no livro de Serge Toubiana, Exílios e Territórios: o cinema de Amos Gitai.  Esse tempo desprega a mente do espectador da trama e o deixa refletir, e então, o sentimento de algo Histórico é redobrado. Mas, ainda, há algo a mais…

A referência ao retrato, à fotografia é intenso – é então que realmente explode o conhecimento de “isso-foi“. É então que, também, temos um gosto de morte da Fotografia.

Em especial, as locações: as paisagens que são o vestígio, o fator real, o que presenciou tal peregrinação (mesmo que não seja a que foi retratada subjetivamente por Gitai). A paisagem testemunhou o sangue, a bala, as línguas em conflito… A paisagem é o próprio conflito, aliás… Ela  é o potencial do “studium” de Barthes – é a atração desta imagem semi-estática, atração devido ao reconhecimento histórico-cultural e de intenções do cineasta…Nós nos harmonizamos às intenções de Gitai. A paisagem está, pois, dentro de um código, retrata-nos certa abstração além da sua própria matéria.

Uma paisagem que é interessante ressaltar é a demonstrada no final do filme. Ela faz parte da última cena- a explosão já citada de Janustz – e é o último plano. É essa imagem que encerra. Ela fica em tela por volta de dois minutos… Temos caminhões da milícia judaica repletos de pessoas.Há também refugiados passando… Seguimos alguns personagens por algum tempo , em especial Janustz em seu monólogo explosivo e depois somos deixados com ela.

O filme termina numa estrada. Não podemos dizer que é original. É freqüente o uso de estradas no final tanto em filmes brasileiros como em filmes internacionais. A sua simbologia é, em geral, relacionada à falta de um caminho certo ou mesmo da existência de um caminho longo ainda para ser percorrido por um personagem, país, povo… Enfim, muitas vezes, é o símbolo de estar perdido – afinal, não se percorre a estrada, estamos parados olhando-a… Ou ainda, mais sutilmente ligado a todos essas possibilidades de sentido: é o símbolo da Imobilidade, que é diretamente ligado não só a identidade judaica, mas também à morte da Fotografia. É aí que acredito que o filme se encaixa.

De qualquer maneira, é nessa imagem que o “studium em potencial” é o mais intenso. O filme e sua trama já se desenrolaram, estamos o digerindo e fazendo maior contato com o lado verídico, com a nossa memória. A imagem é melancólica, assim como a música, e não se pode deixar de pensar no futuro que já ocorreu – o futuro do filme que já é passado para nós: o início de confrontos mais sangrentos. É, pois, através dessa imagem que temos a sensação de passado quase que tateável e o lamento do mesmo, do “futuro de dentro da imagem” que, para nós, já configura um tempo que se foi… Além do mais, os aspectos formais contribuem para tal studium em potencial é claro, como já foi mencionado – o enquadramento, o tempo não fílmico em tela, a imobilidade… E ainda, como desfecho, não temos o muito usado “fade” – temos um corte brusco da imagem e não o tempo digestivo do fade. O corte final entrega também um certo  vazio (se não o Vazio) , e em alguma instância, o gosto de morte, o gosto do retirado bruscamente, repentinamente.

Vale registrar também o quanto o filme traz o duplo, assim como a fotografia. Com as representações e as tentativas de atmosfera de “fato ocorrido” parece impossível aos espectadores se dissociarem do referente – talvez por causa do aspecto histórico, da duração dos planos, do nosso próprio conhecimento, do sentimento de morte e do referencial fotográfico. Além disso, o aspecto de relato parece se sobrepor ao de representação, assim também como na fotografia e, talvez, pelos mesmos motivos… Acredito que “punctum”, talvez, seja impossível conectar ao Kedma (quem sabe se ao cinema!) visto que as imagens de grande duração na tela tomam esta forma, ou adquirem este peso de “studium em potencial” (ou mesmo ilusório!) por estarem dentro do filme, isto é, pelo restante da construção de Gitai, e também, acredito que pela cultura, pela codificação, pelo conhecimento.

No entanto, o termo “punctum” talvez possa ser encaixado no momento em que temos o cinema da grande tela, do escuro, da projeção transformado na sessão doméstica.

O filme no espaço doméstico

Toda esta análise no fundo trata sobre as intersecções de foto e cinema. Essa intersecção pode ser também evidente na cultura de consumo de produtos audiovisuais no espaço doméstico.

Assistir um filme, no caso Kedma, em tal espaço amplifica todos argumentos listados acima . Ou seja, a referência fotográfica é amplificada frente às possibilidades que temos como espectador: voltar, adiantar e pausar o filme ( até mesmo reeditá-lo de certa forma, apenas assistindo a alguns segmentos, na ordem desejada).

Retrato, pois, aqui, o meu caso em particular. Assistindo Kedma pela segunda e terceira vez, senti-me na liberdade de pausá-lo diversas vezes, de então, participar do filme em outro nível. Ao pausar o filme, é claro, sobressaíram as suas características fotográficas (ou as impressões as quais eu já havia tido ao assisti-lo pela primeira vez). São desses momentos que nascem textos e pensamentos os quais imprimi aqui.

Essas possibilidades dadas a nós pelo vídeo e pela apropriação deste pela televisão não podem ser descartadas em análises como esta, isto porque, a realidade de hoje em dia é a  do filme assistido em casa ( não só por um aspecto cultural de individualizações e também econômico como a impossibilidade de ir ao cinema, mas também, pela falta de acesso a alguns filmes que se difundem em especial num circuito alternativo).

Logo, nesta experiência de assistir Kedma é possível se apontar uma espécie de “punctum”  em potencial. Com o congelamento, temos uma foto. E , em minha experiência, tive fotos das paisagens,  em especial, da paisagem da ultima cena.

O que sinto me fisgar em tal paisagem é a forma da rua, da estrada – ou  melhor, o modo como ela se torna curva. Temos uma rua que é praticamente reta, mas que se curva para direita um tanto repentinamente e totalmente. Não se enxerga a sua continuação, que ruma à direita. É esta inclinada e o invisível que me fisga. O sentido de toda foto parece repousar e depender dali, exatamente de onde não conseguimos olhar ou fuçar. Toda paisagem é nublada, é fria, é vazia. E a continuação da curva que se torna quase que invisível parece ser a assinatura de todo o resto. Aí a profundidade de campo representada tem uma maior função – é essa do mistério.

De qualquer forma, consigo entender a posição de Barthes quanto aos seus termos sendo que acredito que se devem considerar também os filmes que parecem “almejar” ser também um ensaio fotográfico. Além disso, ao inserirmos os efeitos de uma sessão doméstica, tais termos têm uma maior probabilidade de relação com os filmes.

Roland Barthes, talvez, nunca concordaria com tal interpretação fílmica por crer que os seus termos “punctum” e “studium” não se relacionam ao cinema pela velocidade deste e pela impossibilidade de fixar-se na imagem, como na fotografia. No entanto, ao assistir Kedma, a imutabilidade grita à tela mais que o próprio deslize existente no cinema e tal grito parece nos presentear a licença de registrar algumas conexões negadas pelo próprio Barthes.

Suzana Altero é graduanda em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)

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