As Lacunas e o Invisível “Entre os Muros da Escola”

Patrick Diener *

Introdução

Dificilmente um professor nunca se deparou com situações que poderiam sair de seu controle. Indisciplina, intolerância, desatenção, desinteresse, entre tantos outros. Todas estas situações são mostradas durante o filme “Entre os muros da escola”. A realidade de uma Paris contemporânea, multicultural e que encara muitos dos problemas educacionais que se repetem em escolas ao redor do mundo, são dispostos durante o decorrer do filme. O artigo tem como propósito, além de descrever e analisar o filme, sua narrativa e personagens, apontar o que falta nele. Este “o que falta” entre os personagens é, por exemplo, a ausência de um pai ou responsável de algum estudante; a falta de atitudes dos professores ou outros funcionários, ou a inexistência de realidades paralelas aos muros da escola. Quem, ou o que, falta na vida e no cotidiano destes personagens? Christian Metz menciona em seu livro sobre o distanciamento de quem assiste à projeção. O distanciamento de quem assiste ao filme, ainda mais quando possui uma relação de identificação, fica mais difícil para a análise mesmo que se mantenha sempre consciente o distanciamento de quem está na sala de cinema.

At the cinema it is always the other who is in the screen; as for me; I am there to look at him. I take no part in the perceived; on the contrary, I am all-perceiving. All-perceiving as one says all-powerful (…) absent from screen but certainly present in the auditorium, a great eye and ear (…) (METZ, 1986, p.48). **

Este distanciamento é importante para que se tenha uma visão ampla do filme. Quem é professor, por exemplo, e o assiste, trará consigo o olhar de quem está nesta posição. A posição não somente de expectador, mas também de quem ensina e lida com alunos diariamente. O mesmo ocorre com quem vê a película com olhos de aluno, ainda mais se tiver passado por alguma situação semelhante durante sua vida acadêmica. Adaptado, em colaboração com Cantet por François Bégaudeau de seu próprio romance também chamado “Entre les murs” e baseado em suas próprias experiências como professor; o filme é composto em grande parte pelas aulas lideradas por François Martin. Bem humorado, controverso, e às vezes violento, François tenta orquestrar os atores não profissionais, que interpretam os alunos. Em sua sala de aula, pequena e claustrofóbica, tenta, de diversas maneiras, transmitir lições sobre os tempos gramaticais e como escrever uma autobiografia. Acaba por ser patético justamente pelas lacunas deixadas por seu próprio personagem na educação destes jovens.

As salas de aula podem levantar uma curiosidade tão grande por parte dos expectadores quanto às destinadas aos quartos conjugais nos filmes. Neste, em específico, as quatro paredes da sala de aula e as quatro paredes de um quarto guardam segredos que nem sempre são ouvidos além delas mesmas. Somos ensinados a ler palavras, mas ninguém nos ensina a “ler” imagens, elas são decodificadas, o que nem sempre ocorre da forma desejada. O que acontece é que a leitura depende de uma linguagem, escrita, ou não. Este artigo não tem intenção em fazer um estudo semiótico entre as imagens e o que estas podem representar, para que então seja utilizada como base para o intertexto juntamente com uma segunda obra (derivada do livro para o cinema). Mas, para a clareza do conceito de intertextualidade, e adiante, para a compreensão de suas diferentes formas, uma breve introdução sobre a teoria imagética é necessária e a identificação da cópia e intertexto. Roland Barthes coloca a raiz da palavra imagem como derivante de sua correlata à “cópia”.

According to an ancient etymology, the word image should be linked to the root imitari. Thus we find ourselves immediately at the heart of the most important problem facing the semiology of images: can analogical representation (the ‘copy’) produce true systems of signs and not merely simple agglutinations of symbols? Is it possible to conceive of an analogical ‘code’ (as opposed to a digital one)? We know that linguists refuse the status of language to all communication by analogy – from the ‘language’ of bees to the ‘language’ of gesture – the moment such communications are not doubly articulated, are not founded on a combinatory system of digital units as phonemes are. (BARTHES, 1977, p.32)

Não existe intertextualidade sem a mera reprodução de frames (ECO, 1991, p.185). Os descolamentos das obras que colaboram para a interseção margeiam o que pode ser interpretado como cópia, neste caso reforçados pela presença em ambas as obras do autor / diretor / ator. Para tentar sedimentar o conceito base da obra primária (livro) para a secundária (filme) e então partir para a interpretação de seus intertextos, Roland Barthes introduziu o conceito de ancoragem (BARTHES 1977, p. 38). Dizendo que elementos lingüísticos podem servir de “âncora” para a leitura de uma imagem: “para fixar a cadeia flutuante de significados” (ibid., p. 39). Este artigo faz uma análise direta do filme, não desvencilhando sua importância com o livro, mas usando-o como uma obra completa.

Sua História entre os Muros

“Entre os Muros da Escola” é o título adaptado para o lançamento no Brasil do filme dirigido por Laurent Cantet, “Entre les murs” de 2008. É baseado no, já mencionado, romance homônimo de 2006 de François Bégaudeau que também auxiliou na adaptação, seguindo termo de Gérard Genette, juntamente com o diretor. Conforme o release apresentado pelo Festival de Cannes, o romance é um relato semi-autobiográfico de experiências de Bégaudeau, vividas por François Marin, professor de literatura francesa em uma escola pública parisiense. O próprio autor foi escalado para o papel do professor. Assim como os alunos que atuam no filme, ele não possuía experiência prévia em atuação.

O filme se passa durante o decorrer de um ano letivo, começando com o reencontro dos professores e a recepção pela diretoria. Já antes do encontro com os alunos os professores comentam sobre suas expectativas e experiências com os alunos que irão encontrar. Os separam, basicamente, entre “bons” e “maus” sem, a princípio, uma análise mais detalhada sobre suas personalidades. Lembrando que a análise dá-se somente sobre o produto fílmico e não o bibliográfico que gerou o filme. Este pode dar uma dimensionalidade maior aos personagens, segundo Tara Collington não há adaptação sem a carnavalização do texto-fonte.

Baseada nessa noção da ênfase deliberada dos atributos carnavalescos específicos de certas adaptações cinematográficas, eu defenderia a relevância do carnaval para a teoria da adaptação em um nível ainda mais fundamental, sugerindo em efeito que todas as adaptações compreendem uma espécie de carnavalização do texto-fonte (COLLINGTON, 2009, p.134).

Segundo o BPB Filmheft o filme ganhou o prêmio Cesar como melhor adaptação de obra literária para cinema em 2009. Também recebeu a Palma de Ouro em Cannes no ano anterior, além do prêmio Lumières de melhor filme e o prêmio público da TV5 Monde.

Aparentemente, no início do ano os professores transmitem certo entusiasmo, alguns até mesmo uma exagerada expectativa do que podem fazer com aqueles alunos, como se fossem massas de modelar aguardando o mestre para serem moldados. Mais uma vez, ignorando o mundo que há fora dos muros da escola que obviamente é determinante para o desenvolvimento de qualquer aluno. Como obter os resultados desejados é assunto divergente entre os próprios professores que apresentam certa personalidade estereotipada e ressaltada, como por exemplo, o professor apático, outro entusiasta, um complacente, entre outros.

O significado subjacente tem importância na história, seja moral, social ou religiosa, e os personagens são freqüentemente personificações de idéias abstratas, como amor, caridade, cobiça ou inveja. E também de idéias que em um filme podem ser transmitidas abstratamente, como música, temperatura, movimento; que em um livro (a obra original) não se encontram visualmente presentes. Ainda que a alegoria tenha relação direta com o símbolo, são duas coisas distintas.

O idealismo do personagem principal, o professor Marin, fica evidente em cada tentativa frustrada de modelagem dos apáticos alunos. A tensão entre alunos problemáticos e professores desenvolve-se durante o filme. A maioria dos alunos apresenta um tipo de problema comportamental devido a alguma forma de ausência. Seja ausência dos pais, ausência de interesse pelo temas apresentados em classe ou ausência de conhecimento da língua francesa (pelo personagem chinês). A ausência de delimitação clara entre professores e alunos evidencia-se durante o conselho de classe no qual duas alunas são chamadas para fazerem um acompanhamento e, eventual, contribuição sobre a situação dos alunos no decorrer do semestre letivo. Como é de se esperar, os professores comentam sobre o comportamento desordenado de alguns estudantes e do desinteresse completo de outros e até mesmo sobre a limitação intelectual de um deles. As alunas participantes da reunião comportam-se com displicência durante o conselho de classe, mas durante a aula revelam aos seus colegas os dados informados pelos professores. Tal atitude revolta ainda mais os alunos, que já apresentam uma agressividade latente durante toda a história. Esta agressividade tem suas raízes subentendidas, invisíveis aos olhos de quem assiste ao filme.

A invisibilidade do voyeur, como chama Stam, coloca a câmera na posição de juiz quando somente aluno e professor estão em sala. Algumas poucas causas da agressividade eminente têm seu prólogo explicitado verbalmente. Durante a discussão gerada pela revelação dos dados sigilosos pelas duas alunas aos seus colegas, o professor descontrola-se e diz que elas estão se comportando como “pétasse” ou “vadias” (tradução utilizada na legenda). A sequencia parte então para uma série de agressões verbais entre alunos e professor que culminam na saída de um aluno, já problemático, da sala que apresenta como desculpa “ter tomado as dores” de suas colegas. Ao sair o aluno bate involuntariamente com sua mochila em uma colega rasgando seu supercílio. O professor, já no pátio do colégio, tenta, em vão, explicar-se com os alunos. Ele entra em uma infrutífera tentativa de distanciamento ao comentar sobre a diferença entre chamar alguém de alguma coisa e dizer que alguém está se comportando como tal; pois disse que a aluna se comportava como vadia mas que não era uma. Ao saber da possibilidade eminente de expulsão do aluno agressor, o professor tenta defendê-lo. Ao ser expulso do colégio o aluno poderia ter que retornar ao seu país natal, o que, para o professor, deveria ser evitado ao máximo.

A ausência dos pais de qualquer um desses estudantes fica evidente e é quebrada somente na cena da deliberação do conselho de classe que determina a expulsão do aluno. O pai deste aluno é invisível. Não aparece durante o filme, mas é mencionado como o responsável pela deportação do filho perante a expulsão da escola. O ressentimento guardado pelos estudantes e professores é lacunar. Ele não é explicitado através de diálogos após a expulsão. A apatia dos alunos e de alguns professores tenta preencher esta falta de exteriorização do ressentimento ou até mesmo da frustração.

No último dia de aula, o professor de francês pergunta aos alunos o que aprenderam durante o ano. Dois mencionam que aprenderam nada. A primeira aluna a manifestar-se é uma das que estava presente durante o conselho de classe e o faz claramente como uma tentativa de afronta ao professor e ao sistema de ensino. Comenta então que o que aprendeu durante o ano foi fora da escola. Por fim, após todos terem se retirado da sala, a outra aluna que estava no conselho, comenta com o professor que não tinha aprendido nada. O depoimento sincero e humilde da aluna consegue finalmente compadecer o espectador. Desprovida de segundas intenções, a aluna apresenta sua frustração não somente para com o sistema de ensino, mas também consigo por sua incapacidade de aprender. Enfim, um relato desprovido de agressividade, mas preenchido de vazio. Vazio de conhecimento. Ou talvez preenchido com o reconhecimento de “não saber”. Os alunos saem, assim como os professores. O semestre acaba e todos eles se vão.

O filme é produzido como uma aula de francês de duas horas de duração. Quase não saímos da sala de aula ou do colégio. As instruções de se usar o imperfeito do subjuntivo são interrompidas com explosões de desrespeito. O professor é insultado com gritos de “homossexual” ou de “burguês” por moleques, que além de falta de boas maneiras lhes falta também a compreensão da semântica.

Personagens Visíveis

O filme aponta diversos personagens entre alunos, professores e pais de alunos. A grande maioria deles de diferente passado cultural, raça e modo de enfrentar sua passagem pela escola. Os principais estão aqui descritos. O professor François Marin, idealista, acredita que pode mudar o mundo com seu trabalho. O que ele aparentemente não esperava era o confronto com os alunos. Quando estes começam a questionar seus métodos de ensino, desnorteia-se facilmente. Costuma defender seus alunos nos conselhos de classe mesmo parecendo diversas vezes que esta defesa não passa de uma tentativa frustrada de paternalização. Ele quer desafiar seus alunos a pensar e não somente aprender francês. Mas, mesmo que a intenção de Marin seja nobre, seus alunos são rebeldes e decidem afrontá-lo. A insistência dos alunos em encarar os argumentos do professor como ataques pessoais chega a ser repetitiva. Por diversas vezes os alunos deixam claro durante o filme que não conseguem discernir as diferentes críticas feitas por Marin.

Com cabelos crespos e mandíbula proeminente, Esmeralda, uma das representantes de classe, é francesa e petulante, mas como seus colegas de outras minorias étnicas, ela não se sente francesa ou a aluna branca tradicional, como ela mesma afirma. Esmeralda irrita-se facilmente quando o professor utiliza nomes próprios de “brancos”, conforme suas palavras, pra criar seus exemplos em aula. Para os outros, pode parecer um detalhe sem importância, mas, neste caso, os detalhes da identidade realmente importam para Esmeralda. Até o final do semestre François castiga Esmeralda e sua amiga, que se mostram incapazes de servir como representantes de classe durante a reunião com os professores onde riam e fofocavam perante o corpo docente que avaliava seus colegas.

Souleymane, imigrante da República do Mali é o “aluno problema”. Recebe grande atenção quando involuntariamente acerta uma colega de classe com sua mochila. Possui uma atitude agressiva com professores e colegas. A mãe do rapaz aparece em cena quando convocada para uma reunião que decidirá se seu filho continuará na escola ou será expulso. A mãe veste-se com um turbante e bata típicas e não fala francês. Utiliza o filho como tradutor ente ela e os professores. Durante esta reunião somente Marin parece ver o potencial do garoto e sua possibilidade de permanecer na escola. Mesmo sendo um dos pontos principais do filme, não há fechamento explicando se Souleymane realmente foi mandado de volta para Mali após a expulsão, como ameaçado durante a narrativa. Como afirma o diretor e roteirista do filme em entrevista citada no IMDB durante a elaboração do roteiro sempre foi a intenção fazer Souleymane um ponto focal da história. “Eu escrevi o primeiro script antes de ler o livro de François. Souleymane era o personagem principal do roteiro. Eu queria que sua história se tornasse o enredo do filme”. Claramente a tentativa de transformar o aluno imigrante em principal fracassou ao ser diluída entre outros alunos de igual ou maior peso. Conforme Genette a condensação é típica em certas adaptações, como ocorre com alguns personagens na transposição do livro para o filme. Souleymane e sua mãe saem da sala de reuniões para não mais aparecerem. A ausência de fechamento das histórias de cada personagem é uma constante no filme. Amiga de Souleymane, Khoumba, encarna a menina insolente no filme. Recusa-se a ler os livros sugeridos pelo professor e não realiza as atividades de classe. É ela quem acaba sendo ferida em sala de aula por Souleymane. Este é um dos pontos de virada do filme que se desenvolve na eminente expulsão de Souleymane. No entanto, ela própria adverte o professor François Marin sobre a infeliz possibilidade de Souleyamne ser retirado do país caso expulso da escola.

Wei é um aluno chinês que mal fala francês e parece ser o único realmente interessado nas aulas e com algum senso de respeito para com os colegas e professores. A presença na narrativa de Wie é sobrepujada pela massa de histórias de alunos mais problemáticos. A lacuna deixada pela história quase que suspensa de Wei não é na verdade preenchida. As histórias de outros alunos que tomam lugar no decorrer do filme não interferem nem contribuem para a trajetória do imigrante chinês.

Jean-Michel é o diretor do colégio. Tenta ser político, mas na verdade todas as suas decisões são tomadas por um conselho. Ele “lava suas mãos” a cada posição e parece “pisar em ovos” ao tratar com os alunos. Isto fica evidente  na cena onde apresenta um novo estudante para a classe. Ao entrar na sala, ele lembra os alunos, quase implorando, que devem ficar em pé quando um adulto entra na sala, mas explica-se dizendo que o ato não significa submissão. É apenas educado. Sua posição é ausente e débil. Deixa importantes decisões nas mãos de apáticos professores em votações secretas onde, mais uma vez, a ausência de opinião direta é a regra.

Lacunas entre Muros

A ausência de outras ambientações fica clara durante o filme. Não são mostrados lares, quartos, parques ou qualquer ambiente que não esteja dentro da escola. Não há a apresentação de cenas em locais como a casa de um professor, escritório de trabalho de um pai ou quarto de um aluno. O filme é completamente ambientado na sala dos professores, no pátio, cafeteria, sala da diretoria, e na maioria das vezes, na sala de aula onde François Marin leciona para um grupo misto de jovens de aproximadamente 15 anos de idade. A ausência destes referenciais externos durante o filme dá margem a interpretação que todos, não somente professores, mas alunos também, estão absortos no seu ambiente escolar. Como se nada existisse fora daqueles muros. Obviamente o que não é mostrado, nem dito  ajuda a construir a história, mesmo que de maneira não clara.

In the cinema, as elsewhere, the constitution of symbolic is only achieved through and above the play of imaginary: projection-introjection, presence-absence, phantasies accompanying percepcion, etc. Even when acquired, the ego still depends in its underside on the fabulous figures thanks to which it has been acquired and which have marked it lastingly with the stamp of the lure (METZ, 1986, p.51). ***

A falta de ambientes além da escola estende aos familiares. Sempre são mostrados acompanhando seus filhos a escola, seja para uma reunião ou para um feed-back dos professores sobre o desempenho do aluno. A invisibilidade da presença paterna e materna poderia justificar muitas das atitudes dos alunos durante o horário que passam na escola, e não somente durante as aulas. Não se sabe em que ambiente estes alunos convivem fora da escola.

Também lhes falta discernimento, tanto para alunos quanto a mestres. Quando, em uma reunião de professores, a prioridade é dada à máquina de café ao invés de um debate sobre os meios práticos para obter um pouco de disciplina dos alunos, fica evidente esta falta de discernimento e escolha entre o que fazer. As sucessivas falhas de François Marin mostram como o controle da situação lhe escapa gradualmente até o ponto onde o seu papel é, assim, desacreditado.

As condições físicas da sala de aula real usada como locação para as filmagens determinam muito o uso dos planos e enquadramentos nas cenas do filme. Excepcionalmente por algumas tomadas externas do pátio do colégio em que se usa uma câmera subjetiva (do ponto de vista de um personagem) a grande maioria das cenas são feitas nas salas em planos fechados ou em semiclose. Como resultado desta proximidade o filme inclui os espectadores quase dentro da ação. Não se observa às aulas como um objeto ausente, mas sim como alguém que vê, geralmente no mesmo nível dos olhos dos alunos, o que se passa na sala. Mais uma vez, a sensação de voyeur invisível, como descrita por Robert Stam, faz ver a sala vazia retratada na última cena que é intercalada com a tomada de alguns alunos jogando futebol no pátio da escola. Até mesmo o pátio do colégio é mostrado quase que exclusivamente de uma distância não conferida às cenas dentro das salas. A coerência espacial entre os ambientes é também suplementada pela restrição temporal do filme. Ele se passa dentro de um ano letivo desde o primeiro dia de aula até o último. Os lapsos de tempo mostrados durante o filme são quase imperceptíveis, mesmo que se passem meses na narrativa. O foco não está necessariamente no decorrer do tempo e sim no desenrolar da relação do professor com seus alunos. Apresenta, de certa maneira, a realidade pensada pelos alunos. O vão, o vácuo, a lacuna, são os momentos que passam dentro da sala de aula. Isto sim é retratado durante o filme; o espaço entre a vida real dos estudantes e o momento durante o qual estão presos em uma sala.

Considerações Finais

O que a obra deixa é a sensação de que o processo de aprendizagem é contínuo e resolvido na base da tentativa e erro em que a educação pode igualmente suceder e falhar. Se a classe tem algum ponto fraco está na réplica que constantemente dá aos professores e a si mesma. A capacidade de ser objeto da própria ironia deixa um quase gosto amargo na aprendizagem. Como quando Esmeralda admite a compreensão de Platão, mas responde desanimada que é prova viva que nada aprendeu durante o semestre. “Entre les murs” parece, ao final, tratar os alunos com algum lampejo de respeito e não de condescendência, com François a ouvi-los ao invés de usá-los para sua própria plenitude profissional. A maleabilidade do professor, neste filme, é completamente ausente. Marin não muda sua abordagem de ensino, mesmo que seja crucial para seu sucesso. Ele não passa a entender melhor seus alunos, não importa o quanto tente. A magia do filme está na destreza com que Cantet capta a vibrante vida dentro das quatro paredes da sala de aula. Este alvoroço juvenil, a verginha, as fofocas, o palavrório infindável, os debates acalorados, os protestos contra o professor muito adorado ou enraivecido.

A história marca as vitórias e fracassos com certa superficialidade e calma. Compartilha algumas das outras lições escolares não acadêmicas que acompanharão os alunos em seu caminho futuro em um escritório, uma linha de montagem, para fila de desemprego e talvez até mesmo para a prisão. Sentar, erguer a mão para perguntar, levantar-se da cadeira quando alguém entrar na sala e ficar em fila são atos presentes durante o filme. O que lhes falta e não é mostrado durante o filme é o que moldará estes alunos para o resto de suas vidas.

De maneira suntuosa “Entre os muros da Escola” é um filme sobre a guerra das palavras. As diferenças entre ensinar e aprender; aprender a responder, replicar no momento certo e querer ser ensinado. O filme é um certo tributo ao professor que tenta se fazer entender ao tratar seus alunos como adultos. O professor, por fim, esbarra na barreira da compreensão. Nem tudo que estes alunos compreendem é o que ele tentou dizer. As palavras do professor são distorcidas pelos primeiros ouvintes e retorcidas pelos ouvintes secundários de tal maneira que voltam para serem usadas contra ele, o professor. O ponto fundamental para estes alunos retratados no filme não é entender a diferença entre, por exemplo, “se comportar como uma vadia” e “ser uma vadia”, mas sim em sempre ter a última palavra.

Referências Bibliográficas

BARTHES, Roland: Image-Music-Text. London: Fontana, 1977.

DELEUZE, Gilles. Cinema 2: The time-image. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1989.

ECO, Umberto: Semiótica e Filosofia da Linguagem. São Paulo, Ática, 1991.

GENETTE, Gérard. Palimpsestos: a literatura de segunda mão. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2005.

STAM, Robert. Introdução à Teoria do Cinema. Campinas: Papirus, 2003.

METZ, Christian. The imaginary signifier: psychoanalysis and the cinema. Indiana University Press, 1986.

Referências Sitiográficas

BUNDESZENTRALE FÜR POLITISCHE BILDUNG Filmheft, Die Klasse. Disponível em: http://www.bpb.de/files/SUR23M.pdf acesso em 27/06/2011

COLLINGTON, Tara. Uma abordagem bakhtiniana para os estudos da adaptação. Revista Eco-Pós.. v. 12. n. 3. set/dez/2009.  Disponível em: http://www.pos.eco. ufrj.br/ojs-2.2.2/index.php/revista acesso em 04/07/2011

CANNES Festival Press release do filme “Entre les Murs”  http://www.festival-cannes.com/en/archives/ficheFilm/id/10804699/year/2008.html acesso em 04/07/2011

IMDB “Entre les Murs”. http://www.imdb.com/title/tt1068646/ acesso em 27/06/2011

Referências Videográficas

“Entre les Murs”, Laurent Cantet, França, Sony Pictures, 2008, DVD.

* Patrick Diener Mestrando em Comunicação e Linguagens pela Universidade Tuiuti do Paraná (UTP). Pós Graduado em Comunicação  Audiovisual (PUC PR). Docente PROPPE da Universidade Tuiuti do Paraná. Docente da graduação em Comunicação Social na Faculdade Internacional de Curitiba. Membro do grupo de pesquisa em Estudos da Imagem (UTP). E-mail: contato@patrickdiener.com

** No cinema é sempre o outro que está na tela, como para mim, eu estou lá para olhar para ele. Eu não tomo parte na percepção, pelo contrário, eu sou o que tudo percebe. O que tudo percebe, ou como se diz o todo-poderoso (…) ausente na tela, mas certamente presente no auditório, um grande olho e orelha (…) (Tradução do autor)

*** No cinema, como em outros lugares, a constituição do simbólico só é conseguida através e acima de tudo pelo jogo do imaginário: projeção-introjeção, presença-ausência, fantasias que acompanham a percepção, etc. Mesmo quando adquirido, o ego ainda depende, em sua parte inferior, de imagens fabulosas, graças às quais ele foi adquirido e as quais marcaram de forma duradoura com um carimbo de atrativos. (Tradução do autor)

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