Mas Afinal, a Baiana é Mesmo da Bahia ?

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Glauco Menta *

Introdução

Este trabalho tem por objetivo tentar melhor compreender uma figura que, embora representante uma determinada região do Brasil, se tornou mítica em todo o mundo, sendo que, ao final, passou a representar toda uma nação: a baiana. Tentarei buscar quais foram as representações mais significativas desta mulher, geralmente negra, que se tornou conhecido em todos os lugares com a grande divulgação, talvez involuntária, de Carmen Miranda. Para melhor compreender como este personagem foi se constituindo como representação do Brasil, farei um percurso que vai do pintor holandês Albert Eckhout, até a incorporação da baiana por Carmen Miranda.

Mas Afinal, a Baiana é Mesmo da Bahia ?

As primeiras imagens realizadas aqui no Brasil, que se tem notícia até os dias de hoje, mostrando suas terras e seus habitantes, são aquelas realizadas pelos artistas holandeses Albert Eckhout (1610-1666) e Frans Post (1612-1680)[1], artistas que faziam parte da comitiva que aportou em terras brasileiras em 1637, comandados por Johan Mauritis van Nassau-Siegen (1604-1679), com seu projeto de uma nova Holanda em terras Pernambucanas. Antes de serem expulsos pelos portugueses em 1644, juntamente com Maurício de Nassau, nome pelo qual o comandante ficou conhecido aqui, estes artistas tiveram tempo de produzir algumas obras. A Frans Post foi dada a missão de retratar as paisagens, e a Eckhout a missão de retratar os biótipos exóticos e ainda todo o sortilégio de frutos e vegetais tropicais. Na obra de Post[2] podemos encontrar a figura do negro somente em três, das oito obras que ainda existem do primeiro período. São elas: Vista de Itamaracá, de 1637, O Carro de Bois (Serinhaém), de 1638, e Forte Frederik Hendrik, de 1640. Em todas as três telas, temos apenas a representação do homem negro, ponto que não é abordado neste artigo, embora seja relevante, pois mostra como a presença negra em suas obras reflete muito claramente uma não indiferença à questão da escravatura já vigente no Brasil. Albert Eckhout realizou oito retratos, quatro homens e quatro mulheres, representando quatro diferentes raças[3], sendo estes os retratos mais antigos de corpo inteiro das pessoas exóticas[4] do Brasil do século XVII. Temos, portanto, em um desses retratos, a primeira e mais antiga representação da mulher negra no Brasil.

Albert Eckhout. Mulher Negra. 1641. o.s.t

Ela é mostrada com os seios nus, saiote curto frisado, em tecido de padrão preto e branco, amarrado com uma faixa vermelha, dois colares de contas, cada um com duas voltas, um deles é branco e leva um pingente de laço e gota e o outro, vermelho, brincos também com pequeno laço vermelho que segura uma gota branca, chapéu de palha com abas largas e ornadas com penas de pavão em toda sua volta, e um pequeno adorno na parte superior; A mão esquerda esta apoiada sobre a cabeça de seu provável filho e a direita, carrega um cesto, que é decorado com padrões africanos, cheio de frutas tropicais; leva pulseira em ambos os braços e carrega um pequeno cachimbo na cintura. Como observa Bárbara Berlowicz[5], “nos retratos dos negros, a representação de seus atributos transforma seu papel de escravos em apoteose de sua raça – uma imponente espada de capitão nas mãos do homem negro e a figura majestosa da mulher negra combinando atributos dos continentes americano e africano”. Como podemos ver, já no século XVII, em Pernambuco, uma vez que Eckhout certamente baseou-se em uma modelo local, podemos notar características que se tornarão determinantes para a constituição da figura da baiana, como a compreendemos hoje. De fato, ao observarmos esta imagem, o que vemos é uma negra majestosa, dona de seu destino, e ainda que o saiote curto não se pareça em nada com a vestimenta da baiana, já vemos o adorno na cabeça, as pulseiras, os colares e os brincos. Seu corpo seminu nos fala de uma terra quente e de uma sensualidade intrínseca; seu filho ao lado nos lembra sua enorme capacidade de reprodução, sensação aumentada pelo tamanho dos seios e pelo formato do corpo. O cesto de frutas, desde já, está associando a imagem de uma mulher negra à de mulher provedora e tropical, imagem ligada ao alimento que nos dá vida e ao mesmo tempo, prazer.

No século XVIII, a produção artística brasileira foi, quase que na sua totalidade, de temática exclusivamente católica. Não foi possível encontrar, até o momento em questão, nenhuma representação da figura feminina negra laica. O que encontramos são imagens sacras, de santos negros como Santo Antonio de Cartageró, São Benedito, Santa Efigênia, Santo Elesbão, São Benedito das Flores ou ainda Baltazar, o Rei Mago; encontramos, também, alguns personagens brancos pintados com traços negroides. Exemplo de caso assim pode ser visto no teto da nave da Igreja de São Francisco de Assis[6], em uma pintura de Manuel da Costa Atahide (1762-1830), onde vemos bem ao centro a imagem de uma Nossa Senhora retratada com traços mulatos.

Detalhe do teto pintado por Atahide

No século XIX, este cenário foi bem diverso. Com a transferência da sede da corte portuguesa de Lisboa para o Rio de Janeiro em, 1808, uma nova demanda por obras de arte surgia da noite para o dia, criando-se um enorme campo de possibilidades de trabalho neste meio. Dezenas de artistas europeus circularam pelo Rio de Janeiro, neste século, aventurando-se atrás deste mercado, principalmente após a vinda da chamada Missão Artística Francesa, em 1816, que tinha como objetivo fundar uma academia nos mesmos moldes da Academia Francesa[7]. Dos artistas que vieram na Missão Francesa, os dois mais importantes, Taunay e Debret, são justamente os que têm as obras que interessam aqui. Nicolas Antoine Taunay, (1755-1830), embora fosse responsável pela cadeira de Pintura Histórica na Academia de Paris onde lecionava, até a ascensão de Napoleão, aqui no Brasil, na Academia Imperial de Belas Artes, ficará com a cadeira da disciplina de Pintura de Paisagem, uma disciplina bem menos prestigiosa se considerarmos que Taunay era o artista de maior prestígio dentre os da Missão[8]; ainda assim, em 1820, ele assume a posição de Pintor de Paisagem Histórica[9]. Taunay pintou “puras paisagens descritivas sem moral nem ‘fábula’”[10] –  por isso mesmo veremos a figura do negro despontando naturalmente em seu próprio habitat. Na obra O Largo do Machado em Laranjeiras, de 1816, vemos uma série de negros trabalhando, uns vindo, outros indo, sob uma luz pálida de final de tarde. Da mesma forma, veremos os negros fazendo parte do cotidiano nas seguintes obras: Cascatinha da Tijuca, de 1818, na qual Taunay se autorretrata ladeado por dois escravos em plena floresta da Tijuca; em Vista do Rio de Janeiro Tomada do Alto da Boa Vista, de 1819,  vemos ao pé da tela, ornados por um cenário paradisíaco, a cena de um piquenique do lado direito e, à esquerda, um pastor negro e seu rebanho com ambos descansando; e também, na obra Outeiro, Praia e Igreja da Glória, de 1819, vemos, em primeiro plano, dois negros descarregando um barco. Embora o tamanho diminuto das figuras, Taunay acaba fazendo, mesmo sem querer, uma documentação precisa sobre costumes e pessoas. Na obra “Outeiro, Praia e Igreja da Glória”, de 1817, vemos a imagem de duas negras no canto direito da tela bem abaixo, uma de vestido amarelo carregando uma criança no colo, e a outra de vestido de manga comprida, com faixa vermelha amarrada abaixo dos seios, e um cesto na cabeça. Esta é a primeira vez que Taunay representa a mulher negra em suas obras do período brasileiro. A segunda obra, na qual vemos a figura da mulher negra, é a tela A Cidade e a Glória Vistos da Casa do Marquês de Belas, de 1824, pode-se ver algumas mulheres sendo carregadas por negros para embarcar em um pequeno barco, na margem esquerda uma negra usando saia, camisa, avental e pano na cabeça, e com uma criança branca no seu colo, certamente uma ama de leite. Em sua obra realizada aqui no Brasil, Taunay não super dimensiona a questão do negro, mas tampouco a esconde. Nas duas vezes em que vemos a representação da mulher negra, observamo-las agora mais vestida, com cesto e pano na cabeça, e novamente retratada como mãe, reafirmando uma imagem de boa parideira e boa provedora.

A Cidade e a Glória Vistos da Casa do Marquês de Belas, de 1824. o.s.t.

Jean Baptiste Debret (1768-1848), graças ao seu espírito inquieto, curioso e investigativo, acabará por produzir uma obra muito maior e mais complexa que a de Taunay. Debret fará grande uso da técnica da aquarela, por ser uma técnica de secagem quase imediata, propiciando esboços rápidos, feitos como se fossem instantâneos fotográficos. Debret registrou quase tudo que viu e que, por alguma razão, chamou-lhe a atenção. Olhando o resultado deste exercício de observação tão aguçado por parte dele, podemos encontrar pela primeira vez nossa baiana, devidamente registrada em sua obra. Em sua pintura, vemos a negra surgir na tela Casa da duquesa de Cadaval ocupada pelo duque de Luxemburgo em 1816, em uma cena onde vemos os nobres em frente à casa da duquesa, alguns cavalos, uma criança vestida de branco, que brinca com um pequeno mico, e, um pouco atrás, uma mulher negra com saia na altura das canelas, apenas um pano jogado sobre o ombro esquerdo e amarado do outro lado, balde em uma mão e a outra segurando um enorme cesto com roupas na cabeça; bem ao fundo, muito discretamente, vemos outra mulher negra que vem em sentido contrário. Em Mercado de escravos de Valongo, as negras que podemos ver claramente são três, e estão bem à direita da tela, sendo duas sentadas e uma em pé sendo examinada por um casal de brancos. Na forma como vemos aqui estas mulheres, essa imagem nos remete em parte à mesma imagem da negra do século XVII, de Eckhout, pois duas delas se apresentam apenas com pequeno saiote, com seios à mostra, e a terceira tem um pano jogado sobre os seios, que está sendo levantado para análise dos compradores. A diferença é que lá vemos uma rainha ou personagem nobre, simbólica, e aqui vemos três escravas sendo vendidas. Mas se na pintura de Eckhout podemos ver a figura da mulher negra apenas em duas situações, são nas aquarelas de Debret que vamos realmente encontrar a figura que procuramos, uma imagem cotidiana. Em seu catálogo raizonné, onde se pode pesquisar a obra completa, encontrei a mulher negra figurando em 138 aquarelas[11], sendo que em 59 deste total a temática é bastante diversa, ora os negros sendo o assunto da aquarela, como por exemplo em: Jovens negros indo à igreja para serem batizados, de 1821, Coleta de esmolas para a igreja do Rosário, Porto Alegre, de 1828, Casamento de negros pertencentes a uma família rica, de 1826, Uma Mulata brasileira indo passar as festas de natal no campo, de 1826, e As Vênus negras do Rio de Janeiro, de 1820-1830, só para citar algumas, e ora apenas figurando na cena, como em diversas paisagens que Debret registrou.

Jean-Baptiste Debret. Casamento de negros pertencentes a uma família rica, de 1826. Aquarela

Teremos também estas mulheres amamentando, costurando, bordando, lavando roupa, abanando, sendo acompanhantes de senhoras, carregando leite etc., e vendendo quase tudo. Surgem vendendo folhas de bananeira, angu, pastel, manoé, pudim quente, sonho, mocotós pelados, bolos da Bahia, polvilhos de forno, pão-de-ló, café torrado, caju, tripa, banha de cabelos “bem cheirosa”, aluá, limões doces, cana de açúcar, refrescos, milho verde, etc. As outras setenta e nove aquarelas, nas quais podemos ver a mulher negra, são trabalhos dedicados exclusivamente para o registro dos povos negros que aqui viviam. Nesta série, novamente as veremos em diversas profissões, mas principalmente em diferentes tipos de indumentárias, usando tanto os trajes típicos negros como as roupas europeizadas por elas usadas, bem como ainda muitos tipos de penteados, arranjos de cabeça e diferentes turbantes, tanto de escravas como de libertas.

É claro que em toda esta vasta representação registrada em suas aquarelas, encontraremos vários exemplos de proximidade dos trajes com o tipo de baiana que pesquisamos, principalmente nas imagens de vendedoras ambulantes de comida, sempre com seu turbante, saia rodada, pano de costas e um cesto na cabeça. Mas duas aquarelas em especial chamam a atenção: a primeira delas, intitulada Baianas, de 1817-1829, merece maior destaque.

Jean-Baptiste Debret. Baianas, de 1817-1829. Aquarela

Como se sabe, Debret nunca esteve no estado da Bahia, portanto essa aquarela não foi realizada lá, mas sim no Rio de Janeiro. Nela vemos o registro de quatro diferentes tipos de baianas, com toda a indumentária que lhes é peculiar, ou seja, as pulseiras, os colares, os turbantes, os panos de costas e as saias rodadas; ao centro, uma negra que novamente se aproxima da negra de Eckhout, usando apenas saia, colar e brincos e que, portanto, vamos deixar de lado neste momento, concentrando a atenção nas outras quatro figuras. Estas quatro baianas, se comparadas com as outras representações da mulher negra feitas por Debret, apresentam uma grande semelhança no seu modo de vestir. Na verdade, a coisa que mais as diferencia é o título, dado por Debret, de Baianas. Este dado é o que distancia estas quatro mulheres, dentre as inúmeras negras por ele representadas. Há outra aquarela intitulada Negras Baianas – estudo, de 1817-1829, pertencente ao Museu Castro Maia do Rio de Janeiro, na qual vemos a mesma situação da aquarela analisada anteriormente.

Jean-Baptiste Debret. Negras Baianas – estudo, de 1817-1829. Aquarela

Estas duas obras parecem uma prova bastante consistente de que, mesmo sendo todas negras nas obras pesquisadas, muitas ainda quituteiras e usando uma indumentária muito parecida, existia um conceito diferente sobre quem seria, por exemplo, uma baiana. E este conceito sobre uma possível baiana, que é diferente de uma negra carioca, por exemplo, fica patente nesta obra, realizada ainda na primeira metade do século XIX em pleno Rio de Janeiro. Com certeza, as aquarelas de Debret são o maior e mais profícuo registro dos negros nesta primeira metade do século XIX, ainda que inúmeros artistas neste mesmo século também tenham retratado o homem negro, e seu modo de vida. Pensemos principalmente naqueles que aqui vinham integrando uma missão científica, como João Maurício Rugendas (1802-1858), da expedição Langsdorf (1774-1852), ou Thomas Ender (1793-1875), da expedição austríaca, por exemplo, bem como aqueles artistas neoclássicos que buscavam um mercado entre as elites, produzindo uma enorme quantidade de paisagens, onde não muito raro, podemos ver um ou alguns negros representados.

Com o Surgimento da fotografia, e todas as enormes vantagens que esta nova técnica de reprodução de imagens tinha sobre a pintura, como maior fidelidade na reprodução da imagem, possibilidade de várias cópias, custo muito reduzido de produção, etc., teremos um novo momento do registro da imagem da mulher negra no Brasil. Da mesma forma que, na primeira metade do século XIX, em busca de mercado de trabalho, dezenas de pintores vieram para o Brasil, na segunda metade, este fato se repete, só que agora com inúmeros fotógrafos que migram para cá, em busca de um mercado de trabalho que se formava[12]. Tudo isso ocorreu com grande apoio de Pedro II, dono da primeira câmera fotográfica existente no Brasil, um daguerreótipo, sendo ele um entusiasta que colecionou fotografias de várias partes do mundo, fazendo grande uso particular desta técnica em sua vida pública e privada.

Marc Ferrez (1843-1923), M. Lindermann, Christiano Júnior (1832-?), Alberto Henschel, F. Villela, Militão Augusto de Azevedo (1837-1905), August Stahl (1828-1877), e Gino Ardinghi são apenas alguns dos inúmeros fotógrafos que poderiam ser citados. Toda cidade que se prezasse tinha que ter pelo menos um estúdio fotográfico, o que significa que estamos falando de um campo muito mais amplo que o da pintura, que ocorre fundamentalmente nas principais capitais, em especial, o Rio de Janeiro. Nestas novas representações fotográficas podemos observar na verdade dois olhares: o primeiro é olhar sobre o outro, no qual temos o fotógrafo agindo sobre o modelo escolhido, sua pose, sua indumentária, configurando uma imagem que pode parecer folclorizada, se percebida tal imagem como a veríamos hoje em dia, mas que, na verdade, ainda fazia o registro fiel desses afro-brasileiros em seu tempo; o outro olhar, é o olhar sobre si mesmo, no qual podemos ver como estes negros, de posse da decisão da indumentária a ser usada, a pose a ser feita, em que cenário essa imagem seria registrada, gostariam de ter suas imagens eternizadas. Nossa baiana se encontra no primeiro caso, o do olhar do fotógrafo, em toda a sua plenitude, com uma enorme diversificação de indumentárias, com muitos tipos de saias, turbantes de variados tamanhos, muitos enfeites e panos de costas jogados de diversos modos. Curiosamente nas fotos onde vemos o olhar sobre si mesmo, nossa baiana desaparece para ceder lugar a uma mulher negra vestida como branca, à moda da época, em uma clara negação de um passado ainda muito próximo deles, a escravidão[13], e uma tentativa de aproximação de valores culturais pertinentes à realidade dos brancos, adotando posturas similares.

Um olhar sobre o outro

Marc Ferrez – 1870-1880

Alberrto Henschel & cia. 1805.
Jovem negra com torço. C.1860-1865 e Jovem negra com pano-de-costa. c.1860-1865

Um olhar sobre si mesmo.

Retrato de uma família negra. c. 1880

Nas primeiras décadas do século XX, esta figura da baiana já se encontrava totalmente difundida, tanto no Rio como em Salvador, como um corpo estável da sociedade dessas primeiras décadas. Lá poderiam ser encontradas: “baianas de candomblé, repletas de simbolismos religiosos, baianas de tabuleiro, vendendo frutas e quitutes nas ruas do Rio e de Salvador, baianas de escola de samba, evocando as tias baianas, a partir de cujas casas o samba ganhou as ruas cariocas”[14]. Um cartão postal do carnaval do Rio, da década de 1930, mostra isso, um grupo de baianas desfilando na rua.

Anônimo. Cartão postal da década de 1930
Jean-Baptiste Debret. Carnaval, 1823. Aquarela

Pois é justamente nesta década de trinta, que, mesmo sem ser premeditado, esta baiana ganharia o mundo pela voz e gestos de Carmen Miranda. É no filme Banana da Terra, de João de Barro, de 1939, que vemos pela primeira vez Carmen vestida de baiana, um figurino que não foi criado por vontade dela, mas sim porque ela cantaria “O que é que a baiana tem?”, de Dorival Caymmi, na época, um novato. Sendo assim, seu figurino apenas respondia a uma correlação com a letra da música. Para isso Carmen pôde contar com a ajuda do próprio Dorival, como nos conta Ana Rita Mendonça[15]:

“Como se cuidasse de preparar Carmen Miranda, Dorival Caymmi acompanhou-a até a costureira, mulher do compositor Vicente Paiva. Caymmi lembra do tecido argentino escolhido por Carmen, com listras vermelhas, verdes e amarelas. Depois, foi com ela escolher os balangandãs na Avenida Passos. E no dia da filmagem sugeriu meneios a Carmen.”

E continua a autora:

Cena do filme Banana da Terra, de João de Barro, de 1939

“Fazia-se o mais lindo camafeu tropical. Tinha torso de seda a baiana primeira. Pano de costas, bata rendada e saia engomada também. Brinco, corrente, pulseira, rosário de ouro. Tinha sandália enfeitada. E frutas, que a própria Carmen juntou ao torso da cabeça, evocando as ambulantes baianas, numa escolha que se revelaria premonitória.” [16]

Como podemos ver, a criação deste figurino é de Carmen, mas ela se mostrava aberta a opiniões alheias. E Carmen voltaria a usar figurino de baiana, pelo mesmo motivo, ou seja, para cantar “O que é que a baiana tem?“ , de Dorival, só que agora no Cassino da Urca. Fazia apenas uma semana que o filme havia estreado e faltando poucos dias para o carnaval. Carmen aceita vestir outra baiana, não sem um certo receio, receio este para o qual buscou ajuda novamente, como conta Ana Rita:

“Fantasia vulgar, Carmen temeu usar baiana na Urca[17]. Para sofisticar o traje, o artista plástico Gilberto Trompowski desenhou uma baiana branca com larga barra preta, enfeitada com um desenho do Pão de Açúcar. Colares e cestinhas na cabeça faziam o complemento. Se as baianas não se limitaram às ruas naquele carnaval de 1939, entrando no bailes grã-finos, é preciso levar em conta a estilização de Carmen.”[18]

Esta apresentação se mostraria decisiva na carreira de Carmen, pois foi na noite em que foi descoberta pelo grande produtor norte americano Lee Shubert, responsável por sua partida para os Estados Unidos, de onde divulgaria nossa baiana para o mundo.

As baianas de Carmen, devido à dimensão de sua abrangência com o público, e a um número cada vez maior de pessoas envolvidas em todo o processo de seu trabalho, acabarão por ganhar diversas nuances, e muitas possibilidades de leitura. Estas diversas nuances e possibilidades de leitura talvez sejam parte da explicação de tanto sucesso das baianas estilizadas de Carmen, que conquistavam e continuam a conquistar fãs em todo o mundo. A outra parte, é claro, deve-se ao grande talento e enorme carisma de Carmen Miranda, uma luso-carioca, que ficou conhecida do grande público por incorporar uma baiana, ainda que negra não fosse.

* Glauco Menta é graduado em Artes Cênicas pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (1990). Tem especialização em História da Arte no Speculo XX pela EMPAB — Escola de Música e Belas Artes do Paraná. Atualmente, ministra as disciplinas Artes Gráficas, História da Arte e História do Design Gráfico para os cursos de Design e Comunicação no Unicuritba — Centro Universitário Curitiba. Seus trabalhos nas artes plásticas já foram expostos em diversas mostras, salões, galerias, em coletâneas ou individuais. O artista já foi premiado em salões, sendo alguns exemplos o Prêmio Aquisição na VII Mostra de Gravura Cidade de Curitiba, PR, em 1986, o 1º Prêmio Varig de Viagem para Bangkok, Curitiba Arte 9, Salão Alci Ramalho Filho, em 1993, o Prêmio Aquisição no 52º Salão Paranaense, Museu de Arte Contemporânea, Curitiba, PR, em 1995 e o Prêmio Secretaria de Estado da Cultura no 2° Salão Nacional de Cerâmica, Curitiba, PR, em 2009.

Referências Bibliográficas

. BELLUZZO, Ana Maria de Moraes. O Brasil do Viajantes. São Paulo, 2000.

. DIENER, Pablo. Rugendas e o Brasil. Pablo Diener, Maria de Fátima Costa; [Pedro Corrêa do lago, cordenador; tradução de Julio Bandeira, Sybil S. Bittencourt] São Paulo: Capivara 2002.

. Eckhout – Volta ao Brasil . 1644 . 2002. Catálogo. Pinacoteca de São Paulo. 2002.

. MENDONÇA, Ana Rita. Carmen Miranda foi a Washington, Rio de Janeiro: Record, 1999.

. Taunay e o Brasil: obra completa, 1816-1821/ [organização e textos] Pedro Corrêa do Lago. Rio de Janeiro: Capivara, 2008.

. Mostra do redescobrimento: negro de corpo e alma. Nelson Aguilar, organizador./ Fundação Bienal de São Paulo. São Paulo – 2000.


[1] Vale a pena lembrar que mesmo antes do “achamento” do Brasil, há representações das Américas, seja na forma de mapas com elementos exóticos ou na forma de gravuras que mostram animais ou gentes. A questão aqui é de representações do Brasil feitas no Brasil.

[2] Trata-se aqui somente da primeira fase do artista no Brasil, exatamente aquela cujas obras foram realizadas em terras brasileiras, de 1637 a 1644.

[3] São elas: Os Tapuias, os Tupis, os Mamelucos e os Negros. Eckhout pintou mais três telas onde vemos o homem negro, um retrato de Dom Miguel de Castro, enviado do reino do Congo, e dois retratos de seus servos.

[4] Exótico aqui, visto pelo prisma do olhar europeu. Não se trata de discutir o conceito aqui, mas o sentido é o empregado por Edward Said em O orientalismo: exótico é aquilo não comum ao universo do mundo europeu: o sensual, o diverso, o violento, o estranho, o “outro” visto como inferior em vários aspectos.

[5] In: Eckhout – Volta ao Brasil . 1644 . 2002. Catálogo. Pinacoteca de São Paulo. 2002. Pg 203.

[6] Sua construção teve início em 1766, com projeto arquitetônico, risco da portada e elementos ornamentais como púlpitos, retábulo-mor, lavabo e teto da capela-mor da lavra de Antonio Francisco Lisboa (1738-1814), o Aleijadinho, e pinturas de Manuel da Costa Ataíde (1762-1830).

[7] A Academia Imperial de Belas Artes só foi fundada dez anos mais tarde, em 1826.

[8] Este fato será de grande peso na sua decisão de voltar à França, em 1821, antes mesmo da fundação oficial da Academia em 1826.

[9] Este fato não o impediu de incumbir-se da missão de retratar Carlota Joaquina e seus sete filhos e a Marquesa de Belas, além de ocupar-se com um retrato de seu filho, Adrien Taunay.

[10] In: Taunay, Nicolas-Antoine, 1755-1830. Taunay e o Brasil: obra completa, 1816-1821/ [organização e textos] Pedro Corrêa do Lago. Rio de Janeiro: Capivara, 2008 . p. 10

[11] Estas aquarelas servirão de estudos para a produção do livro Viagem Pitoresca ao Brasil, publicado na França em 1834. Os desenhos serão reproduzidos em litografia, sendo que algumas destas imagens são reproduções exatas das aquarelas, e outras contém desenho de duas ou três aquarelas.

[12] O surgimento deste novo mercado não impediu que pintores continuassem a se aventurar em terras brasileiras em busca de trabalho, uma vez que o surgimento da fotografia não exclui a pintura; apenas a força a encontrar um novo sentido.

[13] Digo isso porque embora a escravidão só tenha acabado definitivamente em 1888, os negros que vemos posando para fotos, vestidos como brancos e principalmente calçados, são negros, na sua maioria, alforriados ou que conquistaram sua liberdade de algum modo.

[14] In: Mendonça, Ana Rita. Carmen Miranda foi a Washington, Rio de Janeiro: Record, 1999.

[15] In: Mendonça, Ana Rita. Carmen Miranda foi a Washington, Rio de Janeiro: Record, 1999. p. 18

[16] Idem.

[17] A Urca, como a maioria dos cassinos em todo mundo aquela época, era lugar frequentado pela elite, o que poderia justificar um pouco seu temor em usar uma baiana. O comum era que se usasse traje de gala.

[18] In: Mendonça, Ana Rita. Carmen Miranda foi a Washington, Rio de Janeiro: Record, 1999. pg. 18 e 19

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