Os filmes gritam? Ou os filmes silenciam? > Possíveis sons (ou destinos) para uma imagem em deterioração

Dedicado a Rafael de Luna Freire, Fabián Núñez, Hernani Heffner, Alice Gonzaga, Francisco Moreira e Gustavo Dahl, que me ensinam que o saber e o aprendizado também são frutos do amor e da disputa ética pela sobrevivência das imagens.

 

Juliana Cardoso Franco[1]

 

 

Resumo: Este texto parte de duas experiências que aconteceram em 2015 no âmbito dos arquivos de filmes e na área da preservação audiovisual: 1) um debate que ocorreu no Seminário de Arquivos do 10ª Mostra de Cinema de Ouro Preto – CineOP; 2) e um mutirão organizado pelo curso de cinema da Universidade Federal Fluminense (UFF) junto ao fechamento da sede da produtora Herbert Richers, particularmente no estúdio que era localizado no bairro da Usina, Rio de Janeiro. Este texto tem o objetivo de demonstrar como essas duas experiências abrem possibilidades para se pensar a natureza das imagens audiovisuais (sejam elas produzidas em película ou digital), assim como possíveis destinos que tais situações colocam em cena e como possibilidade de ações em torno tanto da história do cinema brasileiro, como para a produção, difusão e preservação dessas imagens hoje.

Palavras-chave: Cinema; Preservação; Película; Digital.

Abstract: This article is based on two experiences that took place in 2015 in the context of film archives and film materials within the field of audiovisual preservation: 1) a discussion that happened during the 10th Ouro Preto Film Festival, a festival with a focus on preservation; 2) and a joint effort made by the Film Department of the Universidade Federal Fluminense, Niterói, on the occasion of the closing of the company Herbert Richers, particularly regarding its studio located in the neighborhood of Usina, in Rio de Janeiro. The article aims to demonstrate how these two experiences open up possibilities to think about the nature of audiovisual materials (whether produced in film or digital) as well as their possible destinations that concern both the history of Brazilian cinema as the production, access and preservation of these materials today.

Keywords: Cinema; Preservation; Film; Digital.

 

 

  1. “Se meu filme falasse” > qual seria o som que uma imagem de arquivo ou um filme em deterioração emitiria?

É provável que a declaração que mais tenha ressoado durante a última CineOP  – Mostra de Cinema de Ouro Preto, principal festival do país dedicado a filmes de arquivo e ao universo da preservação cinematográfica, que completou 10 anos de existência em 2015 – tenha sido uma curta afirmação feita quase que ao acaso durante um dos debates do festival, e que lembra um aspecto primordial do cinema, que é o fato dele ser composto por imagem e som: “os filmes gritam”. A frase, proferida pelo professor da Universidade Federal Fluminense, Rafael de Luna Freire, surgiu num contexto que abordava a condição de grande parte dos filmes da história do cinema brasileiro, que comumente se encontra em uma situação de descaso dentro dos arquivos brasileiros, sem condições de ir além da guarda dos seus materiais. A frase acabou por ocupar um papel de síntese ou conclusão em meio às visões que parte significativa dos presentes no Seminário assumiram sobre a situação da preservação dos filmes hoje. E isso ocorreu principalmente porque ela conseguia sintetizar uma imagem que aqueles que frequentam arquivos no Brasil – e que têm olhos para ver essa imagem “quase secreta” ou invisível – encontram em visitas frequentes ou esporádicas aos arquivos que guardam a memória do nosso cinema e audiovisual.

Durante essa mesma décima edição da CineOP, foi lançado o livro Reflexões sobre a preservação audiovisual (2015), publicação comemorativa dos dez anos da Mostra, organizada por Hernani Heffner, Raquel Hallak e Fernanda Hallak, que conta com 52 textos sobre o assunto, de diferentes autores. Importante ressaltar que se trata de uma publicação inédita no Brasil no que se refere à relação entre cinema e preservação, daí a grande importância que ele já assume desde o seu lançamento [2]. Reflexões sobre a preservação audiovisual foi distribuído gratuitamente entre os inscritos no Seminário de Preservação da CineOP, o que não deixa de ser um gesto político, cujo conteúdo coloca em reflexão princípios e práticas extremamente indefinidas e deficientes no país e que refletem o descaso com o patrimônio cultural, público e privado, mesmo que consideremos alguns avanços nos últimos tempos. Paralelamente ao lançamento deste precioso trabalho, a frase “os filmes gritam” era recuperada vez ou outra durante o Seminário e, embora não haja dúvidas de que ela é simbólica e bastante representativa, algo nela me parecia inapropriado, ainda que não fosse possível identificar naquele momento o que significava este incômodo.

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Alguns teóricos refletiram ao longo da história das imagens sobre uma potência aurática, misteriosa e divina que a fotografia trouxe para a produção das imagens, entre eles Roland Barthes (A câmara clara) e Walter Benjamin (“A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”). Barthes (1980) investigou profundamente a relação que muitas vezes se faz presente na fotografia com a morte, enquanto Benjamin (1987) dedicou-se a pensar uma aura que por vezes acompanha uma imagem e que o advento da modernidade no início do século XX – e a reprodutibilidade técnica que esta trazia de forma cada vez mais intensa à fotografia – poderiam colocar em risco. Se desta forma ambos acabaram, cada um a sua maneira, enfatizando este aspecto divino ou sagrado que pode estar presente em uma imagem, quando se considera esta condição diante de uma imagem proveniente de um arquivo, tal potência é capaz de ganhar ainda mais relevo. De uma forma ou de outra, é muito comum nos depararmos com a noção de morte e vida junto a essas imagens, mesmo que se trate de pessoas, instituições ou demais índices ainda presentes em nosso cotidiano, já que a relação com a memória e com um tempo que não se faz mais presente ganha ali um corpo e uma existência por vezes dotados de grande intensidade.

Neste sentido, é curioso perceber que o início do caminho para que houvesse uma possível compreensão em relação ao incômodo diante da declaração feita na CineOP por Rafael de Luna tenha vindo justamente de um texto que reflete esta relação entre vida e morte. Como um insight que muitas vezes tem a capacidade de esclarecer e dar respostas para questões que não conseguimos compreender bem ou colocar em palavras, foram as palavras presentes no primeiro texto do livro lançado na CineOp, um texto de um homem morto, que dariam o início de uma resposta que eu procurava para aquele incômodo. Neste texto, intitulado “O diabo torto”, Gustavo Dahl inicia sua argumentação afirmando: “Os filmes morrem sem gemer” (2015: 25) [3]. Assim como acontece em alguns mistérios de nossas vidas que geralmente são dotados de um poder de síntese que não precisa de muitas palavras para se fazer entender e é suficiente para iluminar um questionamento, Gustavo Dahl se fez presente de forma impactante e enérgica diante dos meus questionamentos. A frase, a primeira do texto selecionado para introduzir o livro citado aqui, estava ali, pronta para dar sentido a todo o meu estranhamento ou incômodo anterior, e só por si mesma já dava pleno sentido a toda a problemática que se apresentava.

  1. A experiência do fim da Herbert Richers

Ainda que um texto possa ser iluminador para uma abertura de consciência em torno dos sentidos que surgem em nossos encontros no mundo das imagens e do campo do real, algumas vezes só é possível encontrar em nossas próprias experiências os indícios necessários para que algumas respostas possam ser aprofundadas no que elas nos motivam e nos desafios que apresentam a cada um de nós. E, neste sentido, uma experiência em particular que tive em torno do universo da preservação vem me acompanhando de forma significativa na minha relação do cinema com as demais imagens e nas diferentes fases de seu processo criativo, mesmo que nem sempre seja possível encontrar respostas claras ou óbvias ao longo desse processo. Durante o mês de abril de 2015, a famosa produtora e estúdio de dublagem Herbert Richers tinha não só ido à falência, como seu acervo havia passado por um processo de completo descaso, sendo inclusive saqueado após o fim de suas atividades. O fim da famosa produtora, responsável por grande parte das dublagens de filmes estrangeiros no Brasil, representa de modo radical um exemplo de uma problemática que acontece de um modo mais ou menos evidente em diversos acervos do país. Nesse caso, para além dos filmes produzidos, tratava-se da maior experiência brasileira em termos de trabalhos de dublagem, o que materializa não só traduções para essas obras, mas também todo um trabalho de criação, dramatização, falas e demais aspectos extremamente desafiadores e complexos, que colocam em jogo diversos níveis da criação e do aspecto cultural da arte e cultura brasileiras. A Universidade Federal Fluminense foi notificada sobre as condições em que se encontrava o acervo e organizou alguns mutirões com alunos e voluntários que estavam dispostos a salvar materiais das mais diferentes naturezas e origens que ainda restavam no local.  Sem entrar em detalhes ou numa narrativa de como isto ocorreu, este acontecimento é capaz de revelar algumas circunstâncias essenciais para o universo da preservação hoje [4].

III. O gesto de salvar um filme > Limites de um ato “sagrado”?

É curioso atentar para o fato de que a iniciativa de contactar a UFF para que a instituição pudesse buscar alguma solução a respeito do acervo veio do novo inquilino do terreno que era da Herbert Richers: uma igreja japonesa. Se alguns de nós comumente se declaram melancólicos ou até mesmo traumatizados com o fato de que tantas igrejas tomaram o lugar de históricas e amadas salas de cinema de rua, é curioso que ao menos nesse caso temos que ser gratos ao fato de que o cuidado e a atitude de dar algum destino ao acervo e aos equipamentos que ainda estavam lá tenham partido de uma igreja e não da própria indústria cinematográfica. Isso é altamente significativo e complexo para o que ocorre com a preservação nos dias de hoje, inclusive dentro da própria comunidade cinematográfica: não há uma conscientização minimamente satisfatória pela grande maioria de produtores e cineastas brasileiros, que parecem exclusivamente preocupados com uma dinâmica de produção – e sua escassa “democratização” – e praticamente sem nenhuma política ou luta em torno da preservação, a menos que esta se torne uma fonte de direitos autorais, o que não chega a expressar uma política, mas principalmente uma fonte de renda, uma “forma de vida” de alguns herdeiros de “alguns poucos cineastas” que vêm a se tornar célebres e reconhecidos por críticos e pela academia. É claro que esperamos que esses poucos exemplos se tornem cada vez mais numerosos, mas isso não significa que podemos deixar de atentar para o fato de que a luta pelos direitos autorais não significa – e não pode significar – uma consciência diante do gesto da preservação. É preciso que este gesto ultrapasse sem deixar dúvidas uma preocupação que vá além de uma forma de subsistência. Neste sentido, é curioso que uma atitude mínima de consciência em relação à preservação tenha vindo neste caso justamente de uma igreja, instituição que há tempos vem tendo o poder de substituir o encontro com imagens do cinema por imagens identificadas por grande parte do povo brasileiro desde nossa mais inconsciente idade como sagradas e com as quais algumas vezes nos deparamos junto às nossas mais profundas esperanças, sonhos, angústias, desejos ou sofrimentos.

Paralelamente a este simbólico contexto e voltando à experiência da Herbert Richers, algumas poucas palavras de uma das mais polêmicas e corajosas figuras da preservação no Brasil, a produtora Alice Gonzaga, trazem ainda mais profundidade à discussão em torno da preservação do cinema brasileiro. “Dona Alice”, como é chamada por quem é da área, é conhecida principalmente por duas facetas de sua atuação no meio cinematográfico e na sua luta junto ao mundo da preservação dos filmes brasileiros e da clássica produtora Cinédia: 1) a do seu respeito e luta pela preservação e pelos direitos autorais dos filmes produzidos ou dirigidos por Adhemar Gonzaga; 2) e ao mesmo tempo, por ser uma mulher de atitude em meio a debates sobre a preservação do cinema brasileiro, estejam suas afirmações ligadas a filmes da Cinédia ou não. Mulher de muitas histórias do cinema, que persegue desafios e que chega até mesmo a ser temida por suas palavras duras, ácidas ou sinceras, foi Dona Alice a responsável por um dos comentários mais sensíveis e atentos em relação a esses mutirões que aconteciam na Herbert Richers[5]. Não só pelo impulso de uma longa relação com a causa da preservação, mas também porque se mostrava preocupada com a tarefa que os voluntários teriam, Alice sintetizou através de um breve aviso ou preocupação, que pareceu indelicado ou grosseiro a alguns, que este processo de dedicação a um arquivo que se encontra em uma condição extrema lembra uma relação semelhante com a que se tem com um morto. Mas essas palavras, irônica ou tragicamente, não poderiam ser mais exatas aos que se aproximam e desejam a iniciativa de salvar um filme hoje, e não apenas se ele for feito em película. É curioso perceber que essa declaração só poderia ser feita com tal precisão por uma pessoa que provavelmente passou em diversos momentos de sua vida pelo desafio de lidar com imagens “prestes a morrer” diante de uma luta bastante particular para que estas imagens continuem vivas, ainda que isso traga sofrimentos.  A realidade da sobrevivência das imagens muitas vezes pode ser dura e exigir um esforço físico ou mental, principalmente se não há uma base ou política de Estado mínimas em torno dela, e esta fala de Alice Gonzaga coloca em evidência o fato de que desejar salvar um filme requer determinação e amor (e até mesmo sacrifício) pelo cinema, porque, de fato, muitas vezes é como se estivéssemos cuidando de um ente querido prestes a morrer. Se isso traz um sofrimento que pode ser sentido tanto de forma física como de forma emotiva e sentimental [6] (porque vemos e sentimos que é toda uma história e amor que podem estar ali desaparecendo diante de nós, e no caso da película literalmente se desfazendo diante dos nossos olhos e em nossas mãos), isso não significa que o amor ou o prazer não estarão presentes neste processo.

O trabalho de salvar “um cinema” pode ser capaz de aprofundar na nossa mente, corpo e memória a própria natureza da imagem cinematográfica e da arte como um todo, inclusive em sua mais simples e profunda criação e origem. Porque de algum modo se percebe ali que tanto na vida quanto na arte, assim como no que se refere à relação da vida com a morte, estas podem estar muito mais próximas do que parecem, uma dialogando o tempo todo com a outra. Estamos lidando ali com um início e com um fim de imagem – e de não só uma vida, mas várias – com nossas próprias mãos e mentes. E com um certo desejo de ir além desse fim, de poder viver mais um pouco, de fazer (sobre)viver apesar deste diálogo muitas vezes iminente que existe entre vida e morte em uma imagem. Ou até mesmo de fazer o eterno ser de algum modo possível, mesmo que através dela. Assim, a declaração peremptória, espontânea e ao mesmo tempo seca e extremamente realista e prática de Alice Gonzaga, feita em um espaço que traz em si os desafios do “ser” e da imagem virtual, coloca isso tudo em questão.  E como uma atuante da área da preservação que tem uma profunda experiência com o mundo da película há anos, Alice Gonzaga ainda traria uma simples e valiosa dica para a empreitada, no geral esquecida hoje, não à toa: “levem luvas” – artigo cada vez mais raro ao cinema contemporâneo, que pensa não precisar mais delas porque se sustenta em fios e botões.

Em meio à aventura trágica que era estar no meio de tantos materiais que poderiam ser vistos apenas como lixo, mas diante de uma experiência que traz a possibilidade de um encontro com o inesperado, foi marcante encontrar, no meio desse complexo garimpo de documentos e imagens, mais um meio em extinção, uma carta de intenções de um candidato a funcionário que tinha como grande sonho de sua vida trabalhar ali, por acreditar que a Herbert Richers seria o local ideal para o seu futuro e para os seus sonhos. Suas palavras tratavam a produtora como uma espécie de paraíso no qual os seres humanos poderiam viver eternamente junto às imagens. Fiquei imaginando onde aquele homem se encontraria agora e se ele imaginava como o lugar dos seus sonhos se encontrava destruído de forma tão assustadora. Isto reflete inclusive uma acusação presente neste texto de Dahl que já vimos reproduzida algumas vezes por diferentes pessoas que trabalham com cinema, mas que apesar dessa recorrência, continua a nos chocar ou emocionar sempre, que é o fato de muitos filmes brasileiros só aparecerem ou se tornarem conhecidos ou lembrados diante de sua perda ou destruição, como, por exemplo em casos extremos, quando queimados nos incêndios dos acervos do país, sejam estes acidentais ou não[7]. É inclusive por causa dessa lógica de um certo horror invisível ou indiferente que há na perda de imagens do nosso cinema, e que raras vezes chega a ser denunciada, que Dahl se refere à clássica obra de Paulo Emilio Salles Gomes (“Cinema: trajetória no subdesenvolvimento”), para afirmar que a preservação no Brasil aponta para um subdesenvolvimento “que  não é um estágio, mas um estado” (2015: 25). E que o faz mencionar uma canção que ficou clássica na voz denunciante de Elis Regina, que em “Querelas do Brasil” constata: “O Brasil não merece o Brasil”. Dahl acaba enfatizando com isso que a preservação continua sendo praticada de uma forma um tanto superficial, fruto de lutas e interesses que são mais políticos do que éticos. É claro que a luta sempre será política até determinado ponto, mas Dahl acaba por nos lembrar que o dilema entre preservar e difundir não pode se sustentar em falácias ou falsas polêmicas. E por isso afirma de forma sintomática: “As coisas mudam, mas também não mudam” (2015: 26). E isso de certa forma também deixa ver que as coisas ­– ou os “progressos” – também mudam para não mudar.

Juliana3

Portanto, para além de uma reflexão sobre como o cinema digital é pensado hoje – onde não há consenso sobre a melhor forma de preservar as imagens contemporâneas, tanto no que se refere ao material bruto de um filme ou obra (o antigo “copião”) quanto ao seu produto final – a frase “os filmes gritam”, proferida por Rafael de Luna em relação a essa imagem clássica da película em deterioração, sem dúvida é positiva e esperançosa, mas ela, infelizmente, não se sustenta e não representa a realidade do nosso cinema. Uma frase que, para além de seu efeito, certamente é mais dramática do que pode parecer, apesar do que insinua. Antigo coordenador da Documentação da Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, Rafael traz em sua trajetória uma convivência junto ao cinema de quem viu e viveu de muito perto a deterioração das películas nos corredores de uma cinemateca; uma experiência que em termos de imagem e som (ou de imagem e olfato) pode ser extremamente marcante para uma pessoa que seja sensível ao fato de que aquela matéria que se transmuta e morre dia a dia diante dos nossos olhos também significa a perda de um trabalho de grandes investimentos, de toda uma equipe, de todo um cinema, e também de todo um Brasil. Mas são poucas as pessoas que de fato veem isso, que de fato ouvem esse grito que de Luna ouve, por mais que estejam ao lado desta silenciosa destruição. Rafael, que recentemente desenvolveu o projeto “Resgate da obra cinematográfica de Gerson Tavares”, recuperando o que considero obras-primas de um cineasta praticamente desconhecido pela comunidade cinematográfica, talvez tenha falado de si e de mais uns poucos gatos pingados, pois infelizmente ainda são raros os que ouvem o grito dos filmes em deterioração. E diante da condição de descaso dos arquivos é até compreensível que isso possa ocorrer mesmo dentro dos arquivos, mas de nenhuma forma isso deveria ser simplesmente aceito. Mas no mundo da preservação, o cansaço ou a indiferença não consegue voz e nem mesmo pequenas conquistas.

*

Talvez de uma forma que parece utópica a alguns, falemos um pouco da exibição em película. De uma forma cruel e irônica, o processo e o encontro com a matéria em deterioração de um filme pode trazer uma experiência da ativação de vários dos nossos sentidos pelo cinema, através de imagens que, por exemplo, ganham cores inesperadas com o tempo, nos proporcionando uma experiência quase que completamente sinestésica em um possível encontro com a matéria orgânica do filme, ou seja, com o seu corpo e a sua própria materialidade e mortalidade. Por isso é que ver um filme em película, mesmo que num estado de deterioração, pode ser um momento tão único para alguns espectadores, que, mesmo que sofram e se angustiem com a natureza da imagem, também se encontram com a sua “matéria viva” e muitas vezes não as trocariam por uma “bela imagem e foto” em digital. Na exibição em película, é a própria morte que se materializa ali diante de nós, a cada exibição. E assim como nós, humanos que, se pudéssemos, optaríamos pela concretização e continuidade de nossos sonhos e desejos, ao invés de uma “suposta eternidade”, muitos também optariam por se encontrar com uma imagem que seja viva (no seu sentido orgânico) e imperfeita, do que por um encontro com uma imagem aparentemente eterna ou acessível porque sem corpo, como muitas vezes a “natureza” da imagem digital ou virtual é vendida ou comprada por nós. O encontro íntimo com as matérias das quais os filmes são feitos, sejam eles de poliéster, nitrato, acetato ou chips, é uma experiência que deveria ser respeitada em sua diversidade, até mesmo porque esta possibilidade é profundamente transformadora para toda a relação do sujeito com a arte, com o cinema, ou com as próprias imagens em seu estado mais inicial, inclusive as que ainda não foram processadas ou registradas e que ainda simplesmente habitam o nosso primeiro olhar. Neste sentido é que ver ou entrar em contato com um filme em deterioração pode ser um processo extremamente transformador, pois é a nossa própria relação com o fazer uma imagem que pode se modificar, e, por que não, o nosso próprio olhar.

É claro que a restauração de filmes hoje depende do processo digital, mas assim como é preciso diferenciar o ato de preservar do de restaurar, também seria importante fazer uma diferenciação perante o ato da exibição e da acessibilidade. Também são poucos os cineastas e os pensadores do cinema que têm essa preocupação, inclusive dentro da própria academia, que, por exemplo, têm na memória um dos temas mais debatidos da atualidade, mas poucos são aqueles que pensam a situação dos arquivos e da acessibilidade, sendo que o seu objeto é altamente depende da sobrevivência destes. O mais desafiador nisso é que esta discussão muitas vezes acaba vindo à tona apenas em nome de grandes – e poucos – cineastas já falecidos.

Portanto, se dizer que “os filmes gritam” pretende sugerir que aqueles cristais e líquidos que estufam latas de filmes em deterioração são escutados, nos perguntaríamos: por quem? Quem de fato escuta os sons dessa imagem tão comum e aterradora, capaz até mesmo de ser bela, apesar da profunda tristeza que ela traz e do seu silencioso horror? A beleza e a morte vez por outra andam de mãos juntas de forma misteriosa em nossas vidas, mas isso não poderia ser uma consequência de uma indiferença ou invisibilidade que é a consequência de uma situação muitas vezes ignorada pela própria comunidade cinematográfica.

Parece ser em outro lugar que os filmes gritariam – e esse grito nada tem a ver com o fato de que cinema é imagem e som. Se os filmes de fato gritam diante da possibilidade de morte, isso não representa hoje apenas a natureza da película. É preciso, mais do que nunca, ter olhos e ouvidos para perceber a existência das imagens para além do formato, projeção e exibição, ainda que eles possam assumir novos sentidos sempre. No fim do seu texto, Dahl recupera Abel Gance para dizer que “os deuses do futuro falarão por imagens” (apud. DAHL, 2015: 26). E sobre este futuro afirma: serão necessários novos fanáticos para que a preservação cresça. Resta-nos encontrar a cada dia esses loucos e fanáticos, que sejam capazes de afirmar em alto e bom som que essa (r)evolução será possível – e necessária – perante os desafios sem índice, forma e matéria que o cinema digital aprofunda e complexifica. E para que seja possível ser deus de variadas (ou algumas) maneiras, não só através de uma chapada forma democrática, mas inclusive afirmando a quase impossível eternidade das matérias.

 

Referências bibliográficas

BARTHES, Roland. A câmara clara. Lisboa: Edições 70, 1980.

BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas: magia, técnica, arte e política. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987.

DAHL, Gustavo. O diabo torto. In HALLAK D’ANGELO, Raquel; HALLAK D’ANGELO, Fernanda e HEFFNER, Hernani (org). Reflexões sobre a preservação audiovisual.  Belo Horizonte: Universo Produção, 2015, p.24-27.

EDMONDSON, Ray. Filosofia e princípios da arquivística audiovisual. Rio de Janeiro: Associação Brasileira de Preservação Audiovisual/Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, 2013.

HALLAK D’ANGELO, Raquel; HALLAK D’ANGELO, Fernanda e HEFFNER, Hernani (org). Reflexões sobre a preservação audiovisual.  Belo Horizonte: Universo Produção, 2015.

RANCIÈRE, Jacques. O destino das imagens. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012.

[1] Produtora Cultural e Pesquisadora pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e Mestre pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), além de militante da área da preservação de imagens.

[2] Há diversos textos brasileiros com este teor filosófico ou político sobre a preservação audiovisual no Brasil, como por exemplo, em revistas, dissertações ou catálogos sobre o assunto, mas é a primeira vez que eles são lançados em formato de um livro e por autores brasileiros. Importante destacar que a ABPA (Associação Brasileira de Preservação Audiovisual) editou anteriormente um livro com esta abordagem, Filosofia e princípios da arquivística audiovisual (2013), do australiano Ray Edmondson, importante profissional da área. Em termos de publicações brasileiras com uma abordagem semelhante, podemos dizer que as publicações ficaram restritas a teses, dissertações ou artigos que não chegaram a ser publicados em formato de livros, apesar da profundidade e qualidade que algumas dessas obras apresentam.

[3] Texto originalmente lançado no catálogo da 4ª Mostra de Cinema de Ouro Preto, em 2009. Segundo citação de Dahl, o título do seu texto vinha de uma frase de Paulo Emilio Salles Gomes, em que este dizia: “há um diabo torto com esta história de cultura no Brasil”.

[4] Tais mutirões foram organizados por Hernani Heffner, Conservador-Chefe da Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM-RJ) e curador da temática de preservação de diversas edições da CineOP; e por Fabián Nuñez, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF).

[5] Esta discussão e o debate aconteceram em uma rede social, através de uma postagem em torno da divulgação do mutirão.

[6] Nós nos referimos aqui ao dado de que é possível que a prática da preservação, principalmente junto à película, possa trazer danos ao corpo, que vão desde o fato de poderem provocar pequenos cortes ou machucados por conta do material utilizado na revisão de um filme, à força física que algumas vezes é necessária para carregar latas de filmes; ou ainda no que se refere ao contato com gases expelidos pelas substâncias orgânicas que compõem as películas. Mas é claro que todas essas circunstâncias podem ser controladas se houver uma preocupação ou políticas voltadas para uma conscientização em torno de cada um destes procedimentos.

[7] O filme O signo do caos (2005), de Rogério Sganzerla, traz uma cena muito significativa, na qual películas são atiradas no mar, como um exemplo da destruição consciente de acervos por uma questão política, como cena de uma situação que seria comum ao país.

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