Para pensar o autor no cinema

Fala-se muitos sobre os grandes gênios do cinema na mídia, e seria redundante utilizar este espaço apenas para enaltecer um nome, afirmar o talento de tal homem ou a beleza de tal filme. Seria interessante fornecer outras ferramentas, vindas principalmente da sociologia e da própria História do cinema, para compreender o autor desde sua origem, e refletir sobre como se funda o estatuto social por ele adquirido.

Primeiramente, uma precisão ontológica, mas de origem semântica: não há nada anódino na noção de “autor”, bastante conotada dentro do universo artístico contemporâneo. Pode-se falar do homem responsável pela direção como “realizador”, um termo neutro que significa unicamente a execução de uma ação; como “cineasta”, alguém que faz (no sentido de fabricar, tornar concreto) o cinema; como “diretor”, o que implica uma relação com a linguagem cinematográfica e já denota uma hierarquia; ou finalmente enquanto “autor”, no sentido divino de “criador”, ou único responsável pela gênese de uma obra.[1]

A noção de autor no cinema, diferentemente do que se costuma se dizer, não nasceu com a Nouvelle Vague francesa. Ela se impôs desde a década de 1920, num processo que parece ser natural à todas as artes: a tentativa de ressaltar a participação humana como fator legitimador de uma manifestação cultural enquanto arte. Diferentemente da literatura, da pintura e da escultura, o cinema é uma arte de essência coletiva, principalmente à medida que ela se expande (as realizações no início do século XX ainda contavam com um grupo reduzido de pessoas). Para afastar o cinema de sua conotação mecânica, comercial e pueril, os críticos e jornalistas da época já apontavam o diretor como principal responsável por um filme.

A cinefilia, embora menos estruturada do que ela viria a ser depois da Segunda Guerra Mundial, também existia ativamente, e em formato semelhante ao conhecido hoje em dia: com cineclubes, discussões sobre os grandes autores da época (Lang e Murnau, por exemplo, já eram reconhecidos enquanto tal), coleções de material promocional e stills dos filmes. Mesmo as ideias da “política dos autores” encontram-se um tanto desenvolvidas durante o período do cinema mudo. A ideia fundamental a Truffaut, Godard e companhia, segundo os quais era preciso apoiar um cineasta ao longo de sua carreira inteira, já encontrava ecos entre a cinefilia da época, quando confrontada aos trabalhos de diretores cuja filmografia sofria transformações evidentes, a exemplo de Fritz Lang, que havia trocado a realização na Alemanha pelos Estados Unidos.[2]

Mais importante, é preciso deixar de lado a qualidade dos autores e de seus filmes quando se pretende compreender com atingiram tal reconhecimento social. Seria impossível para uma ciência humana como a sociologia discutir a autoria a partir da afirmação de noções imprecisas como a qualidade e a beleza, que ficam principalmente a cargo da estética e da filosofia. Quanto às ideias de “gênio”, “talento” etc., elas foram amplamente estudadas pela sociologia da arte[3], sem que se procure defendê-las. Pouco importa se Hitchcock foi um gênio ou não: o importante é ele ter sido considerado como gênio pela comunidade formadora de poder simbólico em sua época.

Seguindo este raciocínio, seria preciso relembrar como cada diretor conseguiu se inserir na história do cinema e no mercado cinematográfico em questão. Griffith, por exemplo, tratado mesmo pelo meio acadêmico como o criador de uma linguagem cinematográfica moderna, com procedimentos como os planos próximos e a coerência entre eixos, sempre foi hábil comerciante da própria imagem. Segundo David Bordwell, ele era o primeiro a anunciar seu caráter inovador e espetacular, e este discurso era facilmente reproduzido pela mídia e aceito pela comunidade artística da época. Em estudo aprofundado, Bordwell afirma que nenhum recurso atribuído ao americano foi realmente criado por ele, e que mesmo o uso sistemático de tais recursos já existia em outras cinematografias, desde a década de 1910.

D. W. Griffith
D. W. Griffith

A promoção da figura do artista, mais do que a publicidade habitual em torno de seus filmes, sempre foi um fator essencial para se compreender não somente o sucesso comercial, mas igualmente sua aceitação social. De Mille e Hitchcock foram dois diretores que dominaram perfeitamente a arte de fazer de si próprios uma obra de arte, veiculando em seu material promocional nada mais do que traços dos diretores ou depoimentos dos mesmos.[4] O caso deste último ainda é mais exemplar por ter sido reapropriado pela cinefilia francesa dos anos 1950 e “transformado” em grande autor pelo “turcos” da Cahiers du Cinéma. Como costuma se lembrar, “cada época tem o autor que merece”, e Hitchcock se encaixava perfeitamente na visão de autor defendida pelos franceses: ele realizava um trabalho pessoal em um grande sistema de estúdios, afirmava ferozmente ser o único responsável de seus filmes, se inseria na filmografia americana – considerada pelo grupo a melhor do mundo -, e arriscava mesmo uma reflexão “teórica” quando distinguia suspense de surpresa.

Bordwell vai além e lembra que mesmo títulos consagrados adquiriram tal status através de uma estratégia de marketing eficaz, como Cidadão Kane. Welles também sempre dominou a arte da autopromoção, mas sua primeira obra foi aclamada principalmente por críticos e cinéfilos da época como inovadora. Não se insistia tanto sobre a beleza ou sobre a completude (outros valores normalmente ressaltados), mas sobre o caráter “revolucionário” do filme, que desde então foi introjetado na cultura cinematográfica enquanto tal e continua a dominar as frequentes listas de melhores filmes da História do cinema.

Orson Welles
Orson Welles

No entanto, embora o marketing continue importante atualmente na construção da figura do realizador (a exemplo do contemporâneo Tarantino), esta não é a única dimensão que permite explicar a ascensão de um diretor à categoria de autor. Nem todo artista faz propaganda ostensiva de sua figura – embora muitos aceitem tacitamente que se faça por eles, mas passemos. O contexto sociopolítico tem influência direta na maneira como uma obra e seu diretor são apreciados, e muitos estudiosos da distribuição no cinema justificam uma correlação entre a temática de um filme, por exemplo, e sua aceitação em tal época (por exemplo, como são recebidos os filmes de guerra durante um período de confrontos militares). De maneira mais ampla, sociólogos como Jean-Pierre Esquenazi se esforçam para compreender a evolução do público e do próprio cinema em conjunção com a seleção social de autores consagrados. Ele fala em “tendências pesadas da sociedade”[5], como os fenômenos da multidão solitária, do crescente individualismo, de pós-modernidade e de pós-maio de 68 para explicar as transformações de estatuto no cinema. Por exemplo, o início da carreira de Woody Allen, nos anos 1970, coincide com o período de apropriação simbólica da pop art e da “pós-modernidade”, em que o tratamento egocêntrico e o humor inconsequente de si próprio faziam de Allen um autor-retrato de sua geração[6].

Se nenhum teórico pretende atribuir definitivamente uma causa única à consagração de um autor, é importante que se estabeleça uma tentativa de dissociação entre status e qualidade da obra e do autor. O que faz de Antonioni um diretor de cinema é o fato de ter feito filmes, mas o que faz dele um autor conhecido é o contexto social em que ele estava inserido. Se seus filmes são bons ou não, isso provavelmente depende de como cada sociedade, com suas mudanças, aceita o discurso e a estética proposta, e como ela trabalha a significação simbólica do nome do diretor. Isso porque a qualidade, ela também, depende dos olhos de público, que é igualmente moldado e condicionado pela sociedade em que se encontra. Por este motivo, seria infértil discutir se tal diretor é bom ou não; talvez fizesse mais sentido perguntar: “ele é considerado bom ou não, e por quê?”, “o que faz ele ser aceito hoje?”, “em que circunstâncias ele foi ‘descoberto’, ou a partir de qual momento passou a ser tratado como arquétipo do realizador?”. Redirecionando o debate desta maneira, a discussão tende a ser mais pertinente; revelando algo tanto sobre o cinema quanto sobre a sociedade que o aprecia.

Bruno Carmelo é graduado em Cinema pela Faap e mestrando em Teoria e Crítica de Cinema na Universidade francesa Sorbonne Nouvelle


[1] Ver texto de Jean-Claude Biette, « Qu’est-ce qu’un cinéaste ? ».

[2] Para uma discussão aprofundada sobre a noção de autoria durante as duas primeiras décadas do cinema, conferir “On the history of cinema style”, de David Bordwell.

[3] Vide o trabalho de Nathalie Heinich, « L’élite artiste – excellence et singularité en régime démocratique”, e de Pierre-Michel Menger, “Le travail créateur”.

[4] O estudo de Vinzenz Hediger intitulado « L’image de l’auteur dans la publicité” traça o “percurso publicitário” destes dois realizadores, ressaltando a eficácia de suas estratégias de marketing como uma das principais razões por terem sido aceitos enquanto autores centrais na História do cinema.

[5] Em “Politique des auteurs et théories du cinéma”.

[6] Em « La Société de Consommation », Jean Baudrillard detalha cada aspecto do cinema de um Allen ainda inexperiente como marcas definitivas do novo cinema pós-moderno.

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