Corpo e olhar: a violência na representação da violência

O XII Encontro Internacional da Socine –  Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual – realizada entre 15 e 18 de outubro de 2008 em Brasília, contou com a presença de alunos, acadêmicos e pesquisadores, desde iniciantes até renomados teóricos e convidados estrangeiros.

A diversidade de formação acadêmica e origem dos pesquisadores que participaram das mesas de comunicação refletiram na pluralidade dos temas e abordagens. Quem participou da Socine este ano possivelmente penou para escolher as mesas que iria acompanhar, devido à quantidade de comunicações debatendo temas de peso no contexto atual da teoria, crítica e produção audiovisual.

Dentre estas comunicações, uma das mais interessantes foi a ministrada por Cristiane Silveira Lima na mesa intitulada Figuras do real e desfiguração dos corpos. A mestranda da UFMG apresentou a comunicação ´Novos realismos e estéticas da violência: a figura humana em filmes sobre o narcotráfico´´, ao lado de outros dois pesquisadores, também focados na questão da representação dos corpos no cinema.

A apresentação de Cristiane Lima – que fugiu um pouco a questão dos filmes de narcotráfico, presente no título da comunicação – iniciou-se analisando duas abordagens distintas da violência contra a figura humana presentes na internet, o meio mais eficaz de disponibilização, difusão e troca de conteúdos audiovisuais. De um lado, os sites que disponibilizam em suas páginas fotos de corpos de pessoas mortas, principalmente pessoas famosas, figuras midiáticas desde astros do cinema até pessoas comuns que por algum motivos tornaram-se conhecidas. Do outro lado, a possibilidade de acessar vídeos-testamentos de suicidas religiosos e fotos de seus restos mortais.

A distinção entre ambos os sites está no objetivo por trás do ato de tornar públicos estes corpos mutilados. A mestranda defende que, enquanto os sites que disponibilizam fotos de pessoas famosas mortas que trazem a idéia de imediatismo, crueza e ausência de polimento, ou seja, o choque do real, as páginas da internet são utilizadas para difundir os vídeos e fotos dos suicidas no intuito de profissão de fé, para incentivar a ação entre aqueles que acreditam nisso como um ato que trará benefícios às pessoas e a si mesmo, fazendo com que alcance o paraíso.

Tem-se aí uma distinção embasada em profundas diferenças culturais que separa a figura do mártir – sua fé e amor à vida – e a figura de anônimos que expõem cruelmente os corpos ausentes de vida, marcados fisicamente pelas mais diversas manifestações da violência.

Logo de prontidão, pareceu-me certo à presença dos sentimentos mórbido e sádico tanto daqueles que expõem estes corpos conhecidos quanto daqueles que acessam estas páginas para vê-los. Por um momento, todavia, perguntei-me se não haveria também morbidez e sadismo no caso das figuras mártires, apesar do intuito político-religioso presente nessas exposições.

Muito me é distante o pensamento e sentimento político-religioso desses mártires e daqueles que se alimentam de sua honra e coragem através do acesso às fotos de seus corpos mutilados e aos vídeos nos quais fazem sua profissão de fé e é por isso que não ouso, com tanto desconhecimento, afirmar que também estes contam com a morbidez e o sadismo.

Voltando ao que me é mais familiar, os sites que disponibilizam fotos de figuras famosos mortas, tendo seus corpos visíveis marcas de violência, permite repensar as questões colocadas na mesa da Socine. Primeiramente, um dos pontos muito bem levantados na comunicação foi o fato dessas imagens serem louvadas simplesmente pelo seu caráter de exposição que sacia o desejo do espetador-receptor de tudo ver.  A fascinação pela violência não é nem um pouco recente, mas o modo de lidar com as imagens mudou – aliás, não só as relacionadas com a violência. Apesar do pudor da televisão em expor os corpos – sempre retratados com certa distância – é grande a espetacularização da violência, o que me parece ser um dos fatores que ajudam a torná-la um tanto quanto mais banal. Aliás, não só a Tv, mas o próprio cinema faz da violência e de seus produtos – os corpos, os traumas – uma refeição digamos fácil de ser digerida. Se por um lado o cinema – salvo as exceções – preza pelo real, pelo verídico, pelo baseado em fatos, aborda, contudo, de modo também espetacular sendo difícil encontrar filmes em que o retrato é prosaico ou cotidiano. Numa estética de cortes rápidos, ritmo acelerado, tem-se migalhas da violência, efeito embasado, febril, no qual o espectador é excitado mas disperso, consumidor frenético de imagens. Outro ponto bastante crítico em relação a essas representações é que a estética do choque não raro, ao criar registros fugazes, sensacionalistas e banais incita às formulações de críticas sociais frágeis e baratas quanto ao assunto.

Outro ponto de suma importância para pensar estes sites é levar em consideração a fundamental questão de quem foram aquelas pessoas. A meu ver, expor corpos de pessoas famosas mortas – e é preciso pensar no que se embasa o direito de expor o outro de tal modo – está para além da morbidez e do sadismo. Vivemos uma cultura em que a exposição de corpos modelos – também moral, mas principalmente físico – está fortemente presente no cotidiano das pessoas, digamos, comuns. Ver os corpos de Marilyn, Lennon, Sadam ou pessoas menos ´´stars´´ mas ainda sim midiáticas é muito mais do que ver pessoa mortas, está para além das marcas físicas, mas através delas. É ver a mutilação da beleza e perfeição, das idéias e utopias, da força e do poder. Mais do que se satisfazer com a crueza daquelas carnes, é fazê-las próximas a nós, reles mortais, ou melhor ainda, um pouquinho inferior, já que, apesar de não tão belos nem artísticos nem poderosos, estamos vivos, e em nossos corpos não estão incrustados as marcas e as colorações da violência contra um templo, o simulacro-efígie que chamamos de corpo. Creio ser essa situação próxima, guardando as proporções, da sensação ambígua de comparar a foto antiga de um astro do cinema com uma atual na qual já não desfruta da beleza e fulgor da juventude. E digo ambígua porque, se por um lado há o que parece ser um lamento pela perfeição corrompida, por outro é possível sentir certa satisfação nessa mesma violência causada pelo tempo: é o modelo que jamais seria alcançado agora desfrutando das imperfeições e mutilações que todos possuímos. É a necessária violência ao que nós mesmos elegemos como perfeito e intocável.

O contato com o corpo marcado pela violência se dá através da projeção do olhar condutor, ou seja, aquele que manipula a máquina que registra os fatos, sejam estes ficcionalizados ou não. Este tipo de interação é cômoda, pois consiste num modo de interação com a realidade amparado e intermediado por um anteparo. Ver as imagens de Sadam sendo enforcado ou o corpo posterior ao enforcamento permite, a quem tiver acesso e desejo de vê-las, ´´vivenciar´´ desse modo amparado e intermediado um momento histórico, em que o poderoso e imponente ditador não passava de uma figura-imagem humilhada: Sadam parecia o mais triste e violentado dos moradores de rua.

Alguém certa vez disse que não se filma nem se olha impunemente. É preciso pensar o que legitima dispor do corpo alheio, os porquês que levam a isso, se disponibilizar o corpo do outro é uma maneira de defender o nosso, como as pessoas lidam com essas imagens, como essas imagens são produzidas.

Há muito entre a pedagogia da realidade e a dramaturgia da realidade. O pudor na representação dos corpos talvez pouco tenha a ver com o respeito a eles, pois não impede a espetacularização perversa da violência: retalha mais uma vez o corpo retrato, o olhar do espectador e um debate social mais livre das convenções.

Juliana Panini Silveira é graduanda em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos. (juhpanini@hotmail.com)

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