Recusa ao Coração

Crítica do filme No Coração Do Mundo (Gabriel Martins; Maurílio Martins, 2019)

 Texto por: Diego Silva Souza[¹]


Recusar…

Entre as várias definições para o verbo no dicionário, prefiro entendê-lo como “resistir a”. Nesse sentido, de muitas formas, No Coração do Mundo é um filme sobre recusas. A recusa de Selma em continuar no periférico bairro Laguna, a recusa de Ana em estar fadada a ser cobradora de ônibus e a recusa de Marcos em continuar sendo um criminoso medíocre.

Ao mesmo tempo, o longa de Gabriel e Maurílio Martins se recusa a apenas repetir o que já havia alcançado sucesso em outras produções da Filmes de Plástico. Ainda há um respeito aos personagens que supera qualquer necessidade de seguir convenções que dizem que subtramas precisam estar ligadas a uma trama principal. Não importa se a figura é um dos protagonistas que planeja o assalto ou a cabeleireira que quer comprar um carro, a câmera se fixa em frente aquelas histórias até se dar por satisfeita. Mas em comparação com Temporada ou Ela Volta Na Quinta o jogo cinematográfico de No Coração fica mais explícito. Não há pudores em mostrar a imagem de Selma mediada por um monitor diegético, ou em colocar na boca da personagem um monólogo pomposo que expõe a presença de um roteiro. É, afinal, um filme que, dentro do que é possível no Brasil, se propõe comercial. Que “fala uai, fala sô, chama qualquer um de zé”, seja através da fala de seus personagens, da trilha sonora ou da mistura de elementos de gêneros distintos.

Porque já na primeira cena, temos uma prévia do que é o filme: assistimos Marcos receber uma mensagem romântica em um carro de som, com a câmera se dividindo entre o embaraço do personagem e a excessiva animação da locutora que lê a mensagem. Mas o disparo de um tiro irrompe sonoramente a cena e após alguns segundos, vemos o mesmo Marcos vociferando contra Beto por ter atirado em alguém inocente com sua arma. Em No Coração, em instantes o humor se encontra com o drama, a ação se mistura ao suspense e o bom moço se transforma em anti-herói. O longa assume as recusas desses personagens sem fazer julgamento de valor. “Resistir” pode ser tanto a teimosia de Beto em dar o fora da cidade depois de matar alguém por engano, quanto enfrentar os perrengues do dia a dia para comprar um carro.

Mas por mais que esses personagens insistam em negar, é em Laguna que as vidas deles estão centradas. Ao contrário do que o monólogo de Selma afirma, O Coração do Mundo desses personagens não paira em um lugar desconhecido, onde eles finalmente poderão ser quem são. O Coração dessas figuras falíveis – e também do filme – está na laje de Marcos. Está na insistência de Selma em entregar as fotografias a uma criança cujos pais não pagaram o serviço. Está na passageira ultrajante que Ana precisa aguentar no trabalho.

Nesse sentido, a decisão de Gabriel e Maurilio Martins de nomear essa produção como No Coração do Mundo chega a extrapolar a dimensão ficcional. Em termos de tamanho da equipe, duração e orçamento, esse é o maior projeto da produtora Filmes de Plástico. Mas no centro dele, ainda brilham os mesmos personagens dos curtas Contagem (2010) e Dona Sônia Pediu Uma Arma para Seu Vizinho Alcides (2011).

Apesar da mudança de contexto, a obra dos dois diretores mantém forte laço com as produções do início de carreira.

Não significa que personagens e criadores estão fadados a sempre viverem nesses mesmos cenários. Significa que esses cenários também constroem quem eles são. Marcos parece perceber isso ao fim do filme, quando, assim como na primeira cena, a câmera o rodeia enquanto o captura embaraçado. Um embaraço diferente, contudo. Daqueles de quem não pode mais recusar que fracassou. Já Selma, quando finalmente alcança o sucesso (sucesso?) se arrasta até o carro e grita. Não um grito de dor ou comemoração, mas de sofrimento. Sozinha dentro daquele veículo, ela parece se dar conta que, ainda que ela se recuse, aquelas pessoas e aquela cidade – que ela nunca mais poderá voltar a ver – ainda pulsa dentro dela. E sempre pulsará.

Como pulsa No Coração do Mundo, através de seus personagens, das suas músicas, de seus diálogos. Da montagem dos créditos iniciais ao tiro que sai da arma empunhada pela personagem de Grace Passô, No Coração é esse filme pulsante, que não recusa os desafios de abraçar um universo tão plural.


Diego Silva Souza, graduando em Jornalismo pela UFMG. Vem desenvolvendo trabalho com crítica desde 2017, quando iniciou o curso. Atualmente desenvolve um projeto sobre o novíssimo cinema da região metropolitana de BH.

Esse texto foi desenvolvido como parte da Oficina de Crítica Cinematográfica ministrada pelo crítico Victor Guimarães (escritor da revista Cinética) durante a 13ª Mostra CineBH. Os textos selecionados dão direito ao autor de participar da 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes como Juri Jovem na Mostra Olhos Livres.

Texto publicado em 10 de Janeiro de 2020.