Hoje contei pras paredes Coisas do meu coração

Crítica do filme Diz a ela que me viu chorar (Maíra Bühler, 2019)

Texto por: Gustavo Maan[¹]


Imagens metamorfoseadas, escuras e sem rosto, com vozes grotescas, movimentos esquivos, um outro irreconhecível, anônimo. As narrativas midiáticas acerca do uso do crack comumente expõem pessoas degradadas pelo uso da droga – sujeitos que perderam tudo de suas vidas, incluindo a si mesmas. Se os fantasmas são apenas alma, os zumbis somente carne. Destes é revogado o comportamento humanizado, não importando mais a história, a civilidade, a organização ou o afeto. “A droga que escraviza em segundos”. A partir de Romanini e Roso[²] podemos observar que esse discurso comumente trata como sujeito da ação o próprio crack, deixando ao usuário um lugar de passividade, remetendo a um colonizado bestializado incapaz de ascender ao status humanizado e independente. Isso nos revela uma visão calcada no pressuposto de que aquele consumo se iguala ao vício desconexamente de outros fatores, desconsiderando que, apesar das imagens majoritárias de corpos negros sem dentes e repletos de feridas, o uso de crack está presente em diferentes gêneros, raças e extratos sociais. Os rostos submetidos ao desfoque não só representam esse sequestro do sujeito, mas também mostram um outro que não deve ser identificado por estar cometendo um crime, uma infração moral da qual ele sente vergonha ou que sentem por ele. Uma sentença com destinatário prévio ao julgamento.

A tensão motora de “Diz a ela que me viu chorar” é posta em seu primeiro plano: Benedita, mulher negra, está fumando crack enquanto é iluminada por uma luz branca. A câmera na altura do rosto encara de frente a personagem, não projeta vergonha (que é oblíqua), nem demonstra qualquer constrangimento (ou exibicionismo) por parte da mulher que ali fuma, quase como se não estivesse sendo observada. Uma mulher fumando crack. Essas cenas de utilização da droga, por não estarem inseridas numa chave de denúncia moral, não carregam excessiva dramaticidade. Decorre disto que a imagem da mulher fumando crack se dilui numa mesma mise-en-scene cotidiana dos demais planos. É um filme sobre uma certa ordinariedade temida, sobre ser gente, se apaixonar, fumar pedra, ter vontade de comer, de cantar Tim Maia e sentir saudade. Se distanciando de um imaginário zumbificado dos usuários de crack, o filme propõe criar um espaço onde possam existir subjetividades, procurando encontrar ali algo que vai além do vício e revela sujeitos e suas contradições. Essa operação subversiva tem profunda relação com o projeto “De braços abertos”, proposto pela gestão Fernando Haddad da prefeitura de São Paulo, do qual o hotel social que é palco do filme faz parte. Nele, existe uma transformação da visão do dependente de substâncias psicoativas, que antes era caso de polícia, mas depois da política pública conquista uma inserção como cidadão detentor de direitos e capacidade de discernimento.

Nesse sentido, para além de uma orientação humanitária, o projeto oferece ao filme uma maneira de se relacionar com seus personagens. O hotel social pauta parte da relação do município com seus moradores, assim como possibilita a interação do aparato cinematográfico com aquele universo. O filme não sai dessa estrutura, por mais que seus personagens a deixem. A câmera permanece em seu eixo, esperando uma confusão entre o seu corpo e o corpo do prédio para que, assim, de forma presente mas naturalizada, pudesse captar os fragmentos da vida diária daquelas pessoas. A objetiva tenta ser o espelho do elevador, o corrimão da escada, as paredes do quarto, o terraço. Poderíamos lembrar de um certo cinema mosca na parede. Aqui não parece ser tanto a questão da mosca, de ser imperceptível e principalmente insignificante, mas sim de uma questão da parede que, como a montagem, recorta os espaços e dá sentido para um local específico, criando um discurso. As paredes existem e são definidoras da dinâmica espacial do lugar em que estão inseridas. Da mesma forma, hora nenhuma se nega a existência de uma equipe e dos equipamentos trazidos por ela. “Seu cabelo ta todo bagunçado” indaga uma das moradoras à diretora, “ela não vai vir, né?” pergunta retoricamente Benedita. Apesar disso, a despeito de duas tímidas respostas no elevador apertado, o outro lado não responde – mesmo que indagado. Mudas como as paredes, que se falassem, falariam muito, a equipe aposta numa chave transparente de comunicação. A parede surge como uma proto-carta que não permite que os versos se espalhem demais, os aconchega em um quarto, um plano, dá seu testemunho.

A primeira metade do filme é baseada na paixão de alguns casais que preenchem toda tela com conversas banais e suas carícias. A medida que o filme passa, cada vez mais brigas e instabilidades são registradas pela câmera, uma espécie de mediação entre os primeiríssimos planos dos casais apaixonados e os planos gerais e solitários que encerram o filme. Nenhum casal passa ileso a não ser Eduardo e o Corinthians. A diferença estética entre as brigas e os enquadramentos parados que as contém, propulsiona um incômodo de estar observando aquilo por uma mera vontade de ser espectador. Na medida que a Diretora nos diz o que viu, nos fazendo ver também, ecoa em nós o verbo imperativo do título do filme. Para quem eu digo que te vi chorar?

Os ruídos dessa transparência parecem nos convocar para uma tentativa de solução da comunicação, como um corpo que continua seu movimento após uma contenção abrupta. Diante da frieza da parede emerge um desejo infantil em ser quente. Simultaneamente, surge uma vontade de distanciamento dessa infantilidade a partir de um calculismo arquitetônico. Esse curto-circuito numa certa moral do espectador não parece superar o dado de uma violência real a qual aqueles corpos estão submetidos, manifestada no fechamento do hotel durante o governo de João Dória, na agressividade da masculinidade e da marginalização de pessoas negras, no cinismo dos fogos de artifício frente a ausência de motivos para comemoração.

Essa multifacetada violência, não mais concentrada apenas na figura do crack, sai de uma reformulação da maneira de retratação dos usuários da droga para terminar em um enquadramento fartamente conhecido. Mesmo que de maneira expandida, a visão que temos é de uma mulher negra, que começando o filme  fumando, agora o termina sozinha, reproduzindo em algum nível uma narrativa super difundida de isolamento desses corpos. Se o cinema proporciona uma transformação de nossas percepções ordinárias, a necessidade de superação de certas narrativas ainda se mantém pungente para além do poder das paredes e das lentes, contando com elas para uma ruptura do tecido que rege as dinâmicas de afeto. A manutenção desse discurso entra em conflito com a própria visão do filme de que existe algo além. Nos deixando com a destruição desses amores e do próprio prédio que viabilizou a sua fala, o filme anda, por mais que a contragosto, no sentido catastrófico do futuro-agora-presente. Não finaliza uma promessa de imagem que seja capaz de remodelar a realidade visibilizada sobre usuários de crack. Para nossa felicidade, inesperadamente, em 2017 o Alvinegro foi campeão.


[1] Gustavo Maan, graduando no curso superior do Audiovisual na ECA USP, Membro-fundador do coletivo Chá de Fita. Atualmente faz uma pesquisa acerca da Religiosidade afro-brasileira no cinema nacional.

[2] Moises Romanini & Adriane Roso da Universidade Federal de Santa Maria.

Esse texto foi desenvolvido como parte da Oficina de Crítica Cinematográfica ministrada pelo crítico Victor Guimarães (escritor da revista Cinética) durante a 13ª Mostra CineBH. Os textos selecionados dão direito ao autor de participar da 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes como Juri Jovem na Mostra Olhos Livres.