Uma pedra já foi uma montanha

Crítica do filme Nietzsche Sils Maria Rochedo de Surlej (Júlio Bressane, Rosa Dias e Rodrigo Lima, 2019)

Texto por: Murilo Morais[¹]


Em um filme de direção tripla (Júlio Bressane, Rosa Dias e Rodrigo Lima), Rosa e Bressane fazem uma viagem tátil de exploração do pensamento nietzscheano. Simulando, de alguma forma, o trajeto de Zarathustra afastam-se da civilização, museus, fotos de cidades e partem para uma exploração sinestésica da natureza que rodeia. Aqui a diferença é primária, e mesmo os espaços e imagens que se repetem ao longo do tempo carregam em si o enigma da mudança. Enigma esse que, em Nietzsche Sils…, habita no corte, no raccord e na elipse sentida nas mudanças abruptas da montagem.

Nietzsche Sils… se vale de uma textura que inverte a lógica do protagonismo da visão: a repetição, a câmera que se aproxima, gira e tenta diferentes angulações do mesmo objeto esvazia a imagem de sua lógica-analítica e mostrar algo a mais: uma coisa mais próxima da textura e a sensação(ou o conceito de Sentido de Deleuze). Há aqui a impossibilidade de entender o eterno retorno racionalmente através de regras bem decupadas, mas a possibilidade existe através da exploração tátil, do sentir.

Por trás da repetição dos planos da pedra as coisas sempre mudam. O eterno retorno de Nietzsche Sils… não se traduz num aprisionamento cíclico e infinito, ou à simples volta das coisas que sempre aconteceram. Mas sim nas mudanças que alteram a leitura da imagem. O dia ensolarado, a chuva, os diferentes ângulos de visão da rocha, que por vezes transformam-na em montanha ou a rebaixam a vale. O importante é o que aconteceu no intervalo, no corte, e como a pedra nunca voltou a ser a mesma, apesar de sempre voltarmos para a mesma pedra. A tentativa dos diretores de repetir os movimentos e alcançar uma similaridade na captação com o plano anterior cria o nosso estranhamento. E chama a atenção, ao longo das repetições, ao que mudou. O que se ressalta são os detalhes alterados.

Nietzsche Sils… inicia sua jornada num filme de viagem. Papel importante se o lermos a partir do registro de busca. A viagem de Rosa e Bressane vem de um lugar do desejo de compreensão. Eles exploram cada lago, cada página, cada fechadura e lugar que possa confessar algo. Essa exploração é gerativa e, através de seus achados, molda uma leitura tátil do filósofo a partir dos vincos, ondulações e marcas do tempo presentes na madeira, água, pedra e mão. Em momentos, inclusive, o filme cria um certo Zarathustra camera-man (ou câmera-mão) que foge de um mundo racionalizante e parte para o reino intrínseco das sensações. E assim, a busca audiovisual de Nietzsche Sils… foge do Olho e de seu poder analítico/desconstrutor e se acha numa exploração sensorial da Mão.

A leitura da negação da análise lógica-descartiana do Olho poderia levantar questões sobre o próprio processo de captação. Afinal, é possível levar em conta a câmera como uma certa representação do Olho. No entanto, em Nietzsche Sils… o maior interesse é pela exploração sensorial da Mão, pelo tato e pelas sensações das imagens da pedra molhada, seca, próxima e distorcida. Uma mão que passeia e procura ao longo do filme, até misturar sua textura de pele antiga com os sulcos do tempo na pedra. Mão e pedra que já foram lisas algum dia e se alteraram até o encontro. Mão e Pedra que continuarão a se alterar sem nunca, no entanto, mudar totalmente. Ademais, como um comentário sobre a própria exploração que o filme propõe, vemos Rosa e Bressane – este por um reflexo que separa fotos de Nietzsche do público do museu – captando as imagens com câmeras digitais de mão (Handycam). A moeda de transação entre o objeto e a imagem é o tato. Uma moeda que passa de uma mão para a outra.

Como demérito possível, o filme pode ser lido de forma bem hermética. Todas as ideias levantadas pressupõem algum tipo de entendimento prévio de Nietzsche e até mesmo dos antigos trabalhos de Bressane. A exploração fílmica em Nietzsche Sils… se agrega de sentidos quando a alinhamos com as realizações anteriores dos autores. Se posicionada à distância dessa trajetória e conceitos, Nietzsche Sils… pode parecer um amontoado de imagens de viagem de um casal de velhinhos cults. No entanto, pode-se discutir que até esse tipo de leitura estaria de acordo com a ideia do filme. Alguém poderia dizer que “qualquer um poderia fazer esse filme” e mesmo que as imagens fossem imitadas por outros realizadores elas nunca seriam as mesmas. O mistério da diferença estaria lá. E os filmes seriam sentidos diferentemente.

Finalmente, há também a distância das palavras e de tudo que não proporciona uma conexão tátil. No museu, vemos Rosa e Bressane passando por fotos, informações, letreiros. Nenhum se demora muito no coração da câmera, parece não atiçar a retenção. No entanto existem aqueles elementos que ficam: a fechadura da janela de ferro, a textura do pelo do volumoso bigode de Nietzsche em seu busto, das respirações, as estruturas do chão e teto da casa que denunciam sua materialidade através dos sons das placas de madeira se entortando ao peso das pessoas. Estes também são os momentos em que a câmera, interessada, troca de ângulo, muda o seu aspecto, repete movimentos, observa de cima, de lado e de ponta cabeça. E assim o museu, interessado em mostrar uma certa trajetória e contexto para o pensamento de Nietzsche, afirma tudo aquilo que Nietzsche Sils… nega: a racionalização de tudo. Por esse motivo o alemão não é traduzido, as vozes que explicam não importam, e até mesmo a sequência que mostra o livro de Nietzsche está mais interessado no virar e no som da página do que nos escritos.


Murilo Morais: Tecnólogo em Comunicação Visual (Etec Tiquatira) e em Estudos de Direção (AIC-SP). Graduando em Imagem e Som pela UFSCar.Coordenador Geral da 17ª Semana de Imagem e Som. Assistente de Direção de Anzol (Pedro Oliveira e Pedro Conde 2018). Roteirista e Montador de Segundos (Beatriz Souza e Lucas Nunes, 2018). Montador de Meninos Rimam (Lucas Nunes, em finalização).

Esse texto foi desenvolvido como parte da Oficina de Crítica Cinematográfica ministrada pelo crítico Victor Guimarães (escritor da revista Cinética) durante a 13ª Mostra CineBH. Os textos selecionados dão direito ao autor de participar da 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes como Juri Jovem na Mostra Olhos Livres.