Shame (Steve Mcqueen, 2011)

Por Samuel Costa*

Foco de muito debate e polêmica, Shame (2011), dirigido por Steve McQueen, não tem como passar despercebido aos olhos do espectador. Controvérsias, discussões e inquietações foram geradas pelas longas sequências, corpos nus e muitas cenas de sexo. Alguns o taxaram como filme apelativo e vazio, mas o “x” da questão é outro. O choque não vem das imagens em si, mas da representação de uma realidade que toca em algumas feridas da sociedade contemporânea. O resultado é um filme pesado e que nos deixa estarrecidos.

Shame conta a história de Brandon (Michael Fassbender), um morador solitário de Nova Iorque que mantém poucas relações com colegas no trabalho e com as pessoas em geral. Sua rotina é desestabilizada e perturbada com a chegada de sua irmã Sissy (Carey Mulligan), que aparece em seu apartamento e pede pra ficar por alguns dias. A relação entre irmãos desencadeia uma série de conflitos e é o estopim de uma situação que já era crítica e delicada. Brandon é um compulsivo sexual e vive seu vício em segredo. Emoções rápidas, sensações efêmeras, a fluidez das relações e o caos contemporâneo marcam um cenário depressivo, frágil e de profunda tristeza.

Alguns críticos falam em culpa, outros em moralidade, mas o que Shame coloca em questão são as relações sociais e os vínculos que estabelecemos no mundo contemporâneo. A sensação de vazio e o consumo de sensações e emoções rápidas são os principais pontos da obra. O filme não só toca nisso, mas cutuca essa ferida até o fundo e nos deixa incomodados.

Brandon é a representação do sujeito pós-moderno que vive na fluidez e velocidade da metrópole. As imagens no metrô, onde a câmera se perde na multidão, junto ao personagem, são marcantes na composição desse cenário contemporâneo. Quando ele faz cooper a noite vemos a paisagem urbana ao fundo: ruas, postes, lojas, luzes, tudo passa rápido aos nossos olhos e não dá tempo de distinguir e atribuir significado ao que vemos. O fluxo contínuo e a efemeridade se tornam características diacríticas da contemporaneidade. Dessa velocidade advém a sensação do vazio, o tédio, a incompletude e uma busca por satisfação rápida e momentânea no consumo de coisas, serviços e, no caso de Brandon, sexo.

Sissy no apartamento de Brandon

A personagem Sissy, que também é sujeito dessa “crise de significados” do mundo contemporâneo, é aquela que, ao retornar à vida de Brandon, traz consigo o passado e os valores familiares. Ambos são personagens infelizes em busca de significados para suas vidas e que se veem na obrigação de lidar com esse vinculo familiar e com as implicações decorrentes dele. Valores tradicionais, atualizados ou reafirmados, se misturam às novas características da contemporaneidade (que não superam as que já existiam, como as estruturas sociais, valores conservadores, tradições culturais, etc.), o que torna a realidade muito mais complexa. Nesse sentido, é relevante atentar ao papel da personagem Marianne (Nicole Beharie), uma das mulheres que se envolvem com Brandon, mas com quem, ao contrário das outras, ele tem dificuldades de se relacionar.

Além de abordar um tema relevante e de forma irreverente, Shame é esteticamente admirável. As atuações de Fassbender e Mulligan renderam prêmios e indicações em diversos festivais. A fotografia trabalha com muitas luzes e por vezes não sabemos o que é real ou apenas uma representação do real, um simulacro, como nas luzes refletidas na janela do carro ou aquelas dos prédios que formam uma paisagem fora de foco. O escuro (solidão), as luzes (os reflexos, ilusões) e as cores, ora frias (tristeza, depressão, vazio), ora quentes (nervos a flor da pele, desespero), refletem o estado de espírito dos personagens. A trilha sonora faz uma combinação entre clássico, retrô, músicas calmas, agitadas e outras variações, além de agradável, alcança uma sinergia com a proposta do filme.

Dizer que Shame é um filme sobre sexo seria simplista e não diria nada sobre o que realmente é. Poderíamos fazer uma análise semelhante, considerando as especificidades, se o vício de Brandon fosse outro, como por exemplo, consumo de comida, roupas, álcool, programas de televisão, etc.. Dizer que é um filme sobre culpa, então, seria uma visão pra lá de moralista. Shame é um ótimo trabalho que fala sobre as nossas relações nesse mundo cada vez mais fragmentado. O fim da sessão foi de uma angústia que me acompanhou por horas e que não é difícil de voltar quando penso na obra. É por esse cinema, cuja ação sobre nós consegue mexer com a sensorialidade e alterar nossas emoções junto a uma reflexão de peso, que eu anseio cada vez mais.

As luzes da metrópole são um elemento importante na composição do filme.

*Samuel Douglas Farias Costa é graduando em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Maringá (UEM) e redator do blog “Avant, Cinema!” http://avantcinema.wordpress.com/.

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