Sobre o Primeiro Plano – Festival de Cinema de Juiz de Fora e Mercocidades

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(realizado em Juiz de Fora, entre 27 de outubro e 02 de novembro de 2008)

Como o seu próprio nome parece indicar, o Primeiro Plano é um festival dedicado à projeção dos primeiros filmes de diretores brasileiros (em competição) e sul-americanos (em mostras informativas). Desta forma, muitos dos curtas-metragens exibidos são “filmes de escola”, em geral realizados como parte do projeto de conclusão de curso de alunos de graduação em audiovisual. Após quatro anos comparecendo ao festival, não é surpresa encontrarmos semelhança entre sua grade de programação e a do Festival Brasileiro de Cinema Universitário, por exemplo, ou mesmo com as sessões Cinema em Curso, integrantes do Festival Internacional de Curtas de São Paulo.

Um significativo diferencial desta edição para as outras é a inclusão de filmes realizados em vídeo, o que possibilita, em teoria pelo menos, uma diversificação ainda maior do leque de propostas audiovisuais de diretores estreantes. Como já se pode ter pensado, o tamanho dessa janela de exibição (31 curtas) acaba sendo menor do que a de outros festivais, justamente devido a esse recorte temático voltado às estréias. Coroando a bacana proposta está a geografia: a cidade de Juiz de Fora, pequena e recheada de um público que responde de forma animada às quatro sessões competitivas de curtas no histórico cinema Cinearte Palace.

Como qualquer outro festival de cinema, temos aqui altos e baixos no que diz respeito ao recorte da curadoria e às críticas do espectador. De forma semelhante ao FBCU, aqui também encontramos alguns casos do que chamo filmes de apartamento, ou seja, curtas em que temos personagens principais trancafiados em espaços domésticos e, aparentemente, em “crise existencial” (com aqueles clássicos planos de homens gritando, correndo, chorando e etc, que geralmente apontam para um comportamento freak e desesperado dos personagens) – o caso de “Partida”, de Daniel Lentini e “Pata de elefante”, de Fernanda Rocha Miranda. Outra boa safra é a dos “filmes verborrágicos”, em que o texto parece dominar a vontade de se pesquisar através das imagens em movimento. Tudo fica muito óbvio e é preciso ser justificado através do abrir a boca dos personagens. É preciso dar explicações e limitar a co-produção criativa do espectador. “Páginas de menina”, de Mônica Palazzo, “Oxicianureto de mercúrio”, de André Carreira e, principalmente, “A ética”, de Pablo Villaça, despontam nessa modalidade.

Por fim, em menor número, mas não menos importante, como comentei no texto sobre a Mostra Curta Audiovisual de Campinas, lá estão os documentários em que as cabeças falam e os filmecos feitos para darmos risadinhas (o previsível “Quintas intenções”, de Mauricio Rizzo). Interessante que dois encaixáveis no primeiro exemplo (“Criador de imagens”, de Diego Hoefel e Miguel Freire, e “Quanto mais manga melhor”, de Michele Lavalle) são dedicados a profissionais do cinema e tentam contrastar depoimentos a imagens de arquivos pessoas ou trechos de outros filmes – mas a documentação rotineira do depoimento acaba prevalecendo.

Quais curtas conseguiram ir para além dos lugares comuns encontrados nos festivais? Não irei repetir meus breves elogios ao “A tal guerreira”, de Marcelo Caetano (também projetado em Campinas), uma ode a Clara Nunes. Fui arrebatado por outro documentário, “Gladys”, de Marina Pessanha. Trata-se de imagens que acompanham Gladys Ribeiro, dita a primeira apresentadora de programas infantis da televisão brasileira por um passeio até a antiga sede da TV Tupi. Tudo me levava a imaginar que houvesse choro, lamentação e nostalgia barata, mas não; Gladys é forte o bastante para ter um distanciamento deste passado em ruínas. Ao mesmo tempo em que relembra de forma saborosa alguns momentos de sua fama, não se desespera com seu aparente esquecimento vindo com o passar de seus anos. Como as cartelas finais do curta metralham ao espectador, não foi encontrado material audiovisual relativo ao “Gladys e os bichinhos” e, portanto, a memória relativa ao programa de televisão está contido na figura desta carismática senhora. Este curta soma positivamente nesse sentido: preserva a memória de algo que talvez fosse ser perdido entre a história oral e os recortes de jornais antigos. A estrutura “talking head” faz-se presente, mas é intercalada com esse levemente melancólico passeio de Gladys pela Tupi, sempre em planos abertos, mostrando o contraste entre a idosa mulher e as ruínas arquitetônicas. Além disso, temos as animações que reativam seus até então estáticos desenhos em papel branco, da mesma forma que esta obra dá vida a um aspecto pouco comentado da história da televisão no Brasil.

Também não me deterei aqui, novamente, em “Os boçais”, de Lufe Bollini, exibido também em Campinas e no FBCU deste ano. Outros curtas exibidos neste último festival merecem algumas pinceladas. Dentre eles o de um amigo e parceiro criador de Bollini, “Sem mais delongas”, de Frederico Ruas, que poderia ganhar o título de “melhor filme bad trip” do festival. Como em “Os boçais”, a metralhadora de referências cinematográficas faz-se presente (o preto-e-branco das cores, a utilização da música ou mesmo o nonsense de alguns diálogos), mas não pela objetividade do humor boçal, cantado e celebrado pelo filme de Lufe Bollini. Temos na obra de Frederico Ruas uma crise quase adolescente do personagem apresentado. Lá estão os planos que eu critiquei logo acima quanto a outras obras, ou seja, o homem que vaga e grita pela cidade. Temos aqui, todavia, um cuidado na construção das imagens através de uma potente direção de fotografia, capaz de granular o preto-e-branco do começo e, ao fim, mostrar um nascer do sol digno de uma paisagem romântica.

“Sistema interno”, de Carolina Durão, também foi exibido no FBCU deste ano e pode ser lido pela dualidade pessoal/impessoal, homem/tecnologia digital, ou melhor, homem/natureza. As imagens nos são apresentadas como advindas de câmeras de vigilância que acompanham uma mulher em um dia de trabalho, até mesmo ao seu espaço doméstico. Mesmo aquelas que não advém da vigilância, utilizadas como “respiração” para estas, denotam a tecnicidade das relações humanas: o contraste entre a pesada arquitetura modernista do MAM-RJ e as crianças que são comandadas por uma adulta, as portas de vidro que abrem e fecham automaticamente e os cachorros que descansam, os carros que cortam avenidas por entre as árvores do aterro do Flamengo. Minha única implicância está na televisão que a personagem possui em casa e que não pára de exibir notícias relacionadas (obviamente) à “tecnologia” e que explicitam o que estava potencializado nas entrelinhas construídas anteriormente.

Uma das bailarinas de “Coda”, de Marcos Camargo, chega mesmo a se transformar em um pássaro, denotando a constância na produção contemporânea da problemática relação entre o homem e o seu redor já domesticado – assim como boa parte das obras que encontrei na Bienal de São Paulo deste ano. Tudo é encenado dentro de um apartamento e suas duas companheiras (que, importante frisar, não realizam intercâmbio) travam batalhas com a água e o fogo, levando a um inventário dos fenômenos naturais que viraram apenas mais um elemento em nossas vidas. “O povo atrás do muro”, de Marconi Loures de Oliveira, uma divertidíssima animação com um trabalho de som memorável, nos convida a essa reflexão também ao propor um grupo de personagens que não consegue lidar com a existência de diferenças culturais em seu espaço próximo – o outro lado do muro. Ainda será impossível estabelecermos um contato sem pré-conceitos para com o outro? Felizmente, o diretor opta pela não utilização de diálogos e permeia seus personagens por ruídos não reconhecíveis a nós, do domínio da língua e da verbalização dos discursos. Os preconceitos demonstrados aqui, para nós, estranhos à linguagem oral destes personagens animados, limitam-se à incongruência visual dos mesmos (por mais que sejam identificáveis algumas atribuições de elementos da cultura norte-americana ao lado dos preconceituosos).

Realizado com um celular e problematizando os limites entre documentário e ficção, “Divergrandpa”, de Igor Amin, propõe uma reaproximação entre alteridades de um mesmo tronco, ou seja, da mesma família, entre neto e avô. Tudo pelo viés do celular, da tecnologia digital e da crítica à naturalização da distância. Como diz uma bela frase do vídeo, “Esse é o meu avô. Ele é como um Windows para mim”. Curto, simples e nada objetivo. Voltando aos filmes já exibidos no FBCU, mas sem deixar de lado a temática das relações interpessoais, temos “Até amanhã”, de André Bomfim. É o último dia do ano, aquele momento quase cafona de repensarmos nossos 365 dias percurso e nosso personagem masculino principal é incapaz de exteriorizar seus sentimentos para com uma amiga. Vemos e ouvimos um fluxo de desencontros por São Paulo, somado a algumas pequenas simbologias (como o fato dele estar com a chave da casa dela ou mesmo o momento em que o freio de mão de um carro é puxado quando em movimento) e mediado pela presença da caixa postal de um celular – novamente a tecnologia digital marca presença.

“O cineasta, a menina e o homem-sanduíche”, de Daniella Saba, também sugere um encontro paulistano como possível temática. Os três personagens do título são demonstrados através do intercalar de planos próximos a suas faces e de outros contrastando suas figuras com o cinza da cidade. Ao fim, após possíveis pequenos fracassos, eles como que se esbarram e travam um diálogo breve que envolve pirulitos, dobraduras e, por quê não?, o cinema (já que um deles é apresentado como um diretor buscando financiamento para sua obra). A trilha sonora do curta hipnotiza assim como o ioiô que a menina porta no primeiro plano do mesmo. Fica a pergunta do cartaz do homem-sanduíche: “Eu estou OK. Você está OK?”.

Já o (merecidamente) super premiado “Os sapatos de Aristeu”, de Luiz René Guerra, versa sobre as relações entre familiares. Como uma mãe e irmã lidam com a morte de Aristeu, uma vez travesti? Enterrar como homem, tentar trazer a “ordem” de volta a seu corpo, ou assumir sua vontade e encará-lo enquanto uma mulher? A atriz Berta Zemel, ao cortar os longos cabelos de seu filho, parece estar a trabalhar em uma lavoura e puxar alimentos com força, tentando romper suas raízes, tamanha é a força que aplica à sua tesoura. Cabelos como cordões umbilicais. A opção pelo preto-e-branco, o diálogo possível com a tradição das gravuras à ponta-seca, realça os veios, rugas e a densidade desta desestruturada família em que a irmã, deveras masculina, critica a feminilidade de seu irmão. Não resta outra opção senão, à força, deixar coexistir o homem e a mulher em Aristeu, através de seus sapatos. É preciso respeitá-lo e desejar que este “vá embora”, voe livremente, como suas pontas de cabelo genealogicamente guardadas por sua mãe.

Finalizando o festival, na quarta sessão (que era a mais risível, no bom sentido, de todas elas) estava presente “Maridos, amantes e pisantes”, de Angelo Defanti. Baseado em contos de Luis Fernando Veríssimo, o curta tem como pontos positivos o entrosamento dos atores e a velocidade de seu humor. Somando a isto temos a opção por assumir que se trata da filmagem de algo, já que vemos a todo o tempo o boom, quase que um personagem dentro da narrativa. Pensando também o cinema, ou seja, utilizando-se da metalinguagem, mas em primeiro plano e não como detalhe da ficção, temos o vencedor do voto do público “Os filmes que não fiz”, de Gilberto Scarpa. Como o título aponta, o tema aqui é a não concretização de filmes, o espaço para fantasiarmos imageticamente estranhos argumentos deste diretor/ator que é o próprio diretor do curta-metragem, que opta por utilizar-se do formato do pseudo-documentário (em um tom bem diferente de “Satori Uso”, de Rodrigo Grota).

Estes filmes não feitos sugeridos por Scarpa nos levam às gargalhadas. Destas chegamos a um sorriso no rosto, constante a este festival de cinema em Juiz de Fora. Intimista, aconchegante, com uma seleção de curtas permeada por altos e baixos (como todo festival, creio eu), mas que, mais importante do que a qualidade dos filmes, dada pelos espectadores, faz-nos pensar sobre a importância de existir uma janela de exibição exclusiva para os primeiros produtos desses diretores. Faltou-me tempo para assistir as sessões competitivas de curtas produzidas nos arredores de Juiz de Fora, agora intitulada “mostra competitiva regional”. Esforçar-me-ei no ano seguinte. De qualquer forma, como dizia uma vinheta exibida nos anos anteriores do festival, relativa à prefeitura da cidade, “Eu amo Juiz de Fora!”.

Raphael Fonseca é graduado em história da arte pela UERJ e mestrando em história da arte pela UNICAMP

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