Televisão, cinema e novas mídias em processos de tradução intersemiótica: Dante, Shakespeare e Greenaway.

Gilberto Alexandre Sobrinho é Professor Doutor do Departamento de Multimeios, Mídia e Comunicação da Unicamp.

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A experiência com o cinema documentário oficial inglês, no Central Office of Information (C.O.I.), nos anos de formação, ecoou na maneira como Peter Greenaway constrói seus filmes. Não se trata de uma influência dominante, ao contrário, é justamente a visão desconfiada de imagens que buscam explicar dados da realidade que reverbera. Isso pode ser comprovado, sobretudo, nos filmes que dirigiu na primeira fase, período marcado por narrativas recheadas de enigmas, uso irônico da voz over, em sofisticadas paródias dos filmes estruturais. Refiro-me, principalmente, a Vertical Features Remake (1978) e The Falls (1980). Além da recorrência aos elementos formais do documentário, extrai-se dessa vivência intensa, primeiro como montador e posteriormente como diretor, procedimentos ensaístas que emolduram as narrativas (e também as anti-narrativas), e que apontam para a presença do comentário sobre os temas, algo oscilante entre a ficção e a não ficção, próprio do gênero ensaio, dúbio em sua natureza entre o literário e o filosófico.

Essa presença do comentário e da reflexão, que se desdobra numa voz inquiridora e auto-reflexiva, também recai sobre seu trabalho de adaptação de textos canônicos da história da literatura que se desenvolve num outro momento de realização, a partir de A TV Dante (1989), na televisão, e se prolonga com A última tempestade (1991), no cinema, avançando para O livro de cabeceira (1996). Neste texto, limito-me a análise dos dois primeiros filmes, com o objetivo de destacar o diálogo com o universo literário, ponto de partida para procedimentos de hibridização entre o eletrônico, o cinematográfico e o digital.

A TV Dante é um marco da apropriação que ele faz do universo eletrônico e digital, tanto no que diz respeito à investigação do instrumental tecnológico à disposição, como na tradução da obra literária, expandida pela polifonia com que é construída. O filme foi encomendado por Michael Kustow à Peter Greenaway e ao artista plástico, tradutor e ilustrador inglês de A Divina Comédia, Tom Philips[1]. Concebido inicialmente em 1985, o filme ganhou uma versão preliminar em que os diretores adaptaram apenas o Canto V. Em 1989, lançaram uma versão maior, adaptando os cantos de 1 a 8, do Inferno. A partir de então, Greenaway se familiarizaria com o Quantel Paintbox e com recursos de edição não-linear, as ferramentas tecnológicas necessárias para sobrepor imagens e realizar narrativas não-lineares como irá acontecer em A última tempestade.

A descida ao Inferno, realizada por Dante Alighieri e conduzida pelo poeta Virgilio, onde se deparam com a pletora de condenados em um espaço alegórico fechado em seu contorno religioso, no contexto da passagem do obscurantismo medieval para o renascimento, assinala um momento de transformação intensificada e, segundo Flávio Aguiar, esse declínio, seguido do percurso ao Purgatório e ao Paraíso “abre, no poema, e de modo inesquecível, a presença de um novo espaço que durante o Renascimento continuará crescendo e que, por fim, fará implodir definitivamente a arquitetura religiosa e ptolomaica do mundo, já em meio à Revolução, às Luzes e às guerras de Independência das colônias americanas”. [2]

O que os diretores restituíram no trabalho de adaptação está em consonância com as considerações de Flávio Aguiar, que observa a riqueza da obra poética, enquanto construção literária, à medida exata de um percurso subterrâneo do sujeito a um universo alegórico restituído como visão:

Uma visão é um salto, é viver e ao mesmo tempo abrir um anel de saber; é compreender e abandonar uma identidade. Uma visão literária não tem o sentido passivo da contemplação religiosa, de impor-se um Olhar ou uma Palavra de Além. Oferecer-se a uma visão é saltar além, é ver a tradição e rompê-la. É a presença da tradição que dá visão a sua inteligibilidade; mas é a ruptura desta com aquela que lhe dá sua condição de percepção. Uma “visão” que se limite, em sua construção, a confirmar a tradição não é uma visão; é uma tautologia[3].

E, ainda:

Dante pôs em movimento enciclopédico, pela primeira vez na história do Ocidente, uma língua vulgar, levando-a a ampliar-se até recobrir o universo do conhecimento e o anel de saber de seus contemporâneos[4].

Nesse sentido, A TV Dante como obra de reescritura, como transcriação, oferece-se também como visão que não se contenta com a recriação de um passado distante e rico em sua simbologia, mas presentifica o texto literário, alinhando àquelas visões do Inferno algumas imagens de acontecimentos do século XX, enriquecendo a obra original com o trabalho de construção da encenação e do manuseio do material visual, via paleta eletrônica e digital.

Os campos visual e sonoro se abrem para a multiplicidade discursiva que objetiva enriquecer o texto de partida, descentrando-o por via da distribuição de pontos de vista que iluminam a fonte, no desejo de atualizá-lo, o que ressalta sua imortalidade canônica. Para isso, o filme articula uma estrutura tríplice: 1) manifesta pelas faces e vozes de Dante (Bob Peck), Virgílio (John Gielgud) e Beatriz (Joanne Whalley), que recitam os oito primeiros cantos; 2) a navegação profunda no universo visionário do poema de Dante, atualizado mediante uma edição em que confluem imagens de arquivo e a perfomance dos atores e; 3) o tom documentarista pela aparição de especialistas que funcionam como informação de rodapé na tela do vídeo, a saber: o naturalista David Attenborough, o classicista David Rudkin, o astrônomo Olaf Pederssen, o cosmologista Colin Ronam, a historiadora Patricia Morison, o teólogo Malcom Wreer, o psicólogo James Thompson, o entomologista Michael Day e o co-diretor, Tom Philips.

Se para Dante, a palavra era o meio de acesso ao território obscuro objetivando uma revelação, no filme temos um procedimento análogo, em que a palavra emprestada se coaduna aos meios tecnológicos de registro, edição e pós-produção para fazer explodir um universo imenso de referências e distorções, tencionando o conteúdo traduzido.

Seguindo esse raciocínio, a imagem de abertura de cada canto transformado num episódio televisivo é composta pela inscrição de um vídeo médico que registra o interior do organismo, bastante esquematizado com números e letras e acrescido de dados cronológicos que indicam o tempo da jornada. A meu ver, essa solução visual metaforiza o componente reflexivo que estabelece no processo tradutório uma atualização conflitante, na medida em que funde duas temporalidades de forma descentrada e provocativa nos seguintes termos: a Divina Comédia é um trabalho artístico em que Dante mergulha no passado clássico e medieval e anuncia os novos tempos; correlato a esse movimento, detectado no texto de partida, Greenaway e Philips realizam um recuo no tempo, impulsionados pelas ferramentas que manuseiam e encontram na figura do homem descendo a escada de Muybridge a forma exata de aludirem aos primórdios do cinema. Essa imagem, recorrente no filme, aponta para a descida dos autores em sua representação do Inferno, cuja selva passa a ser a metrópole contemporânea e ao avançar nos círculos descritos por Dante recuperam acontecimentos trágicos do século XX, centrando-se nos grandes extermínios provocados pelas guerras e a emergência de figuras tiranas. Assim, o processamento anamórfico recupera imagens de arquivo e funde-se com o pavoroso balé de homens e mulheres numa pulsação delirante. Esse movimento visionário como revelação adensa-se poeticamente justamente pelo ir além do uso dos dispositivos em nome da equação forma e conteúdo, e busca questionar o próprio mecanismo, por vezes autoritário, de apropriação das imagens que o desenvolvimento tecnológico gerou – daí a importância da cena da abertura que enfatiza a incisão do homem no interior do corpo, nas possibilidades infinitas de transformação da vida que se operam, quer queiramos ou não, como relações de poder.

No filme seguinte, A última tempestade, essas relações de poder ganham outra dimensão, mas alinha-se a A TV Dante pela continuidade do trabalho de adaptação literária de A Tempestade e pelo uso das tecnologias digitais fundidas ao cinema. Tomemos o comentário da peça de William Shakespeare pela voz de Bárbara Heliodora que o credita como uma “fábula de extraordinária complexidade sobre relações do indivíduo com seus semelhantes, com o Estado e com as forças da natureza, que é um dos livros onde se lê o universo criado por Deus” [5]:

Próspero, antigo duque de Milão, teve seu trono usurpado pelo irmão, a quem entregara o efetivo exercício do governo enquanto ele se dedicava a estudos de mágica: não tenho a menor dúvida de que para Shakespeare a omissão do antigo duque era praticamente tão grave quanto a usurpação do novo. Na ilha à qual chegou, no barco em que ele e a filha foram postos à deriva, segundo Caliban, que se proclama o antigo dominador daquele espaço, o próprio Próspero é o usurpador e, na verdade, entre concretizados e tentados, a obra apresenta nada mais que seis casos diferentes de usurpação em níveis diversos. Para a sua ilha e usando mágica, Próspero atrai, durante uma tempestade que cria, o barco onde estão os responsáveis por sua atual condição de banido. Seu objetivo inicial é a vingança, porém toda uma série de aventuras, bem como o amor de Miranda e Ferdinando, acabam por transformar todo o processo em aprendizado, e a vingança em reconciliação.

A peça termina com os preparativos da volta de Próspero a Milão, a fim de retornar as rédeas do governo, devolvidas a ele pelo irmão, e antes de partir Próspero abre mão de seus conhecimentos mágicos. Essa fala[6] é romanticamente tida por muitos como a despedida de Shakespeare de seu mundo de teatro; quanto a mim, creio ser possível que, com sua larga experiência com o jogo da aparência e da realidade, o poeta estivesse efetivamente aproveitando a ocasião para também despedir-se de suas atividades profissionais mais permanentes; mas, no quadro específico da ação dramática de A Tempestade, parece-me que a grande lição que Próspero aprendeu, nas aventuras desse único dia retratado na peça, é de que não se pode recorrer à mágica na resolução de problemas humanos ou de Estado: para o bom governante se realizar pessoal e politicamente, não é preciso mais do que aquilo que Shakespeare sempre considerou mais do qualquer outra coisa: um homem[7].

O filme resulta numa hipertrofiada composição visual e sonora para contar a saga do destronado Duque de Milão, Próspero, que provoca uma tempestade a fim de que seus usurpadores possam naufragar e rumar até a ilha onde ele se encontra, com o intuito de realizar sua vingança. Para contar essa história, realiza-se uma articulação discursiva descontínua espaço-temporalmente em que se destaca a sobreposição de imagens, conduzidas pela narração e interpretação central de John Gielgud, pela orquestração sonora de Michael Nyman e a direção de fotografia de Sacha Vierny.

São expostos os vinte e quatro livros que compõem o legado de Próspero, substratos de seu poder. Há, ainda, a escritura da narrativa realizada por Próspero em seu estúdio e o enredo tal como Greenaway encontrou no texto original é exposto num outro plano. Consubstanciam-se três estruturas – a dos livros, da escrita da história e a de seu desenvolvimento – que compõem um espaço visual tensivo, enviesado por um entrelaçamento vasto de informações que desafia o espectador a construir os sentidos que a obra expõe.

Para a criação desse universo mágico, Greenaway recorreu aos recursos técnicos da televisão de alta definição japonesa (HTDV) e da tecnologia, já datada, do Graphic Paintbox, permitindo a criação e a sobreposição de imagens, de escritos, de inserções e de modificações de componentes visuais. O uso desse arsenal tecnológico instaura uma enunciação polifônica por meio de janelas que se abrem e sobrepõem-se no espaço da tela, resultando na apresentação simultânea de várias instâncias narrativas, o que permite a construção de um discurso que é resultado de vários discursos sobrepostos e intercalados. Dessa profusão, resulta um palimpsesto em contínuo movimento em que potencialidades advindas de outros suportes – desenhos, pinturas, fotografias, ilustrações, textos impressos – são devorados pela película que as converte num produto único e híbrido.

Ao fugir dos esquemas estandardizados de adaptação literária para o cinema em que o filme ilustra o texto verbal, há um investimento maior na pulsação da obra shakespereana, ou seja, ao realizar a tradução executou-se, sobretudo, um elaborado trabalho de interpretação visual em que cada frase faz eclodir um vasto campo de referências, iluminando incessantemente a obra do dramaturgo inglês. Dessa forma, mantém vínculos estreitos com o contexto em que a peça foi escrita e, vai além dela, submetendo o texto a outros contextos num declarado ensejo de transpor limites temporais rígidos, filiando-o a outras instâncias históricas por encará-lo, ao que parece apontar como obra que permanece no tempo, um clássico que pode ser submetido a várias revisões. O filme rejeita a profundidade de campo cara aos preceitos realistas, o que permitiu, inclusive, certa aproximação com imagens cubistas pelo trabalho elaborado que se faz com o ponto de vista.

As imagens foram captadas em 35 mm, posteriormente transportadas para o sistema de televisão de alta definição e, com a utilização do programa de computador Graphic Paintbox, realizou-se, nos estúdios da NHK[8], a manipulação das cores das imagens, inserção de figuras animadas e sobreposição de quadros. Na sala de montagem realizaram-se as interferências necessárias, nesse sentido, há uma importância decisiva na etapa da pós-produção pela manipulação das cores, sobreposição de imagens, criação de formas visuais com os recursos da computação gráfica; enfim, modificação do espaço da tela até onde a tecnologia lhe permite.

Atento e curioso ao que a televisão pode oferecer, Greenaway sente que o meio não permite muitas manobras na obtenção de imagens se comparadas ao cinema, mas destaca a eficácia dos recursos de pós-produção, principalmente, nos ajustes e criações cromáticas (cerca de 17 milhões de cores), que vão além do que nossos olhos podem observar, e as possibilidades de animação, viabilizando o cinema anti-naturalista centrado na criação de universos fantasiosos [9].

O resultado desse processo de composição é um transbordamento de imagens do começo ao fim. Greenaway atentou para os pintores marcantes do maneirismo, tais como Ticiano, Tintoretto e Veronés, conhecidos pelos quadros de grandes dimensões e que inspiram as cenas saturadas e alegóricas, além do uso de cores aberrantes em cenas de força dramática, mas não se fixou nessas referências, buscando na Mesquita-Catedral, de Córdoba (Espanha) e na tela São Jenônimo, de Antonello Da Messina (Itália), inspirações para compor as colunas do lugar em que Próspero mora, além das escadarias da Biblioteca Laurenziana, em Florença, desenhadas por Michelangelo, os jardins da Alhambra, em Granada (Espanha), em Muybridge, no desenhista inglês contemporâneo a Shakespere John White, Vesalius, William Blake, Kircher, Botticelli, Brueghel, Rembrant, referências da cultura pop como Felicien Rops etc. Comparado a outros filmes, em A última tempestade, Greenaway reúne o maior número de referências, compondo um mosaico de citações que recuperam obras consagradas da história da arte européia, textos ilustrados com imagens, tratados e enciclopédias.

A construção fílmica, moldada por assimilação de dispositivos técnicos de natureza eletrônica e digital, possibilitou o questionamento no campo semiótico na medida em que estabeleceu um convívio entre linguagens que guardam potencialidades diferenciadoras na estruturação da mensagem, além de ter trazido a tona esta questão, que está em pauta nas discussões sobre arte e novas tecnologias em que se realçam as convergências e o abandono da fronteiras rígidas nos materiais e nos suportes.

O filme transcorre no mesmo ano em que a peça foi escrita, 1611, tratando-se de um período marcado pelo aparecimento tardio do renascimento na Inglaterra, comparado a outros países da Europa continental, pela mescla do conhecimento medieval, em seu obscurantismo fixado pela cabala judaica e pela alquimia, com o empirismo moderno [10] decorrente das descobertas científicas. Tem-se, também, um período de transição no plano político, já que 1603 tinha início a dinastia dos Stuart com a ascensão de James I[11]. 1611 é também o emblemático ano da publicação da controversa versão da Bíblia do rei James.

A peça é a despedida de Shakespeare do teatro e do ilusionismo. Para Greenaway, serviu de trampolim para novos investimentos criativos em que a ilusão é extremada pela edificação de um universo fantástico povoado por criaturas mitológicas, anjos e demônios e uma listagem enciclopédica de referências que brotam na imagem. Em sua leitura pessoal, o diretor associou seu conteúdo ao fim do século XX e ao fim do milênio, justificando-se da seguinte forma: “É uma peça sobre finais e começos, sobre renascimento, sobre o perdão de nossos inimigos para começar tudo de novo, o que eu acredito ser particularmente pertinente agora” [12]. O texto destaca a temática do conhecimento e seu uso, o que lhe permite associá-lo diretamente à proliferação de meios e de informações nos dias atuais [13], em que se verifica o acúmulo de conhecimento e da crença da ciência como imperativo para nossas vidas, modificando radicalmente o mundo em todos os seus aspectos, possibilitando, inclusive, o aniquilamento total da vida, no caso da bomba nuclear e de sua reinvenção, lembrando a potência da engenharia genética.

As relações entre passado e presente se completam em associações que percorrem vários séculos, encontrando referenciais que indicaram transformações radicais na percepção do mundo, na comunicação, na representação e na arte. Os papéis que voam no cenário evocam Gutemberg, assim como o elogio aos livros, Muybridge e Lumière – as origens do cinema – junção entre fotografia e a busca pela representação/visualização do movimento são os indícios mais fortes desse olhar penetrante nas raízes dos fenômenos. Gutemberg, Muybridge e Lumière são manifestos conjuntamente, convergidos pelas tecnologias digitais que permitem essas sínteses na imagem. A recriação de uma narrativa distante no tempo passou a ser construída transversalmente, como informa sua enunciação.

A música de acentuado acorde de violinos de Michael Nyman alinhava uma explosão de signos que saltam à vista de forma ininterrupta, a dicção poderosa de Guielgud oferece-se como resgate da musicalidade extraída das palavras de Shakespeare e que varia ao descrever o conteúdo dos livros, interrompendo a ação dramática para incluir certo tom documentarista. Acresça-se ao trabalho coletivo de feitura do filme a performance de Michael Clark, como bailarino no papel de Calibã, o trabalho coreográfico de Karine Saporta e câmera potente de Sacha Vierny, que regula ritmicamente o traçado visual do filme.

Em sua composição plástica, o filme transborda num fluxo de imagens que se repetem, sobrepõem-se e multiplicam-se, apresenta um trabalho com cores contrastantes, mescla imagens de arquivo, abre janelas, com resolução técnica depurada, o que acentua o detalhamento de signos visuais em sua artificialidade.

Ao organizar esse tecido direcionado e infinito de conexões, reitera-se um aspecto já observado por Lev Manovich, que entende a manipulação simbólica de bancos de dados como componente sintomático da nova ordem no fazer artístico, no contexto das novas mídias [14].

Ao assumir as tecnologias digitais de produção e de divulgação da informação como dispositivos centrais capazes de promover interfaces variadas e interconectar mídias de naturezas distintas, Greenaway desenvolveu conscientemente mutações no seio da própria obra, adotou a abertura para citações e traduções, articulou um processo de criação que alia ficção e não-ficção e recusou a mera contemplação das novas mídias para favorecer um projeto na esteira das vanguardas e de seus ideais de transformação. Nos termos de Ítalo Calvino, a multiplicidade seria um dos valores norteadores nesse milênio, Greenaway, já no começo dos anos 1990, bradava pela reinvenção do cinema, justificando sua derrocada nos dois seguintes argumentos: a invenção do controle remoto nos anos oitenta, que presumivelmente “liberaria” o espectador, e a descrença na narrativa clássica hollywoodiana.

Se Greenaway mostrou-se atento às tecnologias digitais, incorporando em seus filmes ferramentas que permitem manipulação da imagem e quebra do quadro único, houve também certo grau de desconfiança em torno dessas mídias. No trecho abaixo, observamos esse nível de questionamento voltado para as incertezas que a interatividade poderia proporcionar:

Estou curioso sobre todas as formas de interatividade, embora ainda espere entender como ela será alcançada. Interatividade implica escolhas – pode o novo cinema interativo ser experimentado em massa? Se cada espectador quiser satisfazer seus próprios desejos, como fazê-lo?  Haverá um cinema consensual, operado democraticamente por votos, mãos levantadas, botões? Substituiremos a ditadura do cineasta-diretor pela do mais espectador barulhento? É um fato curioso, mas a história do entretenimento por quadros dramáticos ou da arte dramática encenada sempre tem sido a de sucumbirmos passivamente frente à subjetividade de um outro. Podemos ser interativos com Michelangelo? Gostaríamos de mudar a forma de seus anjos, as cores do Adão da Capela Sistina, redramatizar “O dilúvio”? Não consigo pensar em nenhum objeto de arte que tenha sido satisfatoriamente criado pela participação consensual. Foi a decisão comunitária que criou e dogmatizou realismo soviético[15].

No filme A última tempestade, o cineasta uniu imagem e texto verbal num corpo único, apropriando-se da tecnologia da televisão de alta definição japonesa e da computação gráfica para poder realizar-se como cineasta e artista plástico. Filmou tudo em película e na edição interferiu e manipulou a imagem tentando libertar o cinema do peso da representação realista, reafirmando sua visão da sétima arte como artifício. Conceitualmente, o hieróglifo e o ideograma japoneses funcionam como motivos para que o visual e o verbal possam ser sintetizados textualmente. Ciente de que esse processo de síntese já fora previamente delineado por Einsenstein, o diretor almeja ir além, apostando na simultaneidade das ações narradas, estruturando suas histórias por via de enumerações, de catálogos, da quebra da continuidade, na organização plástica que delibere livremente as imagens em movimento, sem as amarras da referência imediata. No prosseguimento de seu percurso criativo, podemos notar o adensamento das propostas semeadas nessas duas obras, bem como o oferecimento de uma resposta pessoal às demandas da interação, tal como se nota no projeto multimídia Tulse Luper Suitcases.

Bibliografia

AGUIAR, F. Visões do inferno ou o retorno da aura. In: NOVAES, A. (Org.) O olhar. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

HELIODORA, B. Falando de Shakespeare. São Paulo: Perspectiva, 2001.

KILB, A. I am the cook: a conversation with Peter Greenaway. In: GRAS, V., GRAS, M. (Orgs.) Peter Greenaway: interviews. Mississipi: University Press of Mississipi, 2000.

LABAKI, A. Greenaway rejeita interatividade no cinema. Folha de São Paulo. Ilustrada, caderno 5, p.04, 23 de jan. 1996.

MANOVICH, L. The language of new media. Cambridge: MIT Press, 2000.

TRAN, D. The book, the theatre, the film and Peter Greenaway. In: GRAS, V., GRAS, M. (Orgs.) Peter Greenaway: interviews. Mississipi: University Press of Mississipi, 2000.

TURMAN, S. Peter Greenaway. In: GRAS, V., GRAS, M. (Orgs.) Peter Greenaway: interviews. Mississipi: University Press of Mississipi, 2000.


[1] Refiro-me à tradução lançada por ele em 1983.

[2] AGUIAR, F. Visões do Inferno ou o retorno da aura. p. 320

[3] Idem. p.321

[4] Idem. p.321

[5] HELIODORA, B. Falando de Shakespeare. p. 150.

[6] Prospero: Oh elfos das colinas, rios, vales/ E que sem deixar marcas nas areias/ A fuga de Netuno perseguis,/ E calvagais a glória do refluxo;/ Oh vós, semidemônios que talhais/ O leite que não bebem as ovelhas;/ E vós, cuja alegria à meia noite/ É fazer cogumelos que jubilam/ Se a noite chega – por cuja arte,/ Embora fracos mestres, apaguei/ O sol do meio-dia, criei ventos,/ E entre o verde do mar e o azul do céu/ Criei a guerra; e ainda incendiei/ O trovão que alucina, e abalei/ De Júpiter o tronco do carvalho/ Com o próprio raio – e o vasto promontório/ Sacudi; e das bases arranquei/ O pinho e o cedro; e com uma só palavra/ As tumbas libertaram seus defuntos/ Por força da minha arte. Mas tal mágica/ Aqui renego; e quando houver pedido/ Divina música – como ora faço -/ Para alcançar meus fins pelos sentidos/ Que tal encanto toca – eu quebro a vara,/ A enfio muitas braças dentro à terra,/ E, mais profundo que a mais funda sonda,/ Afogarei meu livro. Idem. p.151

[7] Idem, p.150

[8] Almir Rosa discute as relações técnicas e estéticas da televisão de alta definição no artigo intitulado “A Hi-Vision do Japão: mudança de paradigma técnico ou estético?”. (ver bibliografia)

[9]TRAN, D. The book, the theater, the film, and Peter Greenaway.  p. 129-134.

[10] KILB, A. I am a cook: a conversation with Peter Greenaway. 2000, p.60-66.

[11] É interessante pensar nas relações de algumas narrativas de Peter Greenaway que recuperam momentos de profundas transformações no plano político da Inglaterra, como é ocaso do Restauração que conforma o pano de fundo de O contrato do desenhista e certas alusões ao Thachterismo nos longas-metragens também da década de oitenta.

[12] TRAN, D.The book, the theater, the film, and Peter Greenaway. 2000, p.131.

[13] TURMAN, S. Peter Greenaway. 2000, p. 149.

[14] MANOVICH, L. The language of new media. 1996. Nesse trabalho , Manovich utiliza a teoria e a historia do cinema como uma lente conceitual através da qual ele olha as novas mídias. Os tópicos incluem paralelos entre a historia do cinema e a historia das novas mídias; a identidade do cinema digital; as relações entre a linguagem da multimídia e a as formas culturais pré-cinematográficas do século XIX; as funções da tela; câmera móvel e montagem nas novas mídias comparadas com o cinema; e os elos históricos entre as novas mídias e o cinema de vanguarda.

[15] LABAKI, A. Greenaway rejeita interatividade no cinema. p.07

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