Por Samuel Douglas Farias Costa*
Nem pouco e nem muito. Um conto chinês (Un Cuento Chino, 2011) é um trabalho argentino dirigido por Sebastián Borensztein e que traz na trivialidade elementos interessantíssimos sobre comunicação, relações e os vínculos criados a partir destas. A história pode ser considerada boba para alguns e engraçada ou estranha para outros, mas de qualquer forma é um prato cheio que nos apresenta relações de troca e valores simbólicos em um contexto contemporâneo cuja compreensão está além de uma explicação exclusivamente economicista ou utilitarista do mundo em que vivemos.
O filme desencadeia a sua história a partir de um fato um tanto quanto extraordinário e com toques de um humor trágico das coisas surpreendentes que a vida nos releva a cada dia. Um chinês está prestes a pedir a mão de sua noiva em casamento em um barco no meio de um lago quando, de súbito, uma vaca cai do céu e atinge a sua amada. O impacto é fatal e a garota morre. E agora pasmem: tal sequência é baseada em um fato real que ocorreu no Japão. Em seguida, somos levados para o outro lado do mundo: Argentina. Conhecemos o cotidiano do rabugento e metódico Roberto (Ricardo Darín), um comerciante dono de uma loja de ferragens que vive de cara fechada a contar caixas de parafusos, reclamar de um cliente impertinente, resistir ao amor de Mari (Murial Santa Ana), filha de um amigo, dormir sempre no mesmo horário (em ponto) e a zelar por suas coleções de pequenos animais de vidros e de notícias extraordinárias, entre outras peculiaridades. Toda essa rotina é abalada pelo encontro com um desconhecido, um chinês chamado Jun (Ignacio Huang) que está totalmente perdido e precisando de ajuda para encontrar seu tio. Sem entenderem uma palavra se quer do que o outro diz, inicia-se aí uma relação muito curiosa marcada por uma aliança de reciprocidade.
Quando digo uma aliança, quero dizer que no momento em que o comerciante rabugento oferece ajuda à Jun, desencadeia-se um ciclo de dar, receber e retribuir, fazendo com que eles mantenham um vínculo social. Essa dialética de dom e contradom é conhecida dentro das ciências sociais como a lógica da dádiva e é um dos grandes legados do antropólogo francês Marcel Mauss[1]. Um conto chinês traz exemplos de como essas relações de trocas recíprocas (que são opostas as lógicas de mercado ou meramente utilitaristas) se encontram presentes nas sociedades contemporâneas marcadas pela economia capitalista, grandes metrópoles urbanas, fluidez e efemeridade das relações.
Além desse vínculo de obrigações recíprocas e do valor social que é estabelecido entre os personagens, outro elemento que quero destacar é a comunicação. Roberto e Jun não falam sequer uma palavra no mesmo idioma e mesmo assim desenvolvem uma forma de compreensão um do outro muito melhor do que a de muitos que fazem parte de um mesmo meio cultural. Jun é o estrangeiro, aquele que não domina a lógica e os signos da sociedade na qual está inserido, e quando Roberto oferece ajuda é criada uma forma de comunicação baseada, principalmente, na reciprocidade. É claro que eles fazem gestos, em alguns momentos pedem ajuda a quem fale os dois idiomas, desenham, mas me refiro à comunicação de forma mais ampla do que uma linguagem oral ou corporal, e nesse sentido, a relação estabelecida é a base para que obtenham sucesso na compreensão um do outro.
As coleções de Roberto são outro ponto que revela que não podemos compreender as relações sociais somente a partir de aspectos econômicos, ou mesmo pensar que estes são sempre os determinantes dos demais. Roberto coleciona miniaturas de animais feitos de vidro e os oferece como presente à falecida mãe (mais uma vez vemos aí uma relação de dádiva). Esses objetos são o que Roberto considera de mais valioso e é quando algo fere esses bens de um inestimável valor simbólico, e não econômico, que surge um momento de crise, ruptura e desordem. No que diz respeito à sua outra coleção, notícias de jornais com relatos extraordinários, é interessante perguntarmos: qual a lógica disso? Isso tem a ver com a história de Roberto, subjetividades e valores simbólicos que, a priori, não fariam sentido dentro de uma visão macroeconômica.
Na atuação o destaque fica pra Darín, que já mostrou em outros trabalhos, como XXY (2007), ser um dos grandes nomes do cinema argentino e mundial contemporâneo. Nesse filme, a sua performance de um ranzinza cheio de sensibilidade é formidável. Murial Santa Ana traz uma dose de beleza e carisma com um daqueles personagens pelos quais facilmente nos encantamos. O filme tem uma fotografia com ar frio e seco que ganha um pouco de cor com a presença de Jun, a composição da imagem e cenários são bastante curiosos pra entender a personalidade e estado de espírito dos personagens, mas nada que seja esteticamente inovador. A trilha sonora de Lucio Godoy é serena e atraente, daquelas que te convidam a ouvir e aconchegam seus ouvidos.
Destaquei aqui algumas dessas características profícuas para pensarmos as interações sociais cotidianas, ou extraordinárias, como é o encontro entre Jun e Roberto, e que me propõe afirmar que o mundo social deve ser compreendido em sua ampla complexidade (econômica, simbólica, política, etc.). No entanto, o filme não é nenhuma obra de arte intocável (como disse no início: nem pouco e nem muito). Embora seja rico em suas entrelinhas, também há um toque piegas e feel good, que fazem com que a obra deixe um pouco a desejar, mas que são compreensíveis dentro da linguagem de humor que é proposta.
[1] MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva: forma e razão da troca nas sociedades arcaicas. In : _____. Sociologia e Antropologia. v. II. São Paulo : Edusp, 1974.
*Samuel Douglas Farias Costa é graduando em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Maringá (UEM) e redator do blog “Avant, Cinema!” http://avantcinema.wordpress.com/.
Em 2017, os franceses fizeram um filme idêntico, sem tirar nem por. Um francês e um indiano. Cópia fiel do filme argentino. Esquisito!